Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXIV)

Inoá, 2 de outubro de 2042

Quando procurava explicar-vos certos fenômenos, eu recorria a metáforas (nem sempre felizes), que permitiam descrever, por exemplo, as idas e vindas de “pássaros”, personificações de gente a quem um desumano sistema de “colocação de professores” negava a realização pessoal e profissional:

“Foram muitas as lágrimas da partida e muitas foram as vertidas nos reencontros (não acrediteis naqueles que dizem que os pássaros não choram). Foram muitos os voos das aves aprendizes de retorno ao ninho original. Foram tempos de tensa expectativa os primeiros tempos, tempos de ambiguidade, de apreensão, mas também de teimosa confiança.  

Um desses recados de pássaro aprendiz (a que poderíamos chamar Cláudia, ou Vanessa) dizia: 

“É um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce. Medo não sinto, porque não parto sozinho.” 

Numa outra mensagem (nas palavras puras de uma Joana, ou de um André) lia-se: 

“Quero agradecer terem acreditado em mim, fazendo-me sentir como é bom aprender ensinando.” 

E, para não ser fastidioso, apenas mais um excerto do canto dessas almas sensíveis (a que poderíamos chamar Tiago ou Constança): 

“Como era bom ver os professores a começar cada dia com um sorriso, o sorriso que levo comigo para a nova escola, e cuja recordação faz coceguinhas no meu coração.  

A lei era clara: O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orientava-se por “uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes” (sic). Mas, se a lei estabelecia que os professores deveriam trabalhar na comunidade onde residiam, por que os mandavam para longe? 

Pela celebração de um contrato de autonomia com o ministério da educação, a Escola da Ponte conquistou o direito de “selecionar e recrutar o pessoal docente e não docente, nos termos do presente contrato e do perfil do educador do projeto”. Assim rezava o contrato e, a partir de 2004, assim se fez. Até que um ministério de má fé, à revelia do contratualizado, privou a Ponte desse direito. 

No contexto de um sistema de ensino autoritário e moral e intelectualmente corrupto, a autonomia era aparente. Dizia a sabedoria popular que à mulher de César não bastava ser honesta, teria que parecer honesta. Esta expressão era usada em política, para dizer que os governantes, além de serem honestos, precisariam agir como tal. 

A frase original surgiu após um escândalo na Roma do ano 60 a.C., envolvendo o imperador e a sua mulher. Júlio César andava na guerra, e Pompéia vivia muito sozinha. Um admirador da moça aproveitou a ausência do marido, entrou no palácio imperial, perdeu-se nos corredores, foi descoberto e preso. Levado a tribunal, foi absolvido da acusação, pois César ignorou o que se dizia sobre sua mulher, apesar de ter afirmado: 

Não basta que a mulher de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita.”

Roma vivia um tempo de intriga e corrupção, por se ter constituído numa sociedade servida por uma multidão de escravos e dominada por uma casta de ociosos senadores.

Supostamente adúltera, a mulher do César não viveu o mesmo calvário da Capitu. Mas, de algum modo, a degradação dos costumes terá contribuído para acelerar a queda do império – à mulher de César, para ser honesta, não bastaria parecê-lo, seria preciso sê-lo. Não seria suficiente expulsar a mulher do palácio. Outro golpe palaciano também deveria (não só psicanaliticamente) “matar o pai”, dar um “fora” no César. 

Foi o que fez o seu filho Brutus, à semelhança do que fizeram os traidores de todos os tempos.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXIII)

Itapeteiú, no Primeiro dia de outubro de 2042

Foi esta a primeira frase escrita no projeto Fazer a Ponte, nos idos de setenta: “Os professores precisam mais de interrogações do que de certezas.” 

Tentando uma difícil coerência entre o projeto escrito e a prática do projeto, duvidava das minhas certezas. E, com todo o respeito pela hierarquia instalada, questionava imposições e negócios escuros em que a educação era fértil. 

Nos idos de vinte, havia muitos tabus por erradicar. E a criança grande que em mim habitava interpelava tudo o que não tinha explicação, nunca desistia de perguntar, porque nunca saiu da idade dos porquês. 

Netos queridos, nesta cartinha e nas próximas, transcreverei perguntas feitas na década de sessenta e jamais respondidas. Sabei que, nos idos de vinte, a lei nos dizia que quaisquer que fossem as respostas, nelas deveriam prevalecer “critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.”

Perguntei a meio mundo: Por que há “ano letivo”?

Quando decidi ser professor, as aulas começavam no primeiro dia de outubro. Meio século depois, as escolas permaneciam cativas de uma estranha pasmaceira, reproduzindo rituais sem sentido. Apenas a data de início de ano letivo (nesse tempo, havia “ano letivo”) fora modificada. E, quando chegou o tempo de irdes para a escola, poderíeis ser matriculadas, se completásseis seis anos até ao dia 15 de setembro. 

Por que se estabelecera o dia 15 de setembro e não o dia 14, ou o 16? Por que não o dia 25 de abril, ou 28 de maio? Ninguém sabia o que responder. Apenas alguns burocratas tentaram. Mas, quando lhes pedia fundamentação da resposta, fingiam-se mudos. 

Não havia fundamento – científico, como obrigava a lei! – para este e para outros pertinentes questionamentos. 

Nos idos de vinte, o primeiro-ministro japonês, ponderava mudar o início do ano letivo para setembro, e não mais em abril, devido o surto de Coronavírus. Na Austrália, o ano letivo tinha início no final de janeiro. No
Canadá e na Inglaterra, no início de setembro. O Sommersemester alemão começava entre março e abril… 

Nos Estados Unidos, as aulas começavam em agosto, logo após o “Summer Break”. Tal como em outros países de Inverno rigoroso, o fator determinante da escolha da data era o clima. E, talvez, o pressuposto de que a inteligência das crianças pararia de funcionar no primeiro dia de férias escolares e só voltaria a funcionar quando voltassem para dentro de um prédio a que chamavam “escola”. Talvez…

Não havia um período de férias entre os semestres, como era costume no Brasil, havia períodos de descanso, como o Spring Break, Thanksgiving e o Winter Break

Por que havia “férias escolares” simultâneas? Nos projetos de comunidade em que participei, cada aluno, cada família descansava quando precisasse. Beneficiavam de custo mais baixo de alojamento em hotel, pousada, ou parque de campismo. Dispunham de mais espaço nas praias. Engarrafamentos eram evitados. 

Queridos netos, eu estaria errado? É claro que não! Então, se fazia sentido o meu raciocínio, por que haveria “ano letivo”?

No início de 2023, já alguns professores consolidavam as bases de uma nova construção social de aprendizagem. Sentindo-se aptos para ensinar e aprender todo o tempo e sem o costumeiro ano letivo, depararam com a oposição da administração escolar e diretorias, que os proibiu de desenvolver o projeto.

Cívica e respeitosamente, solicitaram à administração e às diretorias a fundamentação (científica!) da proibição. E, perante a ausência de resposta, cívica e respeitosamente, desobedeceram. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXII)

Quissamã, 30 de setembro de 2042

Queridos netos, resgatei do baú das velharias uma pen drive, que ainda funciona, e que contém registos da polémica de que vos falei em outra cartinha. 

O ministro propunha dar autonomia aos diretores, para que pudessem selecionar um terço dos seus professores. Os sindicatos argumentavam que experiência semelhante já fora testada, referindo uma “Bolsa de Contratação de Escolas”, que consideravam ter sido “uma grande trapalhada “.

Alguma razão lhes assistia. Porém, uma estranha cegueira os afetava. Aquela de que Bauman falara, uma cegueira moral e ética daqueles que veem. Aquela a que Saramago, metaforicamente, se referia, uma cegueira social. 

O nosso Nobel apelava ao dever moral dos que enxergavam: 

“Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, cegos que, vendo, não vêem”.

Os professores não se sentiam profissionalmente realizados, valorizados. E a cegueira sindical impedia que se identificasse a origem do “burnout”. E eis que o amigo António partilhou das minhas preocupações:

“Bom dia, querido amigo Zé! Como vai a vida? Quanto a mim, vou andando, entre o encerar de um ano letivo e o início de outro ano letivo. Com projetos que deveriam avançar, mas que esbarram no imobilismo habitual. Ontem, estive numa reunião que o agrupamento denomina de “autoformação e partilha” (um nome interessante para referir algo que não serve para nada). Estou muito desiludido.”

Estavam cegos os sindicalistas, quando usavam a tradicional lengalenga:

“Defendemos o primado da colocação de professores pelo concurso nacional e pela sua graduação profissional. Um concurso nacional, com a lista de graduação profissional, é a maneira mais justa de colocar professores.”

Em que consistia essa “graduação profissional”? Que parâmetros e critérios encerravam? Seria mesmo a “maneira mais justa”? 

Não era! O tempo de serviço em funções instrucionistas não dotava os professores de maior competência profissional. E a formação contínua nenhum conhecimento lhes acrescentava, apenas certificados de frequência de inúteis cursos. 

Eu acreditava que os professores seriam capazes de transcender os erros cometidos na sua formação. O desafio era imenso e poderia parecer inacessível a comuns mortais, mas sê-lo-ia, se práticas corporativistas não se constituíssem em obstáculos. O Nunziatti dizia que “não há mudanças nos nossos modos de fazer sem uma transformação nos modos de pensar”. 

A formação profissional não nos qualificara se não para a reprodução de um só (e inquestionável) modelo educacional. Chegavam às escolas professores que não sabiam por que faziam o que faziam, e que não faziam algo diferente por não terem sequer uma ideia do que seria possível ser feito. Apenas esperavam o tempo necessário para subir de escalão e na “carreira”.

Naquele tempo, eu era um dos mais antigos sindicalistas. Tinha passado por órgãos de direção e até tinha “engolido sapos”, para proteger um sindicato. Mas, para o vosso avô a paciência já não era virtude. Já não tinha idade para ser politicamente correto, ou suportar desmandos, sobretudo quando eram provenientes de organizações a que eu dedicara toda a vida.

Na tentativa de ser útil e até mesmo de “servir de ponte” entre um sindicalismo do século XXI e um ministério do século XIX, enviei cartinhas ao João, quando ele ainda estava ministro, e lhe pedi que delas desse conhecimento ao António, que estava secretário. 

Havia quem dissesse que eu era “casamenteiro”. Mas eu só pretendia por “o lobo a pastar com o cordeiro”, se cordeiro e lobo houvesse e se o Homem não fosse o lobo do Homem.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXI)

Itaupuaçu, 29 de setembro de 2042

No setembro de vinte e dois, pouco tempo antes do início do ano letivo, enviei ao João Costa uma mensagem por e-mail (lembrais-vos dessa ferramenta digital, que permitia enviar e receber mensagens?) e lhe pedi que dela desse conhecimento ao António Leite, seu secretário de educação.

Acreditava que eles seriam dignos da minha lealdade, que fossem pessoas de bem. Não as “pessoas de bem” de um personagem trágico de nome Ventura, mas seres humanos que, beneficiando do exercício do poder, o pusessem ao serviço de uma nova educação.

Não obtive resposta à mensagem, talvez porque eu tivesse utilizado o endereço de professor e não o de ministro. O João estava ministro da educação, não era ministro. Antes, havia estado secretário, tal como o António. E, após o desempenho desse cargo, ambos voltariam, respetivamente, para a academia e para a administração. 

O João era formado em Linguística e compensava com sensibilidade e intuição pedagógica carências de conhecimento no domínio das ciências da educação. Por essa razão, o admirava enquanto pessoa e lhe manifestava solidariedade, enquanto se mantivesse no cargo de ministro. 

Sendo escuteiro, o exercício do seu mandato refletia a aplicação de princípios em tudo idênticos àqueles que o vosso avô adotara. Daí que merecesse a minha colaboração, acaso em algo eu pudesse ser útil. O escutismo visava fazer com que o jovem assumisse o seu próprio crescimento, tornando-se exemplo de fraternidade, lealdade, altruísmo. 

Na relação com os outros, pautava a sua atuação pela promoção da justiça e da paz, da compreensão e da cooperação, no respeito pela dignidade do Homem e da integridade da Natureza. Baden-Powell havia escrito que a fragilidade das democracias estava no homem que recusava pensar por si, que não aprendera a pensar bem. Por isso, se requeria que os jovens escutas fossem amorosos, leais e participativos, isto é: que exercessem cidadania plena.

Enviei nova mensagem ao João, na intenção de o ajudar a suportar a pesada tarefa de cuidar da humanização de um monstro burocrático, que dava pelo nome de “ministério”. E passei a dar conhecimento dessas mensagens ao meu amigo António. Não o António Leite secretário, mas o Quaresma, um ilustre professor de chão de escola.

Perguntareis, netos queridos, por que incluí o António professor nessa epistolar e fraterna atividade. Vo-lo direi.

Em 2022, o amigo António iniciava o último ano letivo da sua vida de professor. Fora um lutador pela dignificação da Escola Pública e escrevera um livro precioso: “Recriar a Escola Pública, Refundar o Sistema Educativo”. Na introdução a essa obra, o meu amigo isto escreveu:

“Este livro é marcado também pela constatação de que a escola pública (aquela que me interessa particularmente, por razões de justiça e equidade), é atualmente uma instituição muito desadequada às necessidades deste primeiro quartel do século XXI e que, por isso, necessita ser recriada. 

Para que a necessidade desse processo de mudança da escola seja percebida, este livro começa por analisar a sua génese para depois se abordar um conjunto de estratégias de ação educativa e pedagógica que podem concorrer para a renovar, promovendo uma aprendizagem significativa, profunda e contextualizada, assente na autonomia e na autorregulação da aprendizagem, de modo a formar crianças e jovens para a construção de um futuro feliz e de sucesso.”

A mudança da escola pública, séria, profunda e abrangente; disruptiva, numa única palavra, fará com que o sistema educativo possa evoluir verdadeiramente.”

E evoluiu…

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MX)

São Caetano, 28 de setembro de 2042

No Facebook de há vinte anos, li uma mensagem anunciando o “lançamento do início das obras do maior complexo educacional” (sic), que uma cidade brasileira já vira. 

O amigo que me enviou a mensagem era uma pessoa que eu admirava, um ser humano generoso e culto. Porém, na busca por melhores dias para a educação, deixara-se seduzir pelo chamado “Modelo Finlandês”. 

Eu assumira com o meu amigo um compromisso e, pela lealdade devida a esse amigo e porque nunca pecara por omissão, seria meu dever de consciência comentar a ocorrência. Assim fiz. 

Não emiti uma mera opinião. Elaborei-o a partir de alguns excertos do anúncio da obra, fundamentando-o no conhecimento da educação que na Finlândia se fazia e em contribuições das ciências da educação. Nesta cartinha transcrevo parte desse comentário

O “complexo educacional” apresentava-se como “Escola do Futuro”, mas não passava de um amontoado de prédios, uma escola do passado, mais uma importação de modismos pedagógicos.

Disse-me esse bom amigo que se tratava de “nova arquitetura”, mas ela era velha de décadas. Encontrei-a na Escandinávia, na década de oitenta. Adaptei-a em Portugal e me arrependi. Debati-a em Roma, muitos anos atrás. 

Lia-se no “Projeto” que haveria *gestão democrática” e uma escola voltada para o desenvolvimento comunitário, integrada com as famílias e que funcione aos finais de semana.”

Mas, que gestão democrática seria possível, se os professores continuavam a padecer do dever de obediência hierárquica? A expressão “desenvolvimento comunitário” não passava de mais um chavão abusivamente decalcado de um qualquer manual de ciências da educação. E como se daria a “integração das famílias”?  Por que só haveria “integração” nos finais de semana? 

Aspirava-se à “dedicação exclusiva” dos professores e ao estabelecimento de “metas de desempenho”. Para tal, se fizera “uma parceria com uma organização”, que (na opinião do meu amigo) dispunha dos “melhores especialistas do assuntoe de uma “nova formação”

A “dedicação exclusiva” e a “avaliação de desempenho” não eram novidade. A Ponte já as concretizara, trinta anos antes da Finlândia. E quem eram os formadores dessa “nova formação”? 

Eram economistas, licenciados em Letras e Direito, produtores de material didático, diretores de startups, funcionários de “Edtechs”, “padronizadores da avaliação”, administradores, doutores em Relações Internacionais… Que saber-fazer detinha essa bem-intencionada gente, que lhe permitisse desenvolver uma “nova formação”, uma formação transformadora?

A mensagem terminava com a notícia da formalização de “uma aliança com uma universidade estrangeira”, para que se “transferisse o pacote tecnológico de formação de professores para as cidades brasileiras”.

Tratava-se de uma afirmação leviana, operação de marketing. As ditas “melhores práticas de formação” não viriam do Norte, elas estavam no sul. Muito menos seriam provindas de uma qualquer universidade.

Durante muitos anos, muito dinheiro público foi desperdiçado em megalómanos edifícios e viagens a países do hemisfério norte, enquanto escasseava o apoio a projetos de qualidade superior, no sul. 

“Enchi meus olhos d’água. Esse era um grande sonho de meu pai. Mas, sonho não enche barriga de ninguém! Eu sou muito simples e prática nessa vida! E vejo perder-se tudo, por falta de dinheiro.”

A Maria lamentava o fim de um projeto de humanização, enquanto milhões eram desperdiçados em mais um “elefante branco”, que acabaria por cair na lata do lixo da história da educação.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MIX)

Posse dos Coutinhos, 27 de setembro de 2042

No final do setembro de há vinte anos, partidos de direita radical na Europa celebravam a vitória eleitoral de uma Giorgia italiana. O Chega português saudou a vitória da direita italiana, dizendo que ventos de mudança iriam chegar a Portugal. 

Não chegaram, como sabemos. Mas, no ventre da democracia, a besta fascista despertava de longa hibernação e assolava a Europa.

Na Rússia, o patriarca dizia que sacrificar a vida na guerra, para cumprir dever, “lavava todos os pecados”. Cirilo rezava pela vitória da Rússia na guerra da Ucrânia, dizendo:

“A Igreja Ortodoxa Russa percebe que se alguém, movido por um sentido de dever, pela necessidade de cumprir o seu juramento, permanece fiel à sua vocação e faz o que pensa ser o seu dever, e se, no cumprimento deste dever, essa pessoa morre, então, sem dúvida, comete um ato equivalente a um sacrifício pelos outros”.

Absolutamente, nada pode atenuar, justificar barbaridades deste jaez. Aceitá-las, justificá-las, ou atenuá-las, seria negar a essência humana. Quando um alto responsável pela igreja assim se pronunciava, o que se poderia esperar da Igreja? Lembremo-nos que a Igreja da Inquisição colaborou com ditadores.  

Quando Cirilo rezava pelo “triunfo da justiça” – sem justiça não poderia haver paz duradoura – de que justiça falava, a que paz se referia?

A invasão russa da Ucrânia, justificada pelo Vladimir com a necessidade de “desnazificar” e desmilitarizar a Ucrânia, para segurança da Rússia, ainda iria durar alguns meses, sob a ameaça de guerra nuclear. Nesse tenebroso setembro, mais de três milhões de refugiados vagueavam pelo mundo. E, desde o início da guerra, para além de muitos milhares de mortos militares, se calculava que mais de seis mil civis haviam perecido.

Por todo o mundo, uma onda de barbárie crescia. Os jornais davam conta de perversidades, de crueldades:

“Jovem ator admitiu ter assassinado a sua mãe, com um tiro na nuca. A polícia informou que Ryan também planeava matar políticos e cometer um atentado na faculdade onde estudara.

Criança de três anos foi intubada, após o irmão gêmeo a balear com arma do pai.

Leandro matou a ex-namorada, por não aceitar o fim do relacionamento.

Homem amputou perna em frente à filha de cinco anos. A esposa elucidou as autoridades sobre uma possível motivação religiosa, A mulher disse que ele lhe contou que era Jesus Cristo e que ela tinha de acertar contas com Deus”.

Na Ucrânia, mais de trinta civis morriam, num ataque contra uma estação de comboios, quando, nesse local, centenas de pessoas esperavam fugir da região.

O meu amigo Adélio assim descreveu esta e outras atrocidades:

“Seres humanos, que ainda ontem tinham lar, fogem agora aterrorizados dos escombros da vida que os viu nascer, carregando apenas os filhos e o nada que lhes restou. E nenhum deus salvou a Alisa, uma menina de sete anos, morta no jardim de infância. Nem Polina, que estava no último ano da escola primária. Nem cento e três crianças, cujos nomes não chegaram às parangonas noticiosas. 

Sem misericórdia, o bombardeamento à maternidade de Mariupol esmagou a pélvis e deslocou o quadril a uma mulher grávida, matando-a a ela e ao seu filho, arrancado já sem vida das suas entranhas. 

O grito desta mulher, que abraçando o corpo do seu filho, suplicava que a deixassem morrer, bombardeou-me a esperança e reduziu a escombros a minha fé de que os oitenta e cinco milhões de seres humanos que tombaram na última grande guerra tivessem enterrado para todo o sempre a horrenda besta que, de tempos a tempos, a humanidade deixa cevar no seu seio.”

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MVIII)

Itapeba, 26 de setembro de 2042

Hei-de voltar a falar-vos de polêmicas, que deram muito que falar e que acabaram em nada. Mas, hoje, quero contar-vos uma estória. Insisto em contar histórias que o desgaste da memória ainda não apagou. 

Falo-vos dos primeiros tempos de uma viagem em busca de uma educação humanizada. A vida é feita de reencontros e somos um pouco de cada ser que encontramos na viagem. Descreverei um desses encontros, um episódio luminoso. Meditai no que passo a contar. 

Foi numa São Paulo frenética, num fim de tarde, enquanto viajava de carro entre dois aeroportos. O motorista era conversador e de fala fluente. E a conversa (ou melhor, o monólogo) arrancou ao mesmo tempo que a viatura. Pensava eu ter de aguentar a costumeira conversa sobre o tempo que fazia… enganei-me, pois o motorista falou-me da sua infância no Nordeste. 

Contou-me histórias de fome e abandono. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado, precocemente, da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro. 

Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta estória igual a tantas outras estórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros. Mas, o melhor está para vir. 

A certa altura do monólogo, parámos nuns semáforos. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala: 

“Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?” 

Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta. 

“Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou”. 

Assenti com um aceno a que não deu atenção. E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica:

“O senhor sabe o que faz a minha mulher? Ela é professora! 

Quando nos casámos, ela não tinha estudos e quis tirar um curso. Só tinha um problema: não gostava de ler. 

Eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso.” 

Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato: 

“A minha mulher trazia livros para eu ler. À noite, eu lia. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fazia as provas e ficava aprovada. E, assim, fez o curso de professora”

Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. Ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Steiner, Dewey, Piaget… E rematou a conversa, porque estávamos a chegar ao nosso destino: 

“Para o senhor deve ser difícil compreender o que vou dizer, porque são assuntos da Pedagogia, da Educação… Compreende?” 

Não retorqui. E ele concluiu, dizendo: 

“Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem às crianças. E até me deu vontade de chorar. “ 

Aquele motorista talvez nunca viesse a saber o quanto me comoveu a sua estória. Nunca pude manifestar-lhe a minha gratidão, porque o não pude fazer, naquele momento – o nó que sentia na garganta ameaçava desatar-se…

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MVII)

São Vicente de Paula, 25 de setembro de 2042

Mal o ano letivo começara e já polémicas fúteis eram criadas. Centrais sindicais recusavam a possibilidade de as escolas poderem escolher os seus professores. O ministro avançara com uma proposta nesse sentido, proposta coerente com o programa de governo e que denotava coragem cívica da parte do ministro, algo inédito até então.

A proposta do ministro era inédita, mas não era original. Em 2004, o contrato de autonomia celebrado entre o Ministério da Educação e a Escola da Ponte já contemplava essa possibilidade. 

Os professores não se candidatavam a uma escola perto de casa; faziam concurso para participar num projeto coerente com a sua visão de mundo e de educação. 

 Em 1996, a Ponte recebera o primeiro prémio de um concurso de projetos inovadores lançado pelo ministério. Tinham passado vinte anos sobre o início do projeto “Fazer a Ponte”, duas décadas de afirmação de dignidade profissional, de excelência académica e inclusão social. 

Em 2004, quase trinta anos após o seu início, um contrato de autonomia foi celebrado com o ministério da educação. E a autonomia mitigada desse documento contemplava a possibilidade de escolhermos os professores necessários (e leais) ao nosso projeto. 

Tinham passado quase trinta anos de difícil gestão. Para além de torpes tentativas de destruição sofridas, a mobilidade dos professores se constituía em obstáculo à mudança e inovação. Ano após ano, éramos obrigados a voltar ao início do projeto, formando os professores que um sistema de colocações cego e inumano nos enviava. Chegavam sem saber o que fazer, sem jamais terem lido o nosso projeto, sabendo apenas… “dar aula”. 

No final de cada ano letivo, professores “agregados” eram obrigados a “concorrer” e víamo-los partir, para não mais voltar. Na sua maioria, tinham-se adaptado ao “método da Ponte” (como chamavam ao nosso modo de agir). Alguns partiam banhados em lágrimas. O “concurso” era implacável; o sistema, desumano. 

Talvez tentando recompensar a Ponte dessas perdas e danos, experimentalmente, o ministério nos concedeu o direito de escolha de professores. Exatamente aquilo que o ministro propunha em 2022. 

Longo e penoso foi o caminho para a autonomia permitida pelo contrato. O concurso de recrutamento de professores da Ponte era universal e obedecia a parâmetros e critérios bem definidos. Mas, todo esse cuidado não evitou que os burocratas se manifestassem e que novos corporativismos surgissem. 

Durante um congresso, um companheiro das lides sindicais me interpelou nestes termos:

“Colega, a Escola da Ponte abriu um grave precedente. A partir de agora, qualquer diretor pode contratar um amiguinho seu. Uma diretora, que tenha uma filha para dar emprego, pode contratá-la. Não vão faltar “acordos de comadres”. 

O meu interlocutor foi, entusiasticamente, ovacionado. E eu respondi:

“Considero inadmissível que um sindicalista admita que haja professores antiéticos e que possam viabilizar “compadrismo”? 

Haverá diretores desonestos? Crês que haja educadores desonestos?”

Ficou calado. Depois, se penitenciou das insinuações. E dali se foi. Hibernou e voltou à carga, trinta anos mais tarde. De novo se recusava a possibilidade de as escolas selecionarem professores, na adesão a valores e princípios do seu projeto educativo.

Em alguns pontos o ministério e os sindicatos estavam de acordo. Ambos duvidavam da honestidade dos diretores das escolas e consideravam os professores incompetentes para gerir as escolas em autonomia, outorgando-lhes atestados de menoridade cívica. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MVI)

São Pedro da Aldeia, 24 de setembro de 2042

No mesmo mês em que se denunciava a triste situação da formação de professores, outra triste situação era assunto na comunicação social: o drama da colocação dos professores, no início de cada ano letivo. Um programa da manhã da televisão portuguesa exibia “a dor de uma professora, que “para dar aulas”, vivia longe dos seus. A professora Branca mostrava-se emocionada, ao falar de vida vivida muito longe da sua família:

“Os primeiros dois meses são de adaptação. E como mudar de emprego todos os anos. Choro muito. Falta-me o suporte, a família, os miúdos”.

Susteve a fala, visivelmente emocionada. Enxugou as lágrimas e disse:

“Peço desculpa. Eu gosto muito daquilo que faço. E, todos os dias, fazemos uma videochamada. Mas vivo ansiosa. Nesta altura do ano, pergunto: Vou ficar colocada? Na primeira reserva de recrutamento? Na segunda? Na terceira? É sempre uma incógnita e uma angústia.

Quando fico colocada, tenho de procurar um alojamento, um alojamento que não seja muito dispendioso.

Qualquer dia, vou conseguir trabalhar perto de casa, obviamente”.

Qualquer dia… na reserva de recrutamento… Que absurdo!

Num município do interior do país, conheci a Marta. “Colocada” a quatrocentos quilómetros de casa, eu a via chorar, definhar. Sempre que podia, saía num fim de tarde, viajava para junto da família e regressava no dia seguinte. Chorando:

“Professor Zé, o meu filho João está doente. O meu marido tem de ir trabalhar. Eu não posso largar o meu emprego. E não tenho como pagar a alguém, para ficar com o João.”

Todos os professores, sem exceção, moravam longe dos seus lares. Nenhum deles residia nesse município. Todos ansiavam poder, um dia, trabalhar perto de casa. E era isso que estava escrito na lei:

“Artigo 48.º da Lei de Bases do Sistema Educativo: O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respetivos docentes.” 

Por que não se cumpria aquilo que a lei estabelecia?

Talvez porque os trabalhadores da educação estavam divididos. Havia efetivos, substitutos, contratados… havia diferentes salários para idênticas funções. Era esta a indigna situação, que o ministério impunha e os órgãos de classe não contestavam:

O vencimento-líquido de um professor contratado era pouco mais de mil euros. E havia professores universitários que ganhavam mais de cinco mil euros por mês. Por que este abismo salarial? Era vergonhosa a situação! Era inconcebível mantê-la! Perante algumas situações, cheguei a sentir vergonha de ser professor.

Muitos obstáculos se ergueram face a movimentos de renovação. Ora eram lideranças tóxicas, ora era o autoritarismo da administração. Sofríamos o assédio político e agressões de uma sociedade doente. Suportávamos o peso de uma cultura profissional degenerada e os efeitos de uma formação deformadora.

Apesar dos pesares, na década de vinte, o vosso avô ainda conseguiu reunir forças – as poucas, que restavam de cinquenta anos de andarilhagem – para, num último impulso, acompanhar fazedores de futuros num presente auspicioso. No setembro de vinte e dois, a vida só poderia… melhorar.

No assomo de uma breve crise existencial dos idos de cinquenta, o Senhor Cardoso me aconselhou:

“Zé, fica tranquilo. Para alcançares o que desejas alcançar, bastará que idealizes o real e realizes o ideal.”

E assim foi. A década de vinte deste século foi testemunha da realização de uma nova construção social, até então apenas idealizada.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MV)

Araruama, 23 de setembro de 2042

Aconteceu no fim dos anos sessenta, num tempo em que os jovens da minha geração tinham por curto horizonte uma guerra em África e fronteiras solidamente vigiadas. 

O João, futuro professor era, ao tempo, um jovem quase a fazer vinte anos. Encontrou o Paulo, num cineclube. Beberam uns tintos, conversaram sobre o último filme do Bergman. 

O Paulo disse sentir-se sufocado pelo silêncio e pela indiferença reinantes num país de brandos costumes. Depois, foi cada qual para seu destino. O Paulo, sozinho. O João, seguido por um “cinzentão” da polícia política já seu conhecido de “outros passeios”. 

Já passava da hora de jantar, quando o telefone tocou. Um irmão do Paulo perguntava se o João o vira, nesse dia. Era o dia de o Paulo fazer dezoito anos. A festa-surpresa estava preparada, a mesa posta, mas o Paulo ainda não tinha chegado a casa. 

O João tratou de o sossegar. Eram nove horas da noite. Estivera com o Paulo até às oito. No caminho entre o cinema e a casa não gastaria mais de meia hora. Talvez se tivesse encontrado com amigos e estivesse a comemorar o aniversário num boteco qualquer.

Na manhã seguinte, o João passou pela casa do amigo, para lhe dar uns “parabéns atrasados”. A família estava ausente. Só a irmã mais nova o atendeu. Olhos chorosos, sem dizer uma só palavra, abriu a porta e, como era habitual, conduziu-o até ao quarto do Paulo. Em cima da cama, estava um poema de despedida. 

Na certidão de óbito, o médico registou a hora exata do suicídio: “vinte horas e dez minutos”: dez minutos após o encontro com o amigo João.

No último ano dessa fatídica década, muitos amigos do João optaram por transpor a fronteira, a caminho do exílio. Outros passaram a última das fronteiras: a das profundezas de um rio, ou o mergulhar no ácido de drogas pesadas. 

Era o que estava prestes a suceder com o Pedro, quando o João o encontrou, caído na cave de um bar. Exangue, com um olhar manso, implorou ao João que lhe injetasse a droga nas já massacradas veias. Em desespero, o João fez a seringa em pedaços. E implorou: 

“Pedro, deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar!” 

Chamou uma ambulância. Acompanhou o Pedro ao hospital. Mas, quando foi obrigado a deixá-lo, estava quase certo de que a morte levaria mais um amigo.

A vida fê-los percorrer diferentes caminhos. O João passou à clandestinidade, na oposição ao regime ditatorial. Não mais voltou a ver o Pedro. 

Decorridos vinte anos, viajou até Paris. Enquanto lia as inscrições nas paredes do Arco do Triunfo, entretinha os ouvidos em conversas de gentes de origem diversa, numa multiplicidade de idiomas que nem tentava decifrar. Subitamente, num português com sotaque francês, uma voz familiar fê-lo voltar-se: 

“Deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar…” 

Por detrás de um rosto burilado por muitos anos e duras experiências, reconheceu o olhar manso do seu amigo Pedro. 

Abraçaram-se em silêncio. Choraram em silêncio. 

Haverá palavra, numa qualquer língua, que faça sentido ser dita, quando se saboreia o resgate de uma vida? Ficaram sorrindo longos e saborosos instantes. Depois, desceram a avenida, conversando, como se fora há vinte anos.

O Pedro passara longos meses lutando contra a tentação do regresso à heroína, agarrado a uma frase que usava como âncora:

“Deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar”. 

Passara por hospitais e clínicas de recuperação de toxicodependentes. Refizera a vida. Casara com uma cidadã francesa. Tinha dois filhos. Considerava-se uma pessoa feliz.

Encontrei o João, num dos meus passeios matinais. Permanece igual a si próprio. É um professor salva-vidas.

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