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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXIV)

Campinas, 23 de agosto de 2042

Hoje, nem precisarei de puxar assunto, nem de invocar memórias. Achei no baú das velharias um belo email da minha amiga Fátima. Com a devida vénia, dele extraio alguns trechos.

“Apesar do muito que quero ver florescer a Educação verdadeira, aquela sonhada pelos grandes pedagogos e tão necessária, confesso que, se me convidassem, amanhã, para começar a desbravar esse tão dourado sonho, provavelmente, me encheria de apreensões. Por distintas razões, algumas das quais só a mim pertencem, sei que me passaria pela cabeça e que apoquentaria o meu coração um número considerável de dúvidas e receios. Talvez acreditasse não ter já forças para estar à altura do esforço requerido. 

Foram quase três décadas a dar muito, nem sempre recebendo retorno na alma, e garantidamente não recebendo o valor justo de quem escolheu, porque sentiu o apelo desde cedo, a inigualável missão de educar. Educar como mostrar caminho e fazer cada um acreditar no seu talento único e no quanto é especial. 

Apesar de não ser por almejar uma vida desafogada que um professor abraça esta profissão, não posso deixar de pensar por quantas cabeças terá passado a ideia, ao ouvir falar de novos projetos, que, para o que ganham, para o que o (des)valorizam, já está muito bom o que fazem. E, de facto, tantos, tantos, têm dado tanto, e há tanto tempo! Eu sei, porque o vi e o vivi.

Urge cuidar das crianças e jovens, mas é urgente, também, cuidar dos professores, essas almas esquecidas, que tantas vezes foram carne para canhão de frustrações várias ao seu entorno (assim como, depois, o são, de forma mais ou menos consciente, os alunos).

Não me ponho fora desta equação: a de ter descarregado frustrações advindas da exaustão e da impotência junto dos que, no fundo, só queria ajudar. Mas como ajudar, se nos sentimos a naufragar?

A tarefa dos professores que querem a mudança não é pequena, num sistema, veja-se ou não, creia-se ou não, moribundo. (Às vezes, ver é demasiado doloroso).

Sei que, apesar dos que já desistiram, dos que desistirão, dos que não acreditam e dos que ficam ou se ficam, a mudança vai acontecer. Pois tudo é melhor do que ver o desânimo na cara de tantos milhares de jovens, ao pensar no regresso para a sala de aula.

Tudo é melhor do que sentir o desinteresse, fruto de tanta imposição e castração. Pois tudo é melhor do que compartilhar a angústia por estar ali, por mais aquele teste, por mais aquela inutilidade, por mais uma aprendizagem a curto prazo e nada significativa. Do que uma vida que nos passe ao lado.”

A mensagem da Fátima chegou num tempo em que o ministério lidava com a falta de professores e procedia à “recuperação de aprendizagens”. Há muito tempo, o amigo Nóvoa apontara a falência da via reformista e dissera que, na “educação do futuro”, não haveria sala de aula. Porém, o ministério insistia em isolar professores em salas de aula e permanecia perdido no labirinto de precárias reformas.

Nóvoa era conselheiro de um governo estável e o novo ministro dispunha de quatro anos para operar mudanças eleitoralmente prometidas.

No agosto de vinte e um, mais uma vez, atravessei o mar, ao encontro de utopias por realizar. Durante um ano, percorri dezenas de escolas, agrupamentos, universidades, comunidades. Ainda havia professores vivos. Uma nova geração de todas as idades havia tomado uma decisão ética. 

Lá ficaram a Fabi, a Jana, o Rafael. Lá voltaria a Cléo, para ajudar o António a esperançar. Finalmente, se iria cumprir a Educação de Portugal anunciada pelo Mestre Agostinho.

No agosto de vinte a dois, dei essa boa-nova ao ministério da educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXIII)

Regência, 22 de agosto de 2042

Após a primeira das pandemias deste século, duas palavras caraterizavam os encontros entre seres humanos: “virtual” e “presencial”. O presencial e o remoto digital caraterizavam o “novo normal” das escolas, enquanto as redes sociais criavam a ilusão da proximidade. Nunca de tantos instrumentos de comunicação a humanidade dispusera e nunca tão solitários os seres humanos viviam. 

Na contramão da desventura, eu privilegiava o encontro onde poderia abraçar. Na tarde de um domingo ensolarado, a Natália e a Cordélia me levaram a uma aldeia indígena de São José de Imbassaí, onde conheci a Nena, mãe da Sofia e da Luna, e um Darcy guarani. No mesmo dia, aconteceria o encontro (presencial) com o amigo Jarbas, pai do Martim e da Amora. 

São José do Imbassaí era as pessoas que nesse lugar viviam e que eu (presencialmente!) deveria conhecer. Por lá andarilhei, transformando encontros (presenciais!) em oportunidades de fazer novos amigos e de ajudar a fundar comunidades. 

Regressado ao Brasil, numa tarde do agosto de há vinte anos, num encontro (presencial!) conheci a mãe de duas maravilhosas crianças. Tivéramos esporádicos contatos virtuais, num dos quais me apercebi de que, sete anos antes, eu pegara ao colo um dos seus filhos. 

À semelhança de outras amorosas mães, a mãe Marcela estava possuída de um legítimo desassossego, atenta ao perigo de distorção de infantis destinos. Apreensiva, pressentia atitudes de modelagem no agir ensinante do professor do seu filho. Preocupava-se que houvesse professores que não conseguissem ensinar, mas preocupava-se ainda mais com aquilo que ensinavam. 

Ainda que de tal não tivessem consciência, os professores transmitiam valores. E, em função dos seus sistemas de crenças, impregnavam os alunos de uniformização (nesse tempo, muitas crianças eram obrigadas a usar uniforme) e de conformismo. 

Já dizia o Jung que, por força de tais desmandos, todos nascemos originais e morremos feitos cópias. Conversámos. E encontramos modos de proteger os seus filhos. Como Buda, a Marcela sabia que em nossas vidas, a mudança é inevitável, que a perda é inevitável e que a felicidade reside na nossa adaptabilidade de sobreviver ao que há de ruim. E cuidava de não saber tudo o que o seu filho precisaria saber, para saber quem era. 

Protetora, o acompanharia nas aprendizagens que faria nos encontros e desencontros que a vida lhe reservava. A Marcela preservava os seus filhos de presunçosas sapiências de adulto. Cumpria a primeira das regras da maternagem: procurar aprender o que eles eram, no que pensavam, para além do que se pensava que eles deveriam pensar, do que eles deveriam ser.

“Seguia a criança”, como fizera a mãe solteira Montessori. Muitos anos antes, também os olhos do André eram meus guias. Neles fundia o meu olhar, para me ir refazendo. Mas se o seu olhar se voltasse para dentro, a viagem interior conceder-me-ia idêntico deambular de rumos novos, que percorreria se eu quisesse e se ele quisesse. 

Não fora o não-exemplo do meu avô (talvez um dia vos conte), eu acabaria eletricista, como estava escrito no meu retorcido destino de criança. O destino também se poderia distorcer. Bastaria pensar de modo a libertar ideias, a afagar o pensamento com novos modos de pensar, ter o condão de reforçar o pensamento divergente, que nos protegia de certezas certas. 

Conheci alguns seres humanos que não se deixaram pensar. Possuíam uma fórmula, até então ainda secreta, que consistia em interrogar o mundo. Vê-lo em cada manhã, como fizera o primeiro homem, perante as cores da primeira madrugada. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXII)

São Bernardo do Campo, 21 de agosto de 2042

No seu “Livro Sobre Nada”, o Manoel diz-nos que: “há histórias tão verdadeiras que, às vezes, parece que são inventadas”. A história da Ana é uma delas. Contar-vos-ei episódios da vida dessa maravilhosa mulher. Começando pelo princípio, que os velhos têm súbitos caprichos e, hoje, apetece-me ser redundante. 

Situemos o primeiro episódio num dia em que a Ana foi à escola. É minha obrigação referir que todas as aspas enquadram e reproduzem palavras da Ana, religiosamente escutadas, num saboroso exercício dessa tão difícil arte da escutatória, de que o Rubem nos falava. O Rubem recorria ao talvez neologismo “escutatória”, por oposição aos excessos de “oratória” (quem nunca leu o Rubem não perca mais tempo). Serão muitas as aspas de citar a Ana, pelo que este texto (poderei dizê-lo com toda a propriedade), será de sua autoria. Eu apenas o darei a conhecer. 

A estória fez-me recordar um conhecido poema do Jacques Prévert, que dá pelo título de “page d´écriture”. Acaso não conheçais o poema, direi que ele nos fala de uma criança-aluno que, perante a monotonia da aula, dela se “ausenta”, conduzido pela imaginação. E termina deste modo: l’encre redevient eau / les pupitres redeviennent arbres /la craie redevient falaise / la porte-plume redevient oiseau.  

Na história da Ana, uma mosca substitui o pássaro do poema do Jacques, mas vem a dar no mesmo. No tempo em que Jacques e Ana passaram pelo ofício de alunos, todas as crianças saudáveis fugiam à monotonia das aulas pelas frestas que a imaginação lhes oferecia. Se a Ana leu o poema, não sei. Mas descreveu-me o último quarto de hora de uma das suas aulas, tal e qual eu vos contarei. Passo a palavra à Ana:

“Olho o relógio. Graças a Deus, já só faltam quinze minutos para a campainha tocar. O professor caminha lentamente entre as filas de carteiras, falando, falando…. Os alunos estão imóveis, quase de mármore, a olhar os livros com olhos desfocados. O silêncio é ensurdecedor. Só passaram cinco minutos. Tenho os músculos tensos. Concentro-me no que vou fazer, quando a campainha tocar: pegar na mala, vestir o casaco, e porta fora! 

Escuto o arfar nervoso da minha colega de carteira. E eu quase não consigo respirar. Os nós dos dedos estão brancos do esforço que faço sobre a caneta.

Uma mosca pousou na minha carteira. Tem umas lindas asas. Limpa-as, asseadinha que é. Será macho ou fêmea? É difícil saber. Já vi duas moscas coladas, mas nunca vi o sexo da mosca. Talvez, se olhar mais de perto… 

Oh! Fugiu! Quem me dera ser mosca! 

Os meus olhos voltaram-se para o mostrador do relógio. Começo a contar os segundos e o meu pé marca o ritmo: três… dois… um… O quê?!! Que aconteceu? A campainha não tocou! 

DRRIIIIM! As estátuas ganham vida, as escadas são torrentes de vida reprimida, as portas sangram vida. Largo a mala no meio do quintal. Como um raio, subo à minha árvore favorita. Vejo-me, saboreando frutos, no balancear dos ramos. A brisa põe flores do campo nos meus cabelos.

Abro os olhos. Como é possível que dez minutos possam durar uma eternidade?”. 

Quando te contei esta estória, querido Marcos, tu me olhaste com olhos de quem queria perguntar. Interrompi a narrativa. 

“Ó avô, a escola do teu tempo também era assim?”

Um avô não pode mentir. Não houve outro remédio senão dizer-te a verdade. Que era mesmo assim: com aulas, campainhas, moscas, pássaros… 

“E a escola para onde eu vou? Como é? Diz lá, avô! Também é assim? Diz, avô!” Não respondi. Não tive coragem de te dizer que a escola que te esperava era idêntica, em quase tudo, à escola da Ana, à escola que foi minha, à dos meninos do século XXI.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXI)

Santo André, 20 de agosto de 2042 

No distante agosto de vinte e dois, nos primeiros dias do meu regresso ao Brasil, encontrei uma São Paulo enregelada. Enquanto tempestades assolavam o Sul, o paulistano tremia de frio e de… medo. Os noticiários eram reflexo do terror instalado no quotidiano: 

“Cinco pessoas morriam a cada hora, em brigas de trânsito. Homem mata esposa e filho, incendeia a casa e esfaqueia-se para despistar as autoridades. Policial mata mãe, irmão, esposa e três filhos. Além dos parentes, matou outras duas pessoas a tiros na rua da cidade.”

Nesse distante agosto, o boato de um suposto ataque numa escola estadual mobilizava a Polícia Militar. Uma denúncia surgira nas redes sociais. No Instagram, um aluno vítima de bullying prometia vingar-se dos colegas:

“O bullying da escola vai acabar. Eu vou entrar e matar.”

Em nota, a secretaria da educação dizia ter “tomado providências”.

Escassa era a distância entre a violência nas ruas e a solidão nas escolas, entre as “providências” da administração escolar e as aulas de “educação para a cidadania”. Escassas eram as escolas cidadãs, mas algumas havia. 

O moço já tinha feito cinco anos de “educação para a cidadania”, mas não sabia que ainda estava a começar a tirar o curso de “educação na cidadania”. A “lição” seguinte foi-lhe ministrada por um colega mais antigo na escola, quando contestou uma decisão dos professores:

“Eu não gostei nada de o professor ter feito as equipas. Ainda por cima deu barraca, só houve zaragata e não houve futebol mesmo nenhum.” 

Ou quando a Marta, no calor de uma discussão, sem abdicar do exercício de cidadania, manifestou compreensão de que o estatuto de professor é o estatuto de professor e não se confunde com o estatuto de aluno:

“Ó professora, eu acho que já percebi. A senhora já aprendeu isto antes de mim, não foi?”

 Não se pense que estas situações de “educação na cidadania” eram exclusivas de uma escola isolada. Havia muitas e excelentes práticas, como prova uma carta de um professor-poeta de nome Carlos, que me atrevo a citar: 

“Tudo mudou. As crianças já propõem questões, lançam ideias. Acreditam que a opinião delas também vale. E encontraram objetivos: ajudar meninos com dificuldades, ajudar o professor a resolver os casos de mau comportamento e a preparar reuniões. 

Agora, a escola é ainda mais deles. Estes momentos têm-me feito refletir muito sobre o percurso que trilhámos até aqui. Pensar em como a Assembleia, no início, era uma coisa enfadonha. Como alguns se fartavam de abrir a boca! Insisti, por saber que estava no rumo certo. Aos poucos, deixei de ser eu a dirigir as reuniões. Comecei a sentar-me, discretamente, a um canto. 

Inicialmente, ia metendo a minha colherada, para que a reunião não descambasse em confusão. Cada vez menos o faço. Hoje, participo como qualquer um dos outros. Os outros são as crianças. Para muitos professores, é difícil conceber que há outros para além de si mesmos.”

Sampa do agosto de vinte dois me desgostava. Noites de ruas desertas, o perigo em cada esquina. Rumei a outros lugares. No brincar com o Manuel, criança bailarina, recuperei energia, para continuar viagem. Na expectativa da chegada do Miguel, o pai Cristiano, calorosamente, me acolheu no seu lar. Calorosamente, porque, para além do calor humano, em sentido literal me obrigou a vestir roupa de inverno, protegendo este velhinho do frio da noite do ABC.

Nos saborosos dias passados em Santo André, encontrei alívio das tensões. Em lenitivas conversas com o Paulo refiz a confiança na humanidade. Desse ser humano extraordinário vos falarei mais adiante.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXX)

Mogi das Cruzes, 19 de agosto de 2042

Num dia do agosto de vinte e dois, saí de Brasília para ir a Santo André, conversar com os amigos Cristiano e Paulo sobre filantropia e comunidades. De passagem, fui até Mogi, escutar o que de belo os professores do projeto de humanização realizavam. 

Pude confirmar em múltiplas vivências que os educadores daquela excecional equipe partilhavam uma visão de mundo, que viria a traduzir-se na humanização desejada, numa escola cidadã. Porém, naquele tempo, ainda havia quem pensasse que se poderia educar para a cidadania, sem que se nos reeducássemos no exercício digno da profissão.  

Esses educadores estavam expostos a situações de uma cidadania pautada em vícios, conviviam com colegas alheios à necessidade de humanizar o ato de educar. Aqueles educadores consideravam ser possível uma evolução das dinâmicas sociais e do modelo de cidadão adulto, que dissipasse a “formatação” cívica operada pela escola. Mas, lidavam com personalidades moldadas numa conceção imutável de sociedade. 

Eu estava atento às dificuldades que viessem a defrontar, decorrentes do déficit de cidadania de que o Brasil padecia. Amiúde, eu lia em manuais escolares a expressão “educar para a cidadania”. Se bem entendia o sentido da frase, tratar-se-ia de moldar o indivíduo numa lógica de sequencialidade regressiva, treinando-o nesse tempo para um posterior desempenho social ajustado a um determinado modelo de sociedade futura. No estilo faz-de-conta-que-já-somos-para-sermos-quando-formos, esse exercício acabava sendo um exercício que era fim em si próprio. 

A educação praticada nas escolas seria para a cidadania, ou na cidadania? Não se tratava de uma subtil diferença ente a palavra “na” e a palavra “para”. Sendo a primeira uma contração de preposição e artigo e a segunda se apresentar como preposição simples eram pormenores de somenos importância. Importante seria o espírito da coisa, pelo que optei pela expressão “educar na cidadania”, no hic et nunc do drama escolar. 

Fazíamo-nos no que fazíamos. Aprendíamos cidadania, como tudo o resto, no devir que já éramos. Mas, onde estariam os espaços de exercício de uma liberdade responsável? Se nem os professores a exerciam, como poderão ensiná-la? 

Assim como era absurdo pensar que, nas universidades, se ensinasse “métodos ativos” em aulas caracterizadas pela passividade, também seria inútil pensar que a cidadania poderia ser ensinada em aulas expositivas, amaciadas pela análise de dilemas, ou por via de discursos de moralidade duvidosa e eficácia nula. Não se ensinaria cidadania com recurso a sermões.

Numa escola, que eu acompanhava, assisti à reunião semanal de uma Assembleia recém-criada. Um aluno rejeitado por outra escola que chegara há menos de um mês, interveio sem pedir a palavra e disse: 

“Para que é que isto serve? Na outra escola, as professoras mandavam a gente fazer e a gente fazia!”

Havia escolas onde tudo o que ocorria era negação de cidadania. Nessas escolas, a solidão dos professores era da mesma natureza da solidão dos alunos, que passavam de sala em sala, no ritmo pautado por uma campainha, e deparavam com professores afáveis ou permissivos, uns exigentes, outros autoritários. Para estes, o ser humano era nada e as regras prussianas deveriam ser seguidas a qualquer preço. 

Não saberiam os professores de Mogi, do Brasil, do mundo, que, sozinhos, encerrados em salas de aula, entregues às suas certezas e disfarçando angústias, profissionalmente sobreviviam dependentes de uma hierarquia que lhes negava o direito a uma cidadania plena?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXIX)

Jardim Botânico de Brasília, 18 de agosto de 2042

No agosto de vinte, voltei a Brasília, para conversar com secretários de educação e rever educadores amigos com quem convivera e trabalhara no chão da escola. O Sandro era um deles. Em Brasília vivera anos de felicidade, outros de profundo desgosto. Adoentado, partiu para outras paragens.

O professor perfumava a sala de aula com o som dos “clássicos”, enquanto inventava formas de enganar a fome que roubava as forças dos seus alunos e os levava a adormecer durante as aulas. 

“Ó Professor, o Tiago está a dormir! Isso é mesmo música para dormir!”

O professor Sandro não se deixava abater. As “Quatro Estações” repetidamente afagaram os empedernidos ouvidos dos alunos, até ao dia em que uma zelosa funcionária de limpeza resolveu passar o pano do pó sobre o disco de vinil. A agulha rasgou um novo e profundo sulco no disco, que calou para sempre o Vivaldi. 

Em abono da verdade se diga que para sempre não foi. O silêncio foi de curta duração. Certo dia, no tempo de trabalho em grupo, o professor viu, num canto da sala, três alunos (entre os quais, o nosso Tiago), de olhos fechados e mãos dadas, balanceando as cabeças. Aproximou-se a tempo de os ouvir trauteando o segundo andamento do concerto de Inverno das “Quatro Estações”. 

Se houve dias em que as lágrimas irromperam súbitas e jubilosas, esse foi um deles. Esse professor viveu muitos momentos assim, momentos em que a emoção impelia a procurar um espaço de intimidade, para que as lágrimas fluíssem cálidas e livres, e fossem a humana expressão do divino. 

Nos primeiros alvores da Primavera, as janelas da sala de aula abriam-se ao alarido dos pássaros e aos sussurros da brisa, que agitava o verde da folhagem e que levava os ramos a afagar os vidros – “Gracias a la vida, merci l’existence, pour ces yeux que j’ouvre, quand le jour commence”. 

A azáfama dos pássaros nos ramos das árvores e a das crianças eram acompanhadas de cânticos matinais, para agradecer à vida todas as cores que todo o dia tem. Cânticos de entardecer, de gratidão pelo amor partilhado, que não se explica, mas se vive. 

O Tiago abandonou os estudos no fim da primária. Levou consigo para uma vida de trabalho duro o que o professor conseguira ensinar-lhe nos intervalos das sonecas. E levou o gosto pela música dita erudita, ainda que, no pobre bairro, os companheiros de miséria se rissem das estranhas melodias que ele assobiava. 

O professor desta história já se havia aposentado. Certo dia, no fim de um dos seus passeios matinais (os velhos acordam com os pássaros), os seus olhos fixaram-se nuns olhos que lhe sorriam. 

“O professor não me está a reconhecer, pois não?”

Não, não estava. Naquele homem de barba hirsuta somente reconhecia o olhar. Era-lhe bem familiar. Mas de onde?… 

“Sou eu, o Sandro, professor. Não se lembra de mim?”

O professor poderia lá esquecer-se do aluno que adormecia de fome.

“Então, que é feito de ti?”

“Trabalho e estudo, professor. E estou a acabar Engenharia.”

“Gracias a la vida, pour le chant des peuples qui brisent leurs chaînes” – O Sandro havia contrariado o fatalismo da miséria. 

Por ali ficaram, conversando sobre dificuldades e alegrias, até que abalaram, cada qual para seu destino. O Sandro despediu-se, com a promessa de reencontro para breve:

“Não me esquecerei de lhe trazer um Rigoletto que tenho lá em casa. É com a Callas e Gobbi. O professor vai gostar de ouvir.”

(As expressões em francês são versos de uma canção de Herbert Pagani. Se ainda houvesse Youtube, poderíeis escutá-lo cantando Violeta Parra, neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=0YfnxRQF2xc)

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXVIII)

Brasília, 17 de agosto de 2042 

A primeira crise profissional fora de natureza moral. A segunda eclodiu, quando deparei com uma “turma de lixo”. Era assim denominada uma turma “homogénea” constituída por jovens com quinze anos de idade. Os professores dessa escola (se de professores pudéssemos alcunhá-los) chamavam lixo a esses seres humanos. 

Aqueles jovens não sabiam ler. Por via de analfabetismo crónico, tinham reprovado seis vezes na primeira classe. Os professores dos anos anteriores tinham-nos “ensinado” com a mesma metodologia que eu sabia ensinar. Era a única que eu conhecia, aquela que os meus predecessores conheciam, o “analítico-sintético”, ou “fónico”. 

Eu me questionava: se tentasse ensiná-los pelo mesmo “método”, aqueles jovens iriam aprender? Era evidente que não iriam aprender a ler. Se eu insistisse no que dera errado em anos anteriores, eles permaneceriam tão analfabetos como antes. Restavam dois caminhos: modificar o meu modo de alfabetizar, ou… deixar de ser professor.

Fui mais fundo na reflexão, imaginando situações semelhantes. 

Por exemplo: coloquemo-nos da situação de um médico do século XXI, que apenas possuísse conhecimentos da Medicina praticada no século XIX. Esse médico teria consciência de que, utilizando ciência e instrumentos do século XIX, condenaria à morte metade dos pacientes. Não usaria recursos obsoletos. Se os utilizasse, seria um crápula. Não só porque fizera o Juramento de Hipócrates, mas numa decisão ética, o médico se atualizaria, estudaria Medicina do século XXI.

Quando me deparei com vítimas (não com doentes) de analfabetismo, optei por resolver o dilema. Eu seria antiético, se continuasse a ensiná-los do modo como tinham sido “ensinados” durante seis anos. Fui aprender outros modos de ensinar.

Na busca de outras metodologias, encontrei os “métodos globais” de palavras, frases, contos e o método natural de Freinet. Pelo caminho, estudei os fonomínmicos, os fonossintéticos, os silábicos, os mistos, o freiriano “tu já lê”, o das “28 palavras” etc. etc.

Apercebi-me de que aqueles jovens sabiam ler palavras como “Coca-Cola”. Sabiam ler palavras em português, em inglês e até em japonês: “Toyota”. Parti do repertório linguístico de cada jovem, de palavras “significativas”. E daí para a sílaba, da sílaba para a letra e para a ordem alfabética, que permitia consultar um dicionário. 

Estávamos no início dos anos setenta. A Emília Ferrero ainda não tinha iniciado os seus estudos. Mas, intuitivamente, identifiquei estilos de inteligência e a lateralidade predominante de cada jovem. Repeti a palavra “cada”, porque também consegui respeitar o ritmo de aprendizagem de cada qual. Em outra cartinha, vos direi como consegui.

Durante seis anos, os jovens analfabetos desta estória tinham entrado em salas de aula, onde professores “ensinavam” todos do mesmo modo, quando cada jovem requeria diferentes modos; ao mesmo tempo, quando cada jovem tinha ritmo diferente de outros jovens; sem atender a estilos de inteligência, ou à lateralidade predominante. Compreendi por que a maioria dos auditórios onde “palestrei” tinham apoios de braço só para destros… os canhotos eram minoria.

Quando me dediquei ao estudo da Psicologia da Linguagem, novas portas de compreensão se abriram. Quando estudei Psicologia da Cognição, compreendi como a criança hierarquizava conceitos. Quando abordei a da Memória… enfim! Ainda hoje estudo e me estudo. Afinal, foi através do estudo que aqueles jovens se emanciparam. É através do estudo que os professores se emancipam. Ou não será assim?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXVII)

Rio do Ouro, 16 de agosto de 2042

Quase tudo o que aprendi o aprendi fora da escola. Melhor dizendo, fora dos prédios das escolas. 

Nos idos de cinquenta, eu ia à escola, na parte da manhã. De tarde, trabalhava na oficina do meu pai. E, à noite, ia para a casa de um senhor que morava no primeiro andar de cortiço onde eu morava. 

Era um tal cheirinho a livros naquele quarto! Todas noites, devolvia os livros já lidos e remexia prateleiras em busca de novidades. O senhor Carlos assistia à minha sôfrega busca, visivelmente satisfeito. Rejubilava por me ver sair de sua casa, levando nova remessa de banda desenhada (gibis) debaixo do braço. 

Eu subia as escadas, duas a duas. Entrando em casa, espalhava os livros sobre a cama, para uma primeira escolha. Depois, sob a luz fraca, tremeluzente de um candeeiro a petróleo, noite adentro, esforçava os olhos na avidez de leituras urgentes: o Cavaleiro Andante, o Mosquito, o Pateta, a Fagulha…. 

O senhor Carlos era um homem era muito conhecido na minha rua, por não ter ido casar na igreja e por “ter ideias políticas”. Avisavam-me: 

“Vê lá com quem andas! Na tua idade, do que tu precisas é de bons exemplos! Ainda vais dar em ateu!”

Na minha rua, o senhor Carlos era o único que tinha livros em casa e era uma das raras pessoas que sabia ler. Não era professor, mas ensinou-me a amar a leitura, muito antes de eu ir à escola. Hoje, sei que ele me ensinou a ler pelo método global de palavras, ainda que ele não soubesse que era um método. Mostrou-me, pelo seu exemplo, que há muitas maneiras de aprender… e de viver. 

O Senhor Carlos possuía a estranha coragem de assumir a diferença, num tempo de medos e sombras. Creio mesmo ter modelado os meus afetos no amor que ele tinha pela sua companheira – um amor profundo e sem contrato. 

Aprendi, muito cedo e com pessoas simples, os dons da dádiva, da simplicidade e da coragem, ainda que continue a considerar-me em déficit no uso de tais dons. 

Quando fui para a primária, eu já sabia ler. Mas não tive outro remédio senão disfarçar. Tinha que escrever letras em carreirinhas e fazer de conta de que não sabia ler. 

No meu primeiro dia de escola, o senhor Carlos juntou ao monte de livros de quadradinhos um livro grosso, que tinha escrito na capa: “A Oeste Nada de Novo”. Foi o meu primeiro livro sem figurinhas. E disse-me: 

“Leva. Lê quando quiseres. Mas não mostres a ninguém.”

Explicou-me tratar-se de um livro proibido pela Censura. Explicou-me o que era a Censura. Explicou-me tanta coisa! 

Quantas vezes tive de voltar atrás na leitura! Quantas mais vezes me apeteceu devolver o livro com uma desculpa esfarrapada do género: 

“Ainda não consigo perceber o que querem dizer algumas palavras…” 

Mas, quando ensaiei o pretexto, numa noite em que me perguntou se eu já lera algum bocadinho do romance, a frase saiu a falso. E, quando subi ao segundo andar, um braço segurava um macinho de livros, o outro ia abraçado a um dicionário. Eu não queria desiludir o senhor Carlos. 

Levei a leitura até à última página. Aliás, à medida que avançava, menor era o sacrifício. E quando, orgulhosamente, dei por concluída a leitura desse primeiro livro sem figurinhas, eu vi os olhos do senhor Carlos brilharem, quando lhe disse:

“Senhor Carlos, não terá por aí outro romance? Pode até ter mais letras do que este!”

O Senhor Carlos apontou-me farta biblioteca. E eu fui saboreando Dostoievski, Camus, Pessoa, obras-primas da literatura universal… ganhei-lhe gosto. Mas, por que estarei a contar-vos coisas do tempo da minha infância? 

Por duas razões. Primeira: Porque gosto de invocar gente extraordinária. A segunda é porque… gosto de contar estórias.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXVI)

São José, 15 de agosto de 2042

Perguntastes o que me levou a trocar a engenharia pela educação. Vezes sem conta escutei essa pergunta e respondi aligeiradamente, de um modo que convosco não usarei. 

Uma vida de professor de escola pública me mostrou que fiz a escolha certa, ainda que tivesse de passar por três crises. Da primeira vos falarei nesta cartinha.

O modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina. Portanto, a minha vida profissional denotou o que me tinham ensinado: a “dar aula”. E a dava muito bem, segundo os entendidos. Inspetores recomendavam a estagiários que fossem observar as minhas aulas. “Dava aula” magistral e vaidosamente. Planificava-as ao pormenor, lhes juntava bons materiais e “truques motivacionais”. Porém, todos os anos, havia quem não aprendesse.

Nesse tempo, havia exame ano a ano e alguns alunos reprovavam, ficavam “retidos” (eufemismo adotado mais tarde). A lei me dizia que todos os cidadãos tinham direito à educação, mas eu os privava desse direito. Sobreveio a primeira crise, uma crise moral a partir do momento em uma profunda revisão de vida me fez concluir que, se eu trabalhava em sala de aula e eles não aprendiam, eles não aprendiam porque eu trabalhava… em sala de aula.

A primeira das crises desembocou num dilema: ou substituía o trabalho em sala de aula por outro modo de ensinar, ou daria o fora da profissão de professor. Acabei por ficar, por ter recebido ajuda da Montessori, do Dewey, da Irene, do Freinet, da Elise, do Steiner, do Dottrens, da Louise, do Bento, do Decroly e mais um punhado de amigos escolanovistas, entretanto, já falecidos.

Feita a transição entre práticas do paradigma da instrução para práticas fundadas no paradigma da aprendizagem, a crise se dissipou. Entre os Ficheiros Autocorretivos e a Correspondência Escolar, entre o “Método Natural de Leitura” e a Assembleia de Alunos, entre a “Imprensa Freinet” e o “Método das 28 palavras”, a Escola da Ponte surgiu.

A “Aula Passeio” me mostrava que aula sempre iria haver, porque, quando o discípulo estivesse pronto, o mestre apareceria. Mais tarde, chamaríamos a isso “Preciso de Ajuda” e “Posso Ajudar”. Tudo aconteceu como tentativa de cumprir a lei (princípios morais) e, sobretudo, de respeitar a criança, que aluno não é cobaia de laboratório.

Creio que, de algum modo, cheguei a cair em excessos neo-behavioristas, mas que fazer, se eu permanecia sozinho e a voos mais altos não poderia aspirar? O que fiz em setenta e seis foi aquilo que, ainda sozinho, poderia fazer.

Há vinte anos, fui a Portugal. Um decreto criava condições de concretização de projetos inspirados na Ponte. Com surpresa me apercebi que a quase totalidade das escolas ainda tinha salas de aula, turmas e outros dispositivos instrucionistas. Com profundo desgosto, assisti a uma paliativa deturpação da proposta veiculada pelo normativo. As escolas mantinham-se atrasadas mais de um século em relação à proposta escolanovista. 

No meu país, fui ao encontro de lugares onde despontavam projetos de mudança, alguns deles com elevado potencial inovador. E decidi enviar e-mail ao ministro da educação. Nele lhe dizia da minha disponibilidade para ajudar a superar um século de inúteis reformas. Acreditava na boa-fé do ministro, quando dizia:

“O que me motiva para estar aqui é o combate às desigualdades através da educação. Não podemos desistir.” 

E citava a sua referência maior, Baden Powell:

“Para deixar o mundo um pouco melhor do que encontramos, não há ensino que se compare ao exemplo”.

Propus ao ministro escuteiro que déssemos exemplo de fraterna cooperação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXV)

Itapera, 14 de agosto de 2042

Lá pelos idos de vinte contava-se uma bem conhecida anedota, a que eu não achava graça alguma. Para além de bem conhecida, essa anedota era lesiva da imagem do profissional de desenvolvimento humano a que se dava o nome de… professor. Colocava-se a possibilidade de fazer viajar no tempo (ou de ressuscitar) um médico cirurgião e um professor, que tivessem vivido nos primórdios do século XIX. Dizia-nos a anedota que, recolocados médico e professor nos seus locais de trabalho, o primeiro morreria de susto perante a sofisticação dos recursos disponíveis no bloco operatório onde aportasse. Por seu turno, o professor retomaria a aula interrompida há duzentos anos, mandando abrir a cartilha na página oitenta e três.

Tratava-se de uma anedota, bem sabíamos. Também sabíamos que os avanços da Medicina, enquanto ciência, tinham introduzido na prática médica profundas transformações, tornando obsoletos conhecimentos e práticas de há dois séculos. O que distinguiria as escolas do século XIX das escolas do século XXI? A sofisticação do discurso, o aparato tecnocrático e a mercantilização da escola pública.

O modelo engendrado no século XIX mantinha-se inalterado: classes, turmas, aulas, lições, tempos de padrão uniforme, currículos segmentados, estanques, inadequados. Mais computador, menos manual, mais “data show” menos pau de giz, em pleno século XXI, a Escola mantinha-se tributária de necessidades sociais do século XIX. Foi o que encontrei, quando troquei a engenharia pela profissão de professor.

O vosso pai nasceu no mesmo mês – no outubro de 76 – em que fui ser professor na Ponte. A preocupação que sentia nessa altura era da mesma natureza daquela que senti quando nascestes. Quais os caminhos a percorrer, netos queridos, para que pudésseis ser seres humanos felizes?

Escolhi o caminho de não escolher caminhos. Seríeis vós quem percorreria caminhos por inventar. Impedi-me de determinar, do alto dos meus cabelos brancos, os vossos desejos e necessidades. A primeira das regras era a de não tentar ensinar aos netos aquilo que se pensava que eles precisariam saber. A segunda, procurar aprender o que eles eram e o que pensavam, para além do que pensávamos que eles deveriam pensar. Os tempos eram outros e só os avós com certezas absolutas ainda não o tinham entendido.

A preocupação inicial se foi esvaindo à medida que crescíeis. Perdurava apenas um receio, o de que pudésseis fazer perguntas que não tivessem resposta. Não porque me preocupasse que pudésseis considerar-me ignorante – até seria útil que ele se apercebesse de que os avós de desse tempo, contrariamente aos antigos, não eram guardiães de todas as respostas – mas porque não seria capaz de responder a perguntas sem explicação. 

Se me perguntásseis por que o céu era de cor azul, eu não vos daria a resposta. Saberia perguntar: “Por que será?” E saberia indicar-vos caminhos para que a encontrásseis. Porém, havia uma pergunta carente de uma explicação lógica: Por que razão a Escola do século XXI se mantinha idêntica à do século XIX?

Que poderia fazer, a não ser confessar a minha ignorância? Não saberia que resposta dar. Aliás, ninguém sabia. 

O que pensaríeis de pessoas que não sabiam explicar por que faziam aquilo que faziam? E, quando essas pessoas eram professores, eu temia o que pudésseis pensar e sentir. 

Mandava a verdade que acrescentasse haver professores não-contemplados na anedota de mau gosto.  Falei-vos da vida maravilhosa da Irene Lisboa e dei-vos a conhecer professores não-acomodados. Isso bastou para vos tranquilizar.

 

Por: José Pacheco

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