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Sopa de letrinhas

Sopa de Letrinhas

Ele não era ético, mas não o sabia. O acaso o protegeu, quando lhe foi confiada uma turma constituída por jovens de 15 anos, todos analfabetos.

Perguntou-lhes: Por que não sabeis ler?

Estou na escola vai para oito anos – disse um dos jovens – e foi sempre assim, como vou dizer: a professora nova chegava e ensinava o a-e-i-o-u. E a gente fazia carreirinhas de as, es, is… Depois juntava o pa-pe-pi-po-pu.

O professor caiu em si. Ano após ano, também havia servido aos seus alunos uma indigesta sopa de letrinhas. Era competente, dava aula na perfeição, bem planejada, apoiada em bons materiais. Mas compreendeu que, se aqueles jovens não aprendiam pelo método fônico, deveria buscar outros modos de alfabetizar. Se não o fizesse, continuaria a ser um professor competente, mas… antiético.

Talvez não por acaso, naquele lugar aprendeu a trabalhar em equipe, libertando-se da solidão da sala de aula. Aprofundou o domínio da alfabetização linguística, enquanto as suas companheiras da equipe de projeto se especializaram em outras alfabetizações. Foi aprender psicologia da aprendizagem, da cognição, da percepção, da memória. Aprendeu mais de vinte caminhos para a alfabetização: o silábico, o global de palavras, frases, contos, o “tu já lê” das palavras geradoras do Freire, o “método natural” do Freinet… Foi aprender a compor repertórios linguísticos e surpreendeu-se com o fato de haver crianças de quatro, ou cinco anos, que identificavam mais de duzentas palavras: em português (Coca-Cola) e até em inglês (McDonald’s). Compreendeu que havia agido erradamente, quando prescindira de um vasto repertório linguístico e obrigava a silabar ca-ce-ci-co-cu, quando poderia aproveitar o conhecimento sincrético das palavras “coca” e “cola”. Que, com o “seu método”, aquele que lhe havia sido ensinado, enviara muitos jovens para classes de apoio, condenara muitos alunos à supletiva educação de jovens e adultos.

Compreendeu que havia ensinado todos do mesmo modo e ao mesmo tempo, no ritmo da aula, ignorando o ritmo de aprendizagem de cada criança. Prescindiu de usar “o seu método”. E, se cada qual aprendia a seu modo, a todos deu oportunidade de aprender a ler.

Subsistia uma dúvida: por que razão ainda havia alunos alfabetizados, que reprovavam? Só achou razões na “teoria dos dotes” e nas teorias explicativas do insucesso por via socioeconômica e cultural.

Rumou à universidade, onde estudou história, psicologia, etologia, sociologia da educação, e aprendeu a ensinar de modo que todos pudessem aprender. Quando lhe deram a conhecer Freinet, Lauro, Bourdieu, Freire, Giroux e outros autores reconheceu a necessidade, não só de operar rupturas paradigmáticas, mas de erradicar um velho e excludente modelo de escola. A dúvida se desfez, quando encontrou um princípio de resposta nas palavras de um Vieira do século 17: O mestre na cadeira diz para todos; mas não ensina a todos. Diz para todos porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns aprendem e outros não. E qual é a razão desta diversidade se o mestre é o mesmo e a doutrina a mesma? Porque para aprender não basta só ouvir por fora, é necessário entender por dentro.

Isso mesmo: a razão maior do insucesso residia numa contradição. Na Universidade, a prática dos formadores era a negação da teoria que “ensinavam”. Os seus professores continuavam dando aula, uma indigesta sopa de letrinhas do século 17.

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Síndromes

Síndromes

Certo dia, perguntei à mãe de um aluno: Por que é que o seu filho não come verdura, feijão ou arroz? É porque não posso contrariar o meu filho – respondeu – O psicólogo disse-me que ele tem sistema nervoso. E isso deve ser muito perigoso. Mas, também, veja lá, senhor professor! Eu não tenho tempo para essas coisas. Eu pus o meu filho no jardim de infância e as educadoras não o ensinaram a comer. O que vale é que, quando volto do trabalho, vou com o meu filho ao McDonald’s. Tem um perto da nossa casa. E, no sábado, vamos ao shopping…

Os pais vão trabalhar, os filhos para a escola. Agora, já vão ainda bebês, cerca dos três, ou quatro meses. Um crime, que tem como contrapartida a chamada “Síndrome do Imperador”: a ditadura da infância, legiões de jovens desprovidos de autoconhecimento e que não reconhecem o outro. Seres narcísicos, caprichosos, hedonistas, deprimidos… narcotizados. Enquanto os netos são encerrados em guetos da infância, os avós são segregados em apartamentos vazios. As famílias não tentam criar vizinhança, comunidade. Terceirizam a educação, enquanto a escola se queixa dos erros de uma educação familiar, que oscila entre o autoritarismo e a permissividade.

A modernidade remeteu-nos para uma ética individua­lista. Carecemos de projetos humanos que não se coadunam com práticas escolares que ainda temos. Carecemos de um novo sistema ético, de uma matriz axiológica baseada no saber cuidar e conviver. Famílias e escolas padecem da “Síndrome da Gabriela”: eu nasci assim, eu fui sempre assim, serei sempre assim.

Famílias onde o diálogo está ausente e o silêncio impera; escolas cassinos, onde tudo é game, uma das modas pedagógicas mais recentes. Escolas onde as crianças fazem tudo o que querem. E onde não querem aquilo que fazem. Professores que ainda não entenderam que o ato de aprender não deverá estar centrado no professor, nem no aluno. E que aprendemos na intersubjetividade, mediatizados pelo objeto de estudo e pelo mundo, a partir de necessidades pessoais e sociais. Desenvolvendo vínculos.

No Japão, entre 1972 e 2013, mais de 18 mil crianças se suicidaram. O pico de suicídios acontece no “regresso às aulas”. Notícia recente dá-nos conta do aumento do número de suicídio de adolescentes. Três estudantes de colégios privados de elite da capital paulista suicidaram-se. O colégio contratou um “especialista em suicídio”, para dar palestras. Uma escola de suicidados torna público que irá desenvolver “um projeto” avulso para combater a praga. Como se palestras pudessem constituir-se em paliativos de um modelo de ensino e de organização escolar responsável por um autêntico genocídio educacional.

Enquanto houver escolas cativas dos paradigmas da instrução, ou da aprendizagem, não agindo com referência ao paradigma da comunicação, quantos Niemeyer serão assassinados em escolas de práticas fósseis, antes de poderem manifestar os seus talentos?

A “Síndrome de Peter Pan” é caracterizada por comportamentos imaturos. Manifesta-se nas mulheres sob a designação de “Síndrome de Wendy”. Talvez parte da explicação do suicídio dos jovens e do genocídio educacional esteja relacionada com estas síndromes. Talvez resida no fato de ainda termos uma educação dominada por ministérios afetados pela Síndrome de Peter Pan e escolas padecendo da Síndrome de Wendy.

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