Alcácer do Sal, 26 de janeiro de 2041
A Adélia conseguiu assistir às aulas online. Abdicou da novela das sete e – supremo sacrifício! – o namorado foi-se, ao cabo da segunda semana de confinada clausura. Saiu vitoriosa da contenda travada com uma pilha de livros. Repetira ladainhas em voz rezada, na crença de que a memória a não traísse. Sabia a matéria, na ponta da língua. Fizera a mnemónica das fórmulas. E, confiante na sua memória de curto prazo, abalou para a fatídica prova. Porém…
Nesse dia, esperou mais de uma hora pelo sempre atrasado ônibus. Depois, no meio do tumulto, gastou meia hora para achar a sala da prova. Quando chegou ao primeiro lugar da fila, o instrutor disse-lhe que a sua sala era em outro prédio. Faltavam oito minutos para os portões fecharem. Correu a bom correr, por uns dez minutos. Quando alcançou a sala, já tinham fechado o portão. A Adélia ingressou no rol da mais da metade dos inscritos, que não fizeram a prova.
A cena repetir-se-ia no domingo seguinte. Mas, a já experiente Adélia conseguiu chegar a tempo ao local da prova. A sala estava setenta por cento ocupada e ela estava muito nervosa. Arfava, e a máscara não lhe permitia respirar devidamente. Iniciada a prova e anunciado o tempo limite para a sua realização, a Adélia fixou um olhar de hipnotizada num relógio. Bloqueou-se a mente, tolheram-se os movimentos. As folhas da prova ficaram em branco e humedecidas por lágrimas.
Foram-se meses de aturado sacrifício. Nada aprendera nas aulas online, apenas fizera decoreba. E, como a memória era esperta, até a decoreba se foi, ao cabo de alguns meses. Teria de retomar o “estudo”, no ano seguinte e frequentar um “cursinho”.
Decorridos alguns dias sobre o drama, sobreveio uma desmesurada sudação, crises de choro, incontinência urinária. Nada que a competência dos médicos e alguns sedativos não conseguisse dissipar. Mas, não era possível disfarçar o Suplício de Tântalo dos exames, seria necessário alertar para efeitos colaterais, como a aprendizagem da corrupção.
Enquanto a Adélia me descrevia o seu drama, eu evocava outras situações absurdas em que as escolas de antigamente eram pródigas. No já distante 2021, ainda havia quem confundisse prova com avaliação. Melhor fora que defendessem a prática de uma avaliação rigorosa, que dispensasse as escolas dos inúteis e caros rituais de exame. Mas, a administração educacional nada entendia de educação e, em particular, de docimologia. Mesmo em plena pandemia, promovia perigosas aglomerações, a que chamavam Enem.
Uma prova era o mais falível instrumento de avaliação. A lei estabelecia que a avaliação fosse formativa, continua e sistemática. O Enem estava fora da lei, porque não denotava tais caraterísticas. Duas das vozes mais autorizadas desse tempo – Danilo Gandin e Rubem Alves – denunciaram a situação, propuseram alternativas. Nada adiantou. Para além de ignorante e autoritária, a administração educacional sofria de autismo, não interagia socialmente, recusava dialogar.
Para além de não ser rigoroso, o Enem era uma excludente câmara de tortura. Em 2021 foi cometido um atentado contra a juventude, numa sociedade doente, que não cuidava do bem-estar dos seus jovens e engendrava o seu suicídio enquanto sociedade.
O Enem não colocava apenas jovens psicologicamente mais frágeis à beira de um ataque de nervos. Não era somente responsável por crises de sudação, choro ou incontinência urinária. Mais do que um potencial descontrolador de esfíncteres, o Enem era uma porcaria (eu ia escrever “bosta”, mas optei pelo eufemismo, para não ferir sensibilidades).
Por: José Pacheco