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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCIII)

Odivelas, 7 de maio de 2040

O ministro nada entendeu da “mensagem do vírus”. Numa comunicação ao país, afirmou que seria “uma escola bem diferente” aquela que encontrariam os estudantes, a partir do dia 18 desse distante mês de maio. Mentiu. Foi uma “escola igual” aquela que ele anunciou: o isolamento social daria lugar ao regresso à mesmice.

O Governo de Portugal decretou que os tempos letivos seriam concentrados apenas no período da manhã ou da tarde. As turmas poderiam ser desdobradas, para garantir o distanciamento social, embora não se indicasse um número máximo de alunos habitando um mesmo espaço. Os intervalos entre as aulas passariam a ter “a menor duração possível” e, entre as aulas, os alunos permaneceriam dentro das salas.

No despropósito desse “regresso às aulas”, as medidas de prevenção da covid-19 consistiriam em reformular horários. As aulas de cada turma deveriam ser consecutivas, para que não houvesse períodos livres entre elas. As escolas deveriam “concentrar o máximo de aulas de cada turma para minimizar o número de vezes que os alunos tenham de se deslocar à escola, ao longo da semana”,

As aulas teriam de ser dadas entre as dez e as dezessete horas. E os horários das turmas seriam desfasados “evitando, o mais possível, a concentração dos alunos, dos professores e do pessoal não docente no recinto escolar”. As salas de “dar aula” não poderiam ser contíguas, mas distantes umas das outras. Dentro delas, haveria apenas um aluno por mesa e deveria ser evitada uma disposição de mesas em que os estudantes ficassem de frente uns para os outros.

Confesso que corei de vergonha, perante mais esse ministerial delírio. E possuído pela indignação, perante o obsceno silêncio dos meus companheiros das ciências da educação face a tantos absurdos – tempo letivo, intervalo, horário de turma, a tralha costumeira do obsoleto sistema de ensinagem

Com o advento da escola de massas, a necessidade de atender mais crianças reduziu o tempo de permanência do aluno na “escola”. Essa medida não constituiu problema, porque não se corrige lacunas de aprendizagem com mais tempo despendido no modelo de ensinagem. Mais tempo dentro de um prédio a que chamam “escola” não correspondia a mais aprendizagem. Nesse tempo da proto-história da escola, tempo passado em sala de aula era tempo perdido. Durante doze anos, os alunos passavam quase dez mil horas dentro delas e nada, ou quase nada aprendiam. Os ministros não sabiam que o tempo de aprender deveria ser o tempo de cada aprendente, articulado com o tempo do trabalho dos professores, das famílias e dos ciclos de vida das comunidades.

A ensinagem produzia nas pessoas a sensação de que “não tinham tempo”. Os alunos ficavam tão absorvidos consigo mesmos, que não dispunham de tempo para a criação de vínculos. O sistema de ensinagem impunha um tempo único, igual para todos, ignorando que os alunos eram seres humanos únicos, irrepetíveis, dotados de um ritmo de aprendizagem específico.

Nesse tempo da proto-história da humanidade, urgia que o professor não desperdiçasse tempo “dando aula” e que se desembaraçasse de um currículo cronometrado. O covid-19 mostrara que, online, o estudante dispunha de algum controle do tempo, do ritmo do estudo e que, no remanso do lar, havia algum equilíbrio entre o tempo de aprendizagem pessoal e o tempo de aprendizagem colaborativa.

Nesse mês de maio, rezávamos para que o Brasil não adotasse os absurdos naturalizados, que o Governo português adotara. Infelizmente, em vão nós rezamos.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCII)

Guará, 7 de maio de 2040

No dia 6 de maio, mais de 600 brasileiros morriam de covid-19. Nesse mesmo dia, os jornais davam notícia de que o ministro da educação afirmara não ver motivo para adiamento do enem.

Eu apresentei vários motivos. Mas, certamente, o ministro tinha mais que fazer do que ler os meus insignificantes escritos. Disse que o enem não seria adiado e que esse exame não tinha sido feito para corrigir injustiças. Nisto estou de acordo com o ministro. Esse exame fora feito para gerar injustiça e se constituía em mero instrumento de darwinismo social.

Os senadores eram de opinião de que se deveria adiar essa e outras provas, alegando que a falta de acesso à internet prejudicaria mais os alunos da rede pública. O ministro não se mostrou sensível à argumentação. E um senador até comentou: O ministro não entendeu a gravidade da situação.

Para ministros e senadores, as ciências da educação eram como ciências ocultas. Não se poderia exigir de um ministro ou senador que entendesse alguma coisa do assunto. Mas, pelo menos, os senadores usaram de bom senso. E de bom senso usarei para convosco nesta carta, queridos netos. Bem como para com aqueles que clamam por mais exames e confundem mais exames com maior rigor na avaliação.

O meu amigo Rubem dizia que, se a universidade quisesse insistir na seleção de alunos, deveria substituir os “vestibulares” por algo mais rigoroso e justo: um sorteio. Com o sorteio, os inúteis e caros cursinhos desapareceriam. E o sorteio libertaria as escolas da escravidão aos padrões de conhecimento impostos pelos vestibulares, ficando livres para verdadeiramente educar.

Para que saibais, o enem era um exame nacional do ensino médio, um instrumento de avaliação falível, que, para além de não ser rigoroso, era, na sua essência, excludente. Para ilustrar o que afirmo, respigo um naco de texto do meu “Dicionário dos Absurdos da Educação”:

A Adélia sabia a matéria na ponta da língua. Fizera a mnemónica das fórmulas e repetira ladainhas em voz rezada, na crença de que a memória a não traísse. Saiu vitoriosa da contenda travada com uma pilha de livros: fez a decoreba de todos, um por um. Mas acabou derrotada por uma… ampulheta. Abdicou da novela das sete e – supremo sacrifício! – o namorado foi-se, ao cabo da segunda semana de clausura. Quem diria que se deixaria intimidar por um diabólico aparelho de medir o tempo? Ingloriamente, a presença de uma ampulheta na sala de exame deitou por terra todo o investimento. Iniciada a prova e anunciado o tempo limite para a sua realização, a Adélia fixou um olhar de hipnotizada na areia que caía, caía, caía…. Bloqueou-se a mente, tolheram-se os movimentos. As folhas da prova ficaram em branco e humedecidas por lágrimas. Decorridos alguns dias sobre o drama, sobreveio uma desmesurada sudação, crises de choro, incontinência urinária. Nada que a competência dos médicos e alguns sedativos não conseguisse dissipar.

Nesse tempo, já não era possível disfarçar a inutilidade dos exames, nem ocultar nefastos efeitos colaterais e perversões. Enquanto a Adélia me descrevia o seu drama, eu escutava-a atentamente, mas evocava outras situações absurdas em que as escolas de antigamente eram pródigas. O enem não colocava apenas jovens psicologicamente mais frágeis à beira de um ataque de nervos. Conforme estava concebido, não era apenas responsável por crises de sudação, choro e incontinência urinária. Mais do que um potencial descontrolador de esfíncteres, um exame é, em si mesmo, uma porcaria (eu ia escrever “merda”, mas optei pelo eufemismo, para não ferir sensibilidades).

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCI)

Três Cachoeiras, 6 de maio de 2040

Deambulando por terras do sul, tentando afastar destas cartinhas o espectro da morte, recebi notícias da minha amiga Adriane:

Bom dia, querido Zé! Tenho pensado imenso em ti, desde que o Covid-19 decidiu aparecer e modificar completamente as nossas rotinas diárias. Uma das consequências desta mudança, está a retratar-se no papel que a escola e nós professores devemos ter na Vida dos nossos alunos. Esta é uma excelente oportunidade para mostrarmos a nossa função de orientadores da aprendizagem e permitir ao aluno o estímulo da procura do saber por si próprio. Creio que esta seja uma oportunidade de mudança na percepção das pessoas em relação ao local da aprendizagem. Finalmente, os “muros da escola” vão cair e a aprendizagem estará em todo o lado…

Bom seria que acontecesse aquilo que a Adriane vaticinava. Ainda passariam muitos outonos de tormentas e muitas primaveras de promessas de regeneração, até caírem os “muros das escolas”. Voltemos à leitura de e-mails, que guardei na “nuvem”:

Já identificamos educadores conscientes e que desejam transformar a escola. Estamos organizando e implantando um sistema de avaliação, através dos portfólios. Estamos às voltas da ressignificação na nossa escola. Temos trabalhado duro, com empenho e buscando construir um projeto que esteja conectado com os novos tempos e com uma sociedade mais humanizada. Queremos que seja de qualidade social, e que, de fato, contribua muito com a construção de vidas mais dignas e felizes. Há alguma orientação que nos possa ser remetida com relação a isso? Se puderes estar conosco, em dois ou três dias, poderemos reunir nossa rede aqui do sul. Abraços fraternos da Escola Baréa.

Em 2020, não pude ir a Três Cachoeiras. No “grupo de risco”, a pandemia mostrou-me que deveria “sair de cena”, deixar de ir para o chão da escola, como fiz, durante cinquenta anos. Reuni uma equipe de formadores, que fizeram o Projeto Independência, a Escola da Ponte, o Projeto Âncora e outras escolas consideradas inovadoras. Esses professores manifestaram-se disponíveis para partilhar aquilo que sabiam. Mas, sobretudo, para partilhar aquilo que sabiam FAZER. No mês de maio de 2020, professores, gestores, pais, comunidades, se envolveram num projeto de formação, a que deram o nome de “Aprender em Comunidade”. O processo de transfomação durou cerca de dez anos e foi como o início de um “suliar” da educação.

Permiti que introduza um parêntesis… Optei por “suliar”, porque tudo nasceu no sul. O termo “orientar” seria apropriado para inspirações provindas do oriente. E “nortear” poderia ser aplicado a algo com origem no norte. Aliás o Mestre Freire escreveu na “Pedagogia da Esperança” que os educadores brasileiros deveriam suliar (e não nortear) as suas reflexões e práticas.

Com o recurso a esse neologismo, Freire mostrou estar consciente de que a linguagem produz e reproduz cultura. Recordo-vos que, nos idos da década de vinte, o Brasil estava exposto a uma “norteadora” neo-colonização da educação. A língua portuguesa era substituída por um léxico anglo-saxônico típico da cultura digital: link, cool, print, startup, live, hi-tech, approach, trashplayer, card, team, views, home office etc. Em português, “Remote Work” poderia ser chamado Trabalho em Casa, mas o e-book já não estava “on the table”, estava dentro de nós.

É isso, queridos netos: estou tentando afastar destas cartinhas o espectro da morte, que rondava a sociedade brasileira, há cerca de vinte anos.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XC)

Bragança Paulista, 5 de maio de 2040

O desaparecimento da companheira Sônia atraiu a memória de outros ausentes. De um Freire, que nos deixou órfãos de sabedoria, no segundo dia de um mês de maio. E de um dos meus maiores amigos: Rubem Alves. A sua visita à Ponte marcou uma viragem no meu projeto de vida, possibilitou o encarar de novos desafios. Com ele fui até a lugares por onde Freire passou. Na UNICAMP, li o “não-parecer”, que o Rubem redigiu, quando lhe pediram, na qualidade de reitor, um “parecer” sobre a reintegração de Freire na universidade.

De tragédia em tragédia, esse mês de maio de 2020, nos roubava o compositor e escritor Aldir Blanc. O trovador carioca morreu de Covid-19, na madrugada do dia 4. Num poema póstumo – “Palácio de lágrimas”, dizia-se ser um peregrino, nessa estrada sem fim, caminho sem nada. João Bosco, seu amigo e parceiro de canções como “O Bêbado e o Equilibrista” não fez um epitáfio, ofereceu-nos uma mensagem de esperança: Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu as cantar.  Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão para viver: Quero cantar nossas canções, até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui para fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.

Foi na sensação de habitar um mundano “nada”, que, nessa mesma triste madrugada, levou o ator Flávio Migliaccio a cometer suicídio. Na carta, que deixou à família, Flávio escreveu: Me desculpem, mas não deu mais. A humanidade não deu certoTive a impressão de que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente. E finalizava a missiva com um apelo: Cuidem das crianças de hoje.

Por que “não deu certo”? E quem engendrou “esse tipo de gente”? Talvez uma enorme quota parte de responsabilidade nos caiba. Talvez as causas do bullying, do fenômeno da auto mutilação, da elevação dos índices de suicídio juvenil, ou dos massacres em Colombine e no Realengo, residam num modelo educacional escolar, familiar e social, que se pereniza. Talvez…

Vivíamos num Brasil doente, num vazio deixado pelo apodrecimento de um velho paradigma educacional, que negava a vida humana e o parto de um novo paradigma, que nos permitiria vencer o medo e reaprender a amar.  Vivíamos tempos de desesperança e medo. Tínhamos chegado a um nível tal de adoecimento individual e coletivo e de imperativo da cultura do medo, que o nosso maior desafio no século XXI passou a ser reaprender a amar. 

Meditando sobre as visões do meu amigo Joelmir, eu repetia, a pergunta: Qual será a nossa quota parte de responsabilidade? De que modo contribuímos para esses tempos de desesperança e medo? Quanto tempo, quantas desistências da vida, ainda teríamos de consentir, até ao momento em que os educadores deste país assumissem uma decisão ética de respeito por si e pela Vida? 

No derradeiro momento da sua existência terrena, Flávio Migliaccio lançou um lancinante apelo: Cuidem das crianças de hoje. Esse apelo ressoava, pelo menos desde os primórdios do século XX. Mas, em pleno século XXI, a desumana surdez do poder público asfixiava iniciativas de resposta ao velho apelo, contribuía para perpetuar um modelo educacional neurótico e necrófilo. E a cultural “surdez” dos profissionais da ensinagem era a maior responsável pelo genocídio educacional em curso nos lares, na sociedade, nas escolas.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXVIII)

Cabo Frio, 3 de maio de 2040

Para a Sônia (in memoriam)

A minha amiga Sônia colocou esta epígrafe no seu WhatsApp: Só de ouvir tua voz, de sentir Teu amor, só de pronunciar o Teu nome, os meus medos se vão, minha dor, meu sofrer, pois de paz Tu me inundas. No dia 2 de maio de há vinte anos, os seus medos, o sofrimento, as suas dores findaram. Na madrugada desse dia, a Sônia faleceu, vítima do covid-19.

É com tristeza que informo que nossa amiga Sônia, romântica conspiradora de Cabo Frio, mulher de luta, do coletivo, do chão da escola, mãe e amiga, nos deixou, nesta madrugada – a terrível notícia ecoava nas redes sociais. E serenos comentários compunham a imagem da mulher e professora, com quem tínhamos convivido intensamente: Sônia veio nos conhecer logo no início do projeto Aldeia Viva e eu a tinha como grande referência de luta aqui na cidade, tanto pela valorização profissional, como pela transformação na educação. Que siga abençoada pelas sendas do Infinito! Que seja acolhida nas bênçãos do sagrado!

Tão entusiasmada ela era! Deixou legado! No ano passado, em São Lourenço, levou a Ana e juntou muita gente boa em Cabo Frio! Possivelmente, o velório foi restrito e curto. Um conforto para a família será saber o quanto a passagem dela por aqui foi significativa e o quanto eram importantes as ações dela. A página dela está bombando, ela era muito amada! Escrevi lá, também, dizendo que ela era uma RC e que nossa luta seguiria com a garra dela. Vamos deixar nossas mensagens lá escritas, de maneira que relembre nossos passos.

Gratidão, Janaína, por nos dar notícias, mesmo que sejam notícias tão tristes como esta da Sônia. Que possamos vibrar e emanar muito amor para toda a família dela! Foi ela quem me levou ao ENARC. Pessoa especial, boa amiga, me ensinou muito. O que acham de incluírem a Sônia no memorial? Ela permanecerá viva entre nós. Sigamos, cada vez mais unidos, RC, apesar da distância física.

Os RC partilharam emocionadas mensagens e viriam a honrar a memória da Sônia. Mas, quem eram os RC? E o ENARC? À distância de vinte anos, já fazem parte da história da educação, pelo que farei apenas uma breve explicação da sua origem.

No mês de novembro de 2005, publiquei um artigo no jornal Folha de São Paulo. A certo passo, escrevia: É preciso afirmar que há, no Brasil, muitos professores que dão sentido às suas vidas, dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por, após três décadas de trabalho numa escola que ousou provar que a utopia é realizável, encontrar no Brasil tanta generosidade e responsável ousadia”. Esse artigo foi pretexto para alguns encontros de educadores das escolas “invisíveis”.

O movimento Românticos Conspiradores constituiu-se a partir de uma rede colaborativa, formada por pessoas que buscavam a transformação da educação pública. A finalidade era a de promover a comunicação e o apoio mútuo entre pessoas, organizações e projetos, que tivessem por objetivo contribuir para a superação de arcaicos paradigmas educacionais.

Em próximas cartas, descreverei o fraterno itinerário dos RC, entre os anos de 2005 e 2020.  Também vos falarei do Terceiro Manifesto da Educação Brasileira, do ENARC (Encontro Nacional de Românticos Conspiradores) e da CONANE (Conferência Nacional de Alternativas para Uma Nova Educação).

No tempo da pandemia, uma nova educação tomava forma, cumprindo o sonho da nossa companheira Sônia.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXIX)

Santa Catarina, 4 de maio de 2040

Com a devida vénia, ouso transcrever um e-mail recebido de um pai atento e preocupado. No confinamento do seu lar, a filha tinha produzido um vídeo sobre piratas e manifestado vontade de aprender a “fazer cinema”. O João perguntava:

Como aproveitar este desejo dela no “cinema” e no filme realizado, para explorar os diferentes currículos? Devo “forçar” perguntas nesta fase, para conseguir incluir o que estão a desenvolver nas “aulas online”? O professor da minha filha marcou estes trabalhos, para hoje: Português: gramática – determinantes (artigos definidos e indefinidos, possessivos e demonstrativos); Matemática: diagrama de caule-e-folhas; frações; tabuadas; operações; unidades de medida de comprimento; Estudo do Meio: solos e formas de relevo; meios aquáticos; sistema solar; pontos cardeais; itinerários; Cidadania: ser responsável.

O que poderia aquele pai fazer, perante tal absurdo? Que “conselho” eu poderia dar a um pai, que demonstrava tanta preocupação e sensibilidade? Não soube o que responder a estas interrogações:

Devo pedir-lhe por exemplo um texto sobre piratas, para incluir a gramática? 
Para incluir a matemática, devo pedir-lhe que escreva sobre o valor dos tesouros encontrados ao longo da história? Como repartiria esse valor pela família? Quanto mediam os barcos piratas? Os baús teriam que ter que volume, para conter (x) moedas? No estudo do meio, deverei pedir-lhe que fale sobre os locais onde foram encontrados os tesouros? Que países? Que características preferenciais do terreno para esconder um tesouro? De “Cidadania” nem vale a pena falar…

Como organizo o desenvolvimento do projeto? Posso usar uma plataforma digital como o MICROSOFT TEAMS e dividir em pastas de temas? Ou tenho que fazer mapas por disciplina e toda a trabalheira “de professor”? E a AVALIAÇÃO? Como sei que aprendeu? Uma apresentação sobre o projeto é suficiente? O trabalho escrito é suficiente? Há um tempo para perguntar novamente sobre o assunto e verificar se a aprendizagem foi adquirida? Peço desculpa pelo trabalho! Um abraço.

Sem que o soubesse, esse pai sabia muito mais de aprendizagem do que o professor da sua filha. Lamentei concluir isso. Lamentei que o professor não se desse conta da farsa da ensinagem. Lamentei que muitos professores se dessem conta da farsa e continuassem “dando aula”.

Outro preocupado pai me narrou um episódio exemplar. O almoço estava na mesa, a arrefecer. E o filho “nunca mais saía da frente do computador”. Foi ver o que se passava. Sem entrar no campo da câmera do computador, espreitou o que o seu filho estava a fazer.

Ele estava a fazer uma prova. E não sabia dar resposta a alguns itens. Vi que o professor estava na tela do computador – este pai era brasileiro e o “ecran” de Portugal é “tela” no Brasil – e, sem que o professor me visse, soprei duas respostas no ouvido do meu filho. Ele escreveu-as na prova.

Mas, o “jeitinho brasileiro” tinha limites…

Professor Zé, deparei com um item, que eu não conseguia resolver. Já não me lembrava de como se fazia “raíz quadrada”.

O pai “não se lembrava”, porque não tinha aprendido. Teve aula sobre raiz quadrada. Saiu-se bem no teste, quando aluno. Mas, teria sido avaliado? Não! Apenas conseguiu transpor paa uma folha de papel aquilo que a sua memória de curto prazo conseguiu reter até àquele momento. Depois, a raíz quadrada “varreu-se-lhe da memória”.

Aquele pai tomava consciência de que o tenham enganado. Os professores, não.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXVI)

Lages, Primeiro de Maio de 2040

E foi assim que tudo aconteceu… chegou a hora de vos contar a saga vivida por professores, que ousaram mudar as suas práticas e produzir inovação.

No primeiro de maio de há vinte anos, uma equipe de educadores lançou na internet o convite para “aprender em comunidade”. Era uma proposta de auto-formação, que dava resposta efetiva a necessidades sociais e educacionais do tempo de pandemia e da pós-pandemia. O gesto de amor e a coragem de centenas de educadores viria a contagiar milhares, como se tratasse da propagação de um “vírus benéfico”.

As práticas, que esse benigno “vírus” preconcebeu, restabeleciam a ligação entre família, sociedade e escola, algo que a escola da Primeira Revolução Industrial havia desfeito. Conciliava aprendizagens presenciais com aprendizagens realizadas através do recurso a tecnologias digitais de informação e comunicação.

Em espaços de aprendizagem físicos e virtuais, os educadores não preparavam projetos para os alunos; construíam projetos a partir de necessidades concretas dos alunos e das suas comunidades. Não faziam inúteis planejamentos de aula; ensinavam os seus alunos a planejar-se, a saber gerir o seu tempo, os espaços, os instrumentos de recolha de informação. Não criavam dependência nos alunos; criavam condições de mediação antropogógica e de desenvolvimento de protagonismo juvenil. Os professores não “davam aula”; construíam roteiros de estudo de tripla dimensão curricular: a da subjetividade, a da comunidade e a da consciência planetária. E os jovens aprendiam a ser autónomos-com-os-outros, assumindo-se como sujeitos de aprendizagem, em contextos de cidadania plena.

Nos primórdios do século XX, a par da denúncia de Ferrière, que dizia ser a escola uma invenção do diabo, Montessori, Steiner, Freinet, Dewey e muitos outros escolanovistas propuseram que se passasse do magistercentrismo à centração da atividade escolar no aluno.

Diversas correntes pedagógicas foram adotadas por instituições de iniciativa particular. Nestas escolas, se continuava “dando aula”, mas melhorada com técnicas concebidas há mais de cem anos. Práticas fundadas no paradigma da aprendizagem misturavam-se com obsoletas práticas instrucionistas.

Com a descoberta do computador, a segunda revolução industrial emergiu, para logo dar lugar a uma terceira, que marcou a aparição da Internet e da automação. As escolas passaram a adotar a lousa digital, fez-se educação à distância, foram recriados sistemas de ensinagem. Surgiram absurdos como a “aula invertida” e “startups”, que engendravam empresas de ensinagem e mercantilizavam o direito à educação.

Aceleradas mudanças sociais, a inovação tecnológica, a pesquisa no campo das neurociências e no da inteligência artificial, a convergência entre teoria da complexidade e produção científica radicada no paradigma da comunicação, exigiam que se reconhecesse a necessidade de operar novas, profundas rupturas. Anunciava-se a aprendizagem centrada na relação.

Em plena 4.0, enquanto a universidade e a maioria das escolas estiolavam no “dar aula”, havia quem assumisse um compromisso ético com a educação e concebesse uma nova construção social de aprendizagem.

A Cláudia (no extremo norte do Brasil), a Edilene (no lugar por onde passa o Trópico de Capricórnio), a Marta (nas terras do sul), centenas de professores e famílias, refletindo uma nova visão de mundo, recusaram participar num crime de lesa humanidade – a prática do instrucionismo – e deram novos mundos ao mundo da educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXV)

Riacho Fundo 30 de abril de 2040

No confinamento desse abril de há vinte anos, eu recebia mensagens de secretarias de educação: A presença do Professor José Pacheco colocou qualidade nas discussões. Relato bem inspirador do mestre e amigo que, brilhantemente, vem praticando e difundindo [a Escola da Ponte], há mais de 30 anos e que tem adeptos no mundo todo. Não eram palavras de “puxa saco”, nem discurso de circunstância. Eram mensagens de agradecimento. Naquele tempo, havia secretarias de educação e “secretarias da educação”; havia secretários e “secretários”. Fiz amizade com muitos e os ajudei. Mas muitas secretarias estavam contaminadas pelos vírus da burocracia e da corrupção intelectual e moral.

Eram monstros burocrático-administrativos insensíveis e que não primavam pela comunicação interna. Talvez por isso os decisores ignorassem a existência de um projeto da iniciativa da própria secretaria, que dava resposta à situação causada pela pandemia, garantindo efetivas aprendizagens. Se a memória não me trai, a secretaria providenciou pacotes de internet gratuitos, uma empresa customizou “ensino mediado pela Internet” e se ofertou conteúdo referente a duas semanas de aulas, para que os professores pudessem usar esse tempo para adaptação. Medida meritória, sem dúvida, não fora o fato de se pretender encaixotar os alunos em salas de aula virtuais, para “estarem de volta às aulas em pleno isolamento prescrito” (sic).

Era admirável o sentido de responsabilidade dos professores, tentando não perder o contato com os seus alunos. Faziam aquilo em que eram competentes, davam aula na Internet e na televisão. Acreditavam que os seus alunos estavam a aprender. Mas, todo o seu esforço foi em vão. Metade dos alunos não tinha acesso às “aulas”. E a outra metade também não aprendia.

Talvez os burocratas da educação não soubessem que já dispunham de professores, que desenvolviam práticas do século XXI. Se esses professores pudessem intervir no tempo da pandemia, com a sua mediação e sem aula, os jovens aprenderiam. Mas, os burocratas da educação optaram por impor às escolas e aos professores o obsoleto modelo de ensinagem do século XIX, iniciativa inútil e sorvedouro de recursos. Passando a sala de aula para a Internet, continuaram negando a milhares de alunos o direito à educação.

No dia do lançamento do programa Escola em Casa, recebi inúmeras mensagens de indignados professores: Esta pandemia desnudou nossos sérios problemas. Pedi muita cautela, para que não se cometesse mais erros no desejo de atender aos anseios de famílias e profissionais. Infelizmente o pior aconteceu. Senti profunda vergonha, um constrangimento indescritível. Expôs-se, sem o menor pudor, a ausência de criticidade das pessoas que apresentavam o programa. E chamavam aquele lixo de aula! Deviam ser acusados de crime contra crianças e adolescentes quem defende esta barbárie e afirma que isto levará aprendizagem aos estudantes. Demorei para me recompor e encontrar a paz. Receio, professor que, quando tudo isso passar, nada tenha mudado!

Esta professora não estava sozinha. Tínhamos gente para começar aquilo que, há muito tempo, deveria ter começado. Tínhamos profissionais competentes, cujas práticas começavam a distanciar-se das desastrosas iniciativas da secretaria.

Se, em 2040, o DF é referência de qualidade em educação, é graças a esses professores.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXIV)

Sorriso de Mato Grosso, 29 de abril de 2040

Na última semana desse abril, me convenci de que o primeiro dia desse mês não tinha sido o único “dia dos enganos”.

Em verdade vos digo que todos os dias estivemos enganados. Notícia na primeira página de um jornal: Vendidas máscaras falsas; Contágio pode disparar em maio! Num site da Internet: Comércio quer antecipar reabertura, para não perder “Dia das Mães”. No WhatsApp: Os órgãos oficiais anunciam mais um recorde de mortes em um dia: 474.

Busquei lenimento em mensagens feitas de carinho e esperança, que recebia de amigos, que não se deixavam enganar: Com o triste dado de hoje, o Brasil ultrapassa negativamente a China, que tem oito vezes a população do Brasil. Estou triste, por tudo isso. A lua, pela sua infinitude me convida, diariamente, a ficar em isolamento, e a esperançar. Suas palavras me fazem sentir menos só, professor. Envio-lhe um texto, que encontrei na Internet: “Dez razões, para que as aulas não reiniciem, enquanto a pandemia não estiver rigidamente controlada”. Dei como resposta:

Dar-te-ei mil razões, para que as aulas não se reiniciem, quando a pandemia acabar. E outras mil, para que nunca mais voltem.

Os jovens queriam poder reencontrar amigos, estavam ansiosos por celebrar a vida, coletivamente. A escola da aula voltaria a propiciar-lhes esse encontro, mas a troco de lhes impor um engano. O vírus mostrara que uma aula, presencial ou virtual, era um ritual em que os professores fingiam que ensinavam, enquanto os alunos fingiam que aprendiam. Eu havia deixado de “dar aula”, desde há mais de meio século. Durante todo esse tempo, fraternal e construtivamente, disponível para ajudar, eu perguntava aos professores:

Todos os vossos alunos aprendem?

A resposta era uníssona: Não. Muitos precisam de aulas de reforço. Muitos reprovam, outros vão par a educação de jovens e adultos

Acreditando na inteligência e profissionalismo dos professores, eu insistia:

Se sabeis que, “dando aula”, negais o direito à educação a muitos alunos, continuareis “dando aula”?

Não respondiam. Refugiavam na sua zona de conforto.

Aos especialistas eu pedia que me dessem um exemplo de pedagogo contemporâneo, que abonasse a prática da aula: Rogava que fundamentassem cientificamente esse dispositivo central dos sistemas de ensinagem.

Os especialistas não sabiam que exemplo dar. Não apresentavam uma explicação científica para a manutenção daquele fóssil pedagógico. E continuavam “dando aula”.

Havia gente séria no chão das escolas, mas também na universidade. Entre os mestres na arte da aula, alguns assumiam estar no fim de um tempo e assim se expressavam:

A presença é fundamental, mas nem sempre ela se traduz como interlocução real. Falar de uma coisa que você está cansado de saber, de cor, chega lá e despeja. Uma aula magnífica, mas que não chega a ninguém, não tem nada.

Esses professores eram profissionais críticos da sua prática e exerciam influência sobre as novas gerações:

Tenho um colega que, quando vê aluno rondando pelo corredor, lhe diz:

O que você está fazendo aqui?

Ah, eu vim assistir a uma aula.

Vai para casa ler, vai para casa estudar!

Mas eu quero assistir à aula de fulana.

Não vai assistir aula de ninguém! Você ganha muito mais, se você ficar na sua casa, lendo o livro para, depois, colocar na sua tese, do que você ficar aqui…

Havia gente séria, coerente. Com essa gente, eu ia fazendo a minha parte, trabalho de beija-flor, para tentar impedir que toda a floresta ardesse.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXXIII)

Alta Floresta, 28 de abril de 2040

Querida Alice, passei a tarde de ontem relendo cartinhas para ti enviadas, no tempo em que nasceste. Tudo o que te contei nessas cartas se passou enquanto aprendias a balbuciar as primeiras palavras, na inocência de não te dares conta de teres nascido em tempos sombrios.

Chegado o tempo de aprender a ler, não deparaste com relatos de opróbios, mas com esperançosas palavras. Como aquelas que leio na carta, que mãos trémulas de um velho emocionado segura: São lugares de verdade, são seres verdadeiros aqueles de que te venho narrando feitos e peripécias. Bem sabeis que as coisas se vão entrelaçando e tomando forma, fazendo sentido.

Nas cartinhas, este avô desocultava memórias de tempos futuros, em que o arrojo de um Ícaro já não teria a temer o ardor do Sol. Não me referia ao “sexto anjo, que mergulhou a sua taça no grande rio Eufrates, secando-o e preparando o caminho para os reis de Leste”, mas àquele que, na Bíblia, avisava o mundo de um eminente “Juízo Final”. De personificação em personificação, te falava da preocupação da gaivota, que meditava sobre o destino das aves que seguem o curso do Tigre e do Eufrates, rumo às longes terras do Norte, para aí nidificar. Sabia que o instinto já havia afastado as cegonhas e os pelicanos de África e que, por força da cupidez de alguns homens, as migratórias aves se arriscavam a perecer a meio caminho de uma longa viagem.

Pois bastou um ou dois meses de isolamento social, para que peixes voltassem à Baía da Guanabara… benigno efeito colateral da pandemia. Contudo, era evidente que a humanidade não aprendia a lição. Provável seria que, após a peste, de novo, os peixes migrassem para a nascente e só restassem nas águas da baía lixo acrescentado de restos de máscaras protetoras do COVID-19.

No tempo em que já eras uma jovem psicóloga e cuidavas das mazelas infligidas a seres de tenra idade, eu penetrava no santuário amazônico, passando Boca do Acre, ou cruzando os limites com Mato Grosso e Rondônia, ao encontro de alguém que era intransigente na defesa da Vida. A minha amiga Fernanda tecera um projeto numa comunidade indígena. Esse maravilhoso ser humano sofria por ver a Amazônia devassada e abandonada à sua sorte.

Os indígenas eram guardiães da Mãe-Terra. Foram, por séculos, dizimados pela varíola e pelo COVID-19, que missionários e turistas trouxeram da Europa e da Ásia. E, no tempo da pandemia, nova ameaça despontava – terras indígenas pendentes de homologação poderiam ser vendidas, loteadas, desmembradas, invadidas. Na era da pós-verdade, a ambição dos agentes de uma economia necrófila, impunemente, intimidava e matava. Vivíamos um tempo de ignomínia dissimulada. Havia quem tentasse ocultar a dimensão da tragédia. Permite que relembre um episódio exemplar.

A prefeitura de Manaus mandara abrir uma cova coletiva num cemitério. A vala comum era necessária, para dar conta do grande número de sepultamentos causados pelo COVID-19. Imagens chocantes de dezenas de caixões alinhados numa vala coletiva foram veiculadas pela Internet e pela TV. Em tempo de pós-verdade, assistíamos à pérfida manipulação da opinião pública. Uma reação negacionista cresceu nas redes sociais, afirmando que o colapso funerário da capital do Amazonas era… fake. E houve quem acreditasse nessa versão dos fatos.

Num e-mail recebido nessa semana, um professor manifestava surpresa e mágoa perante tal absurdo. O meu e-mail de resposta encerrava com duas perguntas:

Quem terá produzido esses bonsais humanos? Qual será a sua, a nossa quota parte de responsabilidade?

Por: José Pacheco

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