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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXII)

Alcains, 18 de março de 2042

Nos dicionários, o termo “reprodução” referia-se, quase exclusivamente, a conceitos como o de procriação, mas o Bordieu alertara-nos para a reprodução escolar, que era, também, social. Reproduzia-se a exclusão, o consumismo, o reforço do poder patriarcal, a competividade negativa… a guerra.

Por meados do mês de março de há vinte anos, mais de três milhões de pessoas tinham atravessado a fronteira da Ucrânia e se refugiado na Europa. Nesse mesmo mês, chegavam à Pampilhosa da Serra ucranianos forçados a enveredar por rotas de fuga. Ali, encontraram uma autarquia cônscia da necessidade de humanizar a educação e solidária com quem buscava um lugar seguro. Ali, indo além de estéreis divagações teóricas, se forjava uma nova educação. 

Ao cabo de três semanas de guerra, centenas de civis ucranianos tinham sido mortos. E nem as crianças eram poupadas à sanha assassina. Mais de uma centena tinha perecido. Aquelas que chegavam careciam de quem as ajudasse a esquecer situações traumáticas. 

Entre aqueles que as acolheram estava a “Doutora Borboleta”. A Cléo tinha vivido em contextos de extrema agressividade, fora testemunha de violências sofridas por uma das maiores comunidades brasileiras. Conseguira criar “fluxos de cuidado” em submundos onde “algumas vidas valem menos que outras vidas”. Participara na reinvenção do saber cuidar, para fazer face “às adversidades de caóticos cenários”, nos encontros com “modos de viver no cotidiano da comunidade/favela, frente às inúmeras violações dos direitos sociais e humanos”.

O Complexo do Alemão enfrentava, desde há décadas, uma intensa vulnerabilização, sobrevivendo na precariedade material, reinventando um viver decente. No Alemão, a Cléo, mulher palhaça, se envolveu na tarefa de libertar crianças vulnerabilizadas do horror de imagens de guerra, enquanto refletia sobre o papel sistémico da guerra e sobre o modo como contribuímos para esse flagelo. 

Envolvida no quotidiano de crianças de dolorosa infância, dedicava-lhes a maior parte do seu tempo, ajudando-as a retomar a alegria de viver. No tempo que lhe sobrava de muitos afazeres, iniciava a redação de uma tese alicerçada no vivido e na solidariedade do amigo Emerson. Entregou-se ao estudo de comunidades de aprendizagem que, por essa altura, surgiam em lugares de reinventar o mundo. 

No início deste século, pude partilhar a vida de um protótipo de comunidade: a Tamera. Dieter, um dos seus fundadores dissera:

“Aprendemos sobre os princípios universais da paz universal ao aprender sobre os princípios universais de comunidade. Toda a vida existe em comunidade. Se queremos sobreviver, precisamos de novas formas de comunidade; comunidade 

com pessoas e povos, com animais e plantas, com todos os seres da natureza e da Criação”. 

Carecíamos de “comunidades de coevolução, cooperação e apoio mútuo” entre todos os elementos, porque todos eles seguiam “a vontade da vida”. Todos eram guiados por “uma só entidade, por uma só consciência, por um mesmo código genético”. Juntos, formavam “a grande família da vida na Terra, na redescoberta do viver em comunidade”.

O estado de guerra dimanava de múltiplos sistemas de opressão. As estruturas civilizacionais assentavam na praga do patriarcado, no capitalismo, no racismo. Perante a guerra na Ucrânia, os apelos à paz eram inofensivos. As sanções econômicas eram paliativas. 

Urgia conceber um “sistema” educacional fundado na compaixão, no cuidado… na cura. Urgia unir a família, a sociedade e a escola num projeto comum de reinvenção da vida. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXI)

Sobral Valado, 17 de março de 2042

Netos queridos, no mês de março de há vinte anos, a comunicação social transmitia em tempo real imagens de dor e destruição como aquela que encima esta cartinha e que acompanhava a notícia:

“A imagem é da repórter Daphne, quando as autoridades já tinham coberto os corpos da família morta. A fotógrafa Lynsey flagrou mais um capítulo trágico da guerra na Ucrânia. Um ataque com morteiros russos matou uma família de ucranianos que tentavam deixar a cidade de Irpin. O clique ocorreu logo após a detonação dos morteiros, quando soldados ucranianos tentam salvar o pai da família, que estava inconsciente no chão. A mãe, um adolescente, e uma garotinha já estavam mortos. Pela rua, as malas das famílias ficaram espalhadas. Perto deles, uma caixa verde tinha um pequeno cachorro, que latia”. 

A par da guerra na Ucrânia e de guerras que a televisão e a Internet não mostravam, chegavam notícias de outros conflitos, de sofrimento oculto, como se as escolas fossem um grande campo de batalha. Recebia mensagens de desânimo, assinadas por desistentes. Outras, de impaciência, assinadas por resilientes. 

“Caro José, esta necessidade de libertação está na raiz do empenho que emprego por uma educação que não foi a minha. Mas isto parece um “surf” em mar alto. Começar como começou foi isso, um vogar de crista em crista por ondas que já traziam destino. Sou eu que não tenho grandes expectativas quanto ao envolvimento dos professores e vejo mais o dedo de Deus e uma feliz coincidência de rotas que a séria apropriação da pedagogia. 

Neste princípio de ano letivo, continuo a experimentar o “surf” mas, agora, em mar de tubarões com barbatana à tona d’água. E, pela dimensão dos ditos, temo que já nem a prancha se salve. O agrupamento onde a F. pontificava foi extinto e, agora, vejo-me a braços com um presidente em que não vejo outro empenho que não seja o de continuar a mandar. E um vice-presidente que, diligentemente, assegura páginas e páginas de horários e colocações e assim se tornou insubstituível ao primeiro, e um tenebroso e vingativo prócere.

Fiquei fora de mim, quando ele, ainda sem me conhecer, quis que eu alinhasse com ele, numa converseta estapafúrdia e infundada, para “queimar a F. e a O., umas “traidoras ao ensino, criaturas que alimentam as vontades dos pais”.  

Queimei ali o empenho do biltre! O que ele queria era guerra. Eu sou amante da paz, mas devo reconhecer que, desde que existe Escola, existe uma desgastante guerra surda entre o velho enquistado e o novo apenas por alguns desejado”. 

Tentei aquietar o subscritor da carta, mostrando-lhe que, apesar de serem só duas as professoras que queriam mudar, elas eram maioria numa escola de cerca de mil professores. A crer em Thoreau, “qualquer homem mais justo que seus semelhantes já constitui uma maioria de um”.

Como em todos os conflitos, havia o lado dos bons e o dos maus. Era evidente que nós estávamos do lado dos bons. Restaria saber de que lado estaríamos…

O conflito entre práticas conservadoras e novas práticas era velho de séculos. Em meados do século XX, um ilustre professor denunciava aquelas que considerava nocivas. Insurgia-se contra o comportamento dos professores que “evitavam problemas”.

“Porque sabem que o tratamento imparcial pode suscitar desagrado em certos círculos influentes, mudam de convicções, consoante julguem conveniente. Opõem-se à permanência na sua escola de elementos de incontroversa competência e dedicação, com receio de confronto e para a tranquilidade do seu ramerrão”.

Há vinte anos, o tradicional ramerrão começou a ser questionado.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXX)

Castelo Branco, 16 de março de 2042

Nos idos de março de há vinte ano, foi breve a passagem por terras albicastrenses, mas tempo suficiente para testemunhar o quanto os educadores da Beira Interior se movimentavam para reivindicar cidadania plena. 

Eram evidentes as obscenas assimetrias sociais de que padecia o interior do país. Mas o pecado maior era o de muitos educadores se resignarem a um estatuto de menoridade, de aceitarem viver num país desigual, à espera de projetos lançados, quando a Europa dita comunitária abria os cordões à bolsa. 

De passagem por Castelo Branco, revivi momentos de fecunda aprendizagem. Reencontrei o Valter e outros amigos de longa data. Com o amigo João, a Patrícia, a Zélia e outros educadores, aprendi o que desaprendera em vinte anos de voluntária diáspora. O país tinha mudado, se europeizara, mas padecia dos mesmos males de países ditos subdesenvolvidos, eufemisticamente apelidados de “em vias de desenvolvimento”. 

Nas minhas travessias do Atlântico, reconheci o quanto e educação lusa se atrasara, relativamente àquela que se fazia no sul. Mas, também, me apercebi de que, no interior português despovoado, surgiam focos de inovação, que contrastavam com pseudo-inovações oferecidas por empresas e financiadas por ministérios. Por isso, me deixei ficar por terras do norte, durante alguns meses, convidando educadores para o intercâmbio com uma nova educação vinda do sul. 

Depois, voltei ao Brasil, ao encontro de outros projetos, que o Brasil desconhecia. Numa escola, que tinha Maria Montessori por referência maior, participei num evento comemorativo dos cem anos da fundação da Casa dei Bambini. Todos os educadores presentes conheciam a proposta montessoriana e dignamente a celebravam. 

Ousei fazer uma pergunta marginal à comemoração: 

“Quem conhece a obra de Eurípedes Barsanulfo?”

Entre as centenas de educadores presentes, somente três braços se ergueram. O nome não lhes era estranho, mas nada sabiam do projeto de Eurípedes. A perplexidade traiu-me, o tom da minha voz alterou-se: 

“Estamos a homenagear alguém que, em 1907, fundou uma escola, na Itália. E nada fazemos para homenagear um brasileiro que, também em 1907, fundou uma escola tão ou mais inovadora, em terras brasileiras?”

Perante o pesado silêncio, prossegui com o questionamento: 

“Quem conhece a obra de Agostinho da Silva?”

Apenas uma professora “tinha ouvido falar”. Apercebi-me do despropósito da minha agressividade. Respirei bem fundo, para recuperar a serenidade e não ser injusto para com aqueles educadores, que se reuniam para celebrar e partilhar. Disse-lhes que fora Agostinho da Silva quem fizera a tradução da obra de Montessori para o português do Brasil. Surpresa geral! 

A minha irritação desvaneceu-se, quando manifestaram interesse em saber quem fora Eurípedes. Falei-lhes do projeto que esse insigne educador, contemporâneo de Montessori, desenvolveu. Falei-lhes da adopção de classes mistas, que o fez defrontar preconceitos da época da abolição de provas tradicionais. Falei de uma escola sem castigos, das aulas de Filosofia, de Botânica, do teatro e de outras artes, dos passeios de observação da natureza, da contratação do primeiro professor negro e da primeira professora brasileira.

Parecia ser sina de Portugal e do Brasil desprezar o que era seu, para importar modas do estrangeiro. Mas, sem prescindir de Montessori e de outras referências estrangeiras, educadores brasileiros e albicastrenses reconstituíam preciosos legados, descobriam uma produção científica até então ignorada: a dos seus.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXIX)

Caria, 15 de março de 2042

Naquela tarde, regressei ao hotel possuído por um estranho sentimento. Não apenas pela impressão que me ficara do encontro da manhã, ou pela gentileza do Pedro, da Sílvia, do Bruno, do Pedro. Era algo bem maior o que estava para acontecer.

Depois de um breve “papo cibernético” com a Cléo, reli uma declaração recente do amigo Nóvoa, de quem se dizia poder vir a ser ministro da educação:

“As escolas públicas – é sobre elas que incide a minha reflexão – estão inseridas em meios muito diferentes e acolhem alunos com origens cada vez mais distintas. Mas, os seus modelos de organização e as suas pedagogias são excessivamente uniformes. Para acentuar este traço, uma imensa burocracia tem vindo a tomar conta das escolas. O controlo regimental da vida das pessoas e das instituições, sempre em nome da flexibilidade e da simplificação, é a obscenidade maior das sociedades contemporâneas”.

Juntei-lhes palavras de um humanista, que era Papa. O Francisco assim se pronunciava:

“Este sistema, com a sua lógica implacável, escapa ao domínio humano. É preciso trabalhar por mais justiça e cancelar este sistema de morte”.

Às palavras destes dois seres humanos de eleição, juntei algo que eu lera, algures, em finais de novembro do já distante 2021:

“Ao longo de dois anos e com base nas contribuições de mais de um milhão de pessoas, uma Comissão Internacional independente preparou um relatório global sobre o Futuro da Educação. A Iniciativa “Futuros da Educação” foi lançada pela UNESCO, em setembro de 2019, e baseou-se num processo mundial consultivo amplo e aberto que envolveu jovens, educadores, sociedade civil, governos, empresas e outras partes interessadas. Revelou-se numa iniciativa de cariz global, para repensar que o conhecimento e a aprendizagem podem moldar o futuro da humanidade e do planeta – repensar a educação e moldar o futuro.

O Relatório, dedicado aos professores e alunos que foram perturbados pela pandemia – não foi apenas o resultado um plano, mas o resultado vivo da contribuição de todos, reforçando que a humanidade tem futuros comuns e que para forjar futuros pacíficos, justos e sustentáveis, é preciso transformar a própria educação”.

Bela e reconfortante revelação de intenções, talvez apenas bela e reconfortante. O Nóvoa iria aceitar arrostar com a gestão de um monstro burocrático chamado “ministério”? Francisco seria escutado? A “Educação do Futuro” se faria presente?

Vivíamos um tempo de atrocidades. Enquanto os Estados Unidos bombardeavam a Somália, a Rússia cometia outros crimes de guerra. Com as tropas de Putin às portas de Kiev, o presidente ucraniano apelava às mães russas e aos europeus, para que o conflito cessasse. Cadáveres eram amontoados, a fome grassava, a crise humanitária crescia exponencialmente. Uma menina de dez anos morria às mãos de soldados bêbados. Em Marioupol, dezenas de civis e de soldados foram enterrados, despejados em sacos mortuários, em valas comuns, sem urna ou cerimónia.

O vosso avô já não conseguia assistir às reportagens televisivas e às cenas de barbárie escancaradas na Internet. Sentindo-se nauseado e impotente, lhe restou encontrar-se com a Fátima da rede das escolas associadas da UNESCO, convidando-a a participar num projeto, que concretizaria as intenções anunciadas pelo Nóvoa, pelo Francisco e pela… UNESCO. 

A guerra era a expressão máxima do horror, a consequência suprema do modo como sucessivas gerações tinham sido educadas. Era a tradução plena dos valores, princípios e práticas de um sistema educacional carente de humanização. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXVIII)

Unhais-o-Velho, 14 de março de 2042

No tempo da proto-história da Educação, bom senso nem sempre era sinónimo de juízo. Como em tudo o resto, supunha-se que no reino da Educação assim fosse, que prevalecesse o bom senso, o senso crítico. Porém, parecia predominar o mais elementar senso comum. Num jornal diário, li esta notícia: 

“Professores, pais e estudantes do Rio de Janeiro protestaram contra a resolução da Secretaria Municipal de Educação, que acabou com os conceitos de “ótimo” e “insuficiente” na avaliação dos alunos do Ensino Fundamental. Com isso, os estudantes da rede municipal não podem mais ser reprovados. O Sindicato dos Profissionais de Educação do Rio vai entrar com ação no Ministério Público para revogar a decisão”. 

Como sindicalista, senti-me traído. Como professor, envergonhado. Não seria fugindo para a frente que se conseguiria valorizar a imagem social da profissão, mas encarando os desafios. 

A resolução chegava fora de tempo, era mera distração de políticos, mas os professores não deveriam “deitar fora o menino com a água do banho”. Dever-se-ia aproveitar a oportunidade para abrir um debate sério sobre o assunto. Porque a taxa de repetência na primeira série do ensino fundamental não andava longe dos 40%. E muitos alunos chegavam à quarta série sem terem aprendido a ler. 

Logo se apontava a “progressão continuada” (prefiro o espírito e a letra desta designação) como responsável, esquecendo que os estados com maior taxa de repetência não adoptavam o sistema de ciclos nem a dita “aprovação automática”. 

No mesmo jornal, também li que: 

“A organização pedagógica consagrada é baseada na avaliação constante e não em notas e repetência. Mas a implantação é falha. É mais uma história da boa ideia que foi mal aplicada e mal-entendida. A falta de discussão e preparação para a organização pedagógica em ciclos e a progressão continuada manchou o nome de uma concepção de educação consagrada. Muitos pais, professores e até o presidente da República ainda não entendem a proposta.” 

Esse era um tempo de memória curta. Talvez por isso, ouvi uma professora exclamar: 

“Que bom que ainda há aluno repetindo o ano! Isso prova que ainda há escolas sérias que exigem aprendizagem!”

Eu não queria acreditar naquilo que escutava. Quanta confusão entre reprovação e… seriedade!

Ainda mais frustrante foi o que observei, no decurso de um congresso realizado no Rio, alguns dias após a publicação da referida notícia. O ambiente da sala era tenso e a pergunta dirigida aos palestrantes era esperada: 

“Os senhores são a favor ou contra a progressão continuada?” 

A uma pergunta direta deveria corresponder uma resposta direta. Porém, os conferencistas não disseram “sim”, nem “não”. Responderam “nim”. Fazendo uso do discurso de desculpabilização, disseram o que os professores queriam ouvir e foram ovacionados. 

Um político afirmou que a “promoção automática” era como dar alta a um doente sem os devidos exames. As suas palavras fizeram-me recordar a clássica pergunta: se a melhor escola é a que mais alunos reprova, o melhor hospital será o que mais doentes mata?

Felizmente, havia quem não padecesse de corrupção intelectual. Vozes autorizadas para dirimir a polémica tomaram posição. Rose Neubauer veio dizer-nos que “a reprovação feita nas escolas públicas não recuperava deficiências e se tornava uma condenação ao fracasso”. Lamentável foi que ninguém lhe desse ouvidos. 

Nos idos de vinte, ainda havia quem confundisse avaliação com classificação. Ainda havia professores que aplicavam prova, “davam nota” e não faziam avaliação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXVII)

Vale de Gouvinhas, 13 de março de 2042

Na década de vinte, em pleno tempo da proto-história da Educação, a “sala de aula” ainda era o espaço privilegiado da ensinagem, era nela que se desenrolava a quase totalidade do drama escolar. Como alguém, nesse tempo, a ousou descrever, a sala de aula era um “lugar onde os professores fingiam que ensinam, enquanto os alunos fingiam que aprendiam”. 

Por essa altura, envolvi-me numa polêmica sobre “aulas de substituição”, propondo que não houvesse “aulas de substituição”, mas a substituição das aulas. A polêmica teve origem num eloquente evento. Aqui o conto.

As mensagens de celular e na internet eram peremptórias: 

“Greve de alunos contra as substituições. Mensagem a rodar. Passem!”

Os alunos do Ensino Secundário faziam um dia de greve às aulas de substituição. A televisão, sempre prestimosa a mostrar as feridas abertas do sistema entrevistou jovens grevistas. E eu escutei estas pérolas, num telejornal: “Os profs não sabem o que estão a fazer nas salas. Ou acabam com as aulas de substituição, ou metem lá profs competentes! 

Fazemos greve porque não gostamos das aulas de substituição. Também, porque os professores não gostam de ficar na escola até mais tarde. 

Nas aulas de substituição, nós ficamos a olhar para as paredes, ou a jogar às damas e às cartas. 

Essas aulas não servem para nada. Põem-nos dentro de uma sala com um setôr que não sabe nada do que está lá a fazer. Às vezes, até nos põem a fazer testes e eles nem sabem a matéria dos testes.” 

Os estudantes organizaram manifestações para chamar a atenção da ministra para a inutilidade das aulas de substituição. E não tiveram pejo em afirmar que “vão para as salas de aula, com os professores substitutos, jogar à sardinha, ou contar anedotas”, acrescentando: 

“Em vez de estarmos fechados numa sala de aula, devíamos estar a aproveitar os recursos que a escola nos oferece, como a biblioteca, as salas de computadores ou as salas de estudo”. 

Registaram-se habituais desacatos, quando alunos impediram a entrada dos professores numa escola e agrediram um agente da polícia. 

Registaram-se as habituais declarações, quando um governante afirmou: 

“Há normas e orientações da parte do Ministério, que permitem assegurar as aulas e atividades de substituição com qualidade e maior significado pedagógico. Há todas as condições para esse efeito. É, fundamentalmente, uma questão de organização”. 

O governante apenas tinha razão na segunda das frases. Em declarações aos jornalistas, garantiu:

“A solução não passa por acabar com as aulas de substituição”. 

Discordei. Era um grave equívoco pensar-se que se poderia melhorar as escolas aumentando o número de aulas, ou melhorando o modo como elas eram “dadas”. 

O bricolage legislativo criara mais esse artefato das “aulas de substituição”. Melhor fora não haver, substituindo as aulas por dispositivos organizacionais que contribuíssem efetivamente para a melhoria das aprendizagens. Uma escola poderia melhorar-se se, da garantia de aula dada para todos se passasse a garantir uma escola de todos e para todos. Se os professores assumissem um projeto de autonomia profissional. Se a escola se reconfigurasse. 

Para que não voltassem a apelidar-me de “teórico”, evocava uma prática. Eu conhecia uma escola onde nunca houvera “aulas de substituição”, mas onde nunca um aluno ficara “sem aula”. Nem faziam falta, dado que os alunos aprendiam bem mais e melhor sem elas. Essa escola nunca adotara bricolage ministerial

Para ser mais preciso: nessa escola nem sequer havia aulas, porque deixara de haver… sala de aula.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXVI)

Covilhã 12 de março de 2042

Neste dia, mas há vinte anos, o vosso avô andava por terras beirãs, envolvido nos “Debates Necessários II”, entre os quais o da gestão do tempo escolar. Permiti, pois, queridos netos que, na cartinha de hoje, eu alinhe algumas considerações sobre o episódio ontem narrado e que me lembro de ter sido objeto de conversa com o Pedro, o Bruno, a Susana e outros educadores da Covilhã.

O Egídio, protagonista do rocambolesco episódio era um professor “à moda antiga”, como gostava de afirmar. Era, digo eu, pois deixou de ser. De renitente, o Egídio passou a crente.

“Isso do ritmo de aprendizagem é treta!” – troçava o Egídio, antes da infeliz ocorrência. 

“Ó Zé, deixa-te disso! Esse conceito nem consta das teses lá das tuas ciências da educação!” 

É preciso que, em abono da verdade, se diga que foram muitas as tentativas que fiz para o convencer da justeza das minhas convicções. Argumentei com a evidência do biorritmo, recorri a estratégias de persuasão de êxito assegurado em casos afins. De nada me valeram as estratégias.  

Em desespero de causa, dei-lhe a ler uma carta que, há alguns anos, um jovem professor enviou aos responsáveis pela direção da sua escola. O Egídio saltou parágrafos, mas ainda se dignou lê-la. Ei-la: 

“A nossa escola pretende regular a entrada e saída das aulas através de toques de campainha, numa tentativa de responsabilizar os alunos pelo cumprimento do horário. Na minha opinião, é uma medida que tem precisamente efeito contrário, ou seja, desresponsabiliza os alunos. 

O ser humano “programado” para executar uma tarefa é automaticamente desresponsabilizado por ela, porque a cumpre por receio das consequências. 

O ser humano que temos na nossa escola ouve o toque, vai para a sala, não porque pensa que deve ir, mas porque corre o risco de levar uma falta de atraso, ou vai simplesmente por ir. 

Se esta podia ser já uma razão para acabar com os toques, outra maior emerge. Se observarmos cuidadosamente o momento em que “toca para dentro”, vemos uma série de alunos imediatamente a abandonarem o que faziam, para se dirigirem para a sala, como se fossem robôs! 

Os toques de campainha representam um grande contrassenso. Com esta carta pretendo sugerir ao conselho executivo o seu abandono. Para tal ser possível, a escola necessitaria de instalar relógios. E, na semana anterior ao abandono dos toques, as turmas precisariam de ser avisadas, e explicada a mudança (…)”. 

O Egídio deitou à carta um olhar de desdém e não se deu por convencido: 

“E, depois? O que aconteceu?” 

Respondi a verdade. Que o autor da missiva teve de dar o dito por não dito e de explicar perante os seus superiores hierárquicos que a carta tinha sido “uma brincadeira”.

“Uma brincadeira de muito mau gosto, como deve reconhecer, caro colega!” – admoestaram-no os irritados superiores. 

“Queiram… por favor… desculpar.” – gaguejou o “brincalhão”. 

 Reconheço que tanto o Egídio, como os superiores hierárquicos de então, não agiam desse modo por mero acaso. No curso que os habilitara para o exercício da profissão tinham-lhes ensinado a ensinar pela cartilha dos avós. Nunca ninguém ensinara os professores a fazer perguntas. 

A prática pedagógica do professor Egídio poderia não diferir das práticas de milhares de seus colegas de profissão, mas não seria – acreditava eu – por escassez de tentativas de actualização. 

Para os ingleses, “time is money”. No ritmo uniforme do ano “letivo”, era desperdício. Sabendo-se que se aprendia em ritmos diferenciados, por que se opunham os administradores do “sistema” a que os alunos pudessem aprender… no seu ritmo? 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXV)

Sintra, 11 de março de 2042

Saí da casa do meu amigo António na disposição de sobre o seu recente livro escrever. Um incidente, uma breve altercação me fez mudar de ideias, me trouxe à mente um episódio de há muitos anos. Vo-lo conto, tal como tudo se passou. 

O Egídio não falhava um seminário, um colóquio, um congresso, que, no tempo em que o virtual ainda não ganhara hegemonia, eram eventos na moda, através dos quais se supunha os professores aprenderiam algo que lhes permitisse escapar à lógica da reprodução. Tese errada, como mais tarde viriam a concluir os estudiosos da matéria. 

Empiricamente, obtive a prova do que os pesquisadores confirmariam muitos anos depois. O Egídio, adepto confesso da imposição de cadências uniformizadoras – que as escolas do seu tempo impunham a diferentes, únicos e irrepetíveis seres –, tomou consciência da diversidade rítmica quando menos esperava. 

Certo dia, elogiei o Egídio, quando voltava de um congresso: 

“Admiro a tua vontade de aprender. E, então? Valeu a pena?”

“Valeu, pois! Mas só até meio, que eu tive de me vir embora logo depois do intervalo”. 

“Ora explica lá!…” 

E o Egídio explicou. 

No coffee-break (como era costume designar os intervalos dos congressos), o Egídio careceu de satisfazer uma das mais elementares necessidades fisiológicas. Dirigiu-se ao banheiro. Empurrou a porta. A célula fotoelétrica funcionou na perfeição. O controlo automático disparou. Fez-se luz. 

O Egídio foi até ao fundo do corredor. Desapertou a braguilha. Encostou-se ao mictório. Aliviou-se, ou melhor e para não fugir à verdade, deu início à aliviação. Para não sair a meio da palestra, a contenção urinária havia sido longa. As águas a verter eram mais que muitas. Subitamente, a luz foi-se. 

Sem deter a micção, o Egídio ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e… nada. O WC manteve-se imerso na mais profunda escuridão. Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coisa e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna, que não tardou a sentir fria e desconfortável até aos sapatos. 

O Egídio sacudiu-se. Depois, quedou-se, hirto e sofrido. Naquele preparo, empreendeu o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de cada vez que introduzia as mãos tateantes em humidades não identificadas. 

Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontalmente contra uma traiçoeira parede que as trevas ocultavam. 

Meio tonto da pancada, continuava a acenar com a sinistra, qual cego prestes a galgar um degrau de escada. Contornou o obstáculo, com a mão direita colada à dorida fronte onde começava a emergir uma dorida protuberância. Ao contornar a fatídica parede, o automático, que estava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou novamente. E fez-se luz! 

A descrição que o Egídio fez desta cena acaba com uma imprecação proferida num tal vernáculo, que me vejo obrigado a dispensar-vos da citação.

Inteligente, como qualquer professor, o Egídio quis saber mais sobre o assunto. Apurou que os toques de campainha tinham sido introduzidos nas escolas do século XIX. Já ninguém se recordava dos objetivos visados pela longínqua introdução desse dispositivo, mas a sineta, manualmente acionada do tempo dos avós dos professores, soava agora, estridente, a mando de um computador. Sem que alguém, a não ser o protagonista desta estória, o vosso avô e mais um punhado de curiosos ousasse questionar o instituído. 

Conclusão a extrair do lamentável e providencial episódio: os caminhos da conscientização são misteriosos e insondáveis.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXIV)

Alcabideche, 10 de março de 2042

Na primeira vez que, em terras de França, apresentei o projeto “Fazer a Ponte”, o comentário foi este: 

“Isso é tudo muito lindo, mas tudo não passa de teoria!”

Franceses, ingleses e alemães se mancomunaram na detratação do projeto. Por mais que lhes dissesse que estava falar de uma prática, nada feito! À exceção dos gregos e dos italianos, foi uníssono o comentário. Daí que, nas minhas falas, eu passasse a usar de metáforas e a exagerar nas aspas. 

Tal como na estória “o velho, o rapaz e o burro”, choveram as críticas dos acadêmicos:

“Deve pôr mais notas nos seus textos, citações, indicar bibliografia, ser menos metafórico”. 

Eu assenti. Sem querer ser mordaz, esclareci que o artifício funcionava como uma espécie de proteção. Quem escrevia sobre Educação num discurso sem aspas, arriscava-se a acabar os seus dias no divã do psiquiatra. Com o objetivo de escapar ao linguarejar “objetivo”, reincidia no uso excessivo de aspas. E, certa vez, usei-as para, num arremedo de “taxinomia”, descrever os professores que tinham passado pela Ponte. 

Por lá, tal como em outras escolas, havia professores que tomavam consciência da obsolescência do dito “ensino tradicional” e, também, quem nunca tivesse “perdido tempo a pensar nisso”. 

Os primeiros dividam-se em dois tipos: os que tentavam melhorar a sua prática (os “bem-intencionados”) e os que se faziam desentendidos, pois sabiam que deveriam mudar, mas não mudavam. Estes eram os “cínicos” (nesta tipologia, quase dispensaria as aspas). 

Os “bem-intencionados” subdividiam-se entre “praticistas”, “modistas” e “inovadores”. 

Os “praticistas” acreditavam que, para melhorar o seu desempenho, bastaria o “jeitinho” e a “experiência acumulada”. Por sua vez, estes poderiam ser divididos em dois subtipos: os que conseguiam efeitos inconsequentes, que pouco ou nada mudavam no essencial – eram os “imediatistas artesanais” – e aqueles que desistiam de modificar a sua prática, porque “já não estavam em idade para se meterem em aventuras”. Estes eram os “desistentes crónicos”. 

Os “modistas” copiavam “modas pedagógicas”, enfeitavam o “ensino tradicional” com modernos artefatos, criavam a aparência de novo. Eram uma espécie de “construtivistas não-praticantes” e subdividiam-se em duas espécies: os “travestis pedagógicos”, que se mantinham na segurança do ensino transmissivo oculto sob o manto diáfano de um cenário de modernidade, e os “militantes sazonais”, que mudavam de moda em conformidade com a que estivesse mais “in”, com a justificação de que “o que tinham tentado fazer não resultaria”. 

Os inovadores eram uma espécie rara. Poderíamos considerá-la mesmo em vias de extinção. Dividiam-se entre “neutralizáveis” e “resilientes”. Os “neutralizáveis” eram os alvos preferidos de quem lhes destruía os projetos e, não raras vezes, a saúde mental. 

Os “neutralizáveis” eram dignos de alinhar ao lado de um Ferrer fuzilado, ou de uma Louise deportada, numa “martiriologia” cujo rol só não se alongou, porque longe já ia o tempo da inquisição que imolara Giordano e assustara o Galileu. 

Os “resilientes” lograram encontrar uma “gramática da sobrevivência dos projetos”, que lhes permitiu ludibriar o sistema. 

Proponho, queridos netos, que coloqueis ciência no lugar da metáfora e um discurso limpo no lugar das aspas. A terminologia que eu utilizava carecia de uma melhor definição de conceitos, por exemplo, com recurso aos “ideais-tipo weberianos”. Mas, isso seria tarefa para alguém mais entendido do que eu, que não passava de um mero aprendiz de utopias.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXIII)

Murches, 9 de março de 2042

Ontem, uma boa alma me fez recordar um antigo ritual. Antigamente, era hábito comemorar o “Dia da Mulher”. Essa celebração foi caindo em desuso, à medida que dois géneros, juntamente com os géneros restantes, deram sumiço a atávicas segregações e colocaram o ponto final na “guerra dos sexos”.

Era sabido que, por detrás de uma grande mulher, havia sempre um bom homem. Exemplos era o que não faltava – O Einstein e a Curie que o dissessem – e o gênio criador do Celestin pedagogo se revelou, certamente, a partir de questionamentos formulados pela Élise:

“Como será uma aula onde os alunos não farão, todos ao mesmo tempo, o mesmo?” 

Nos idos de vinte do século passado, Élise Freinet era uma mulher prevenida, tinha consciência da obsolescência da organização do trabalho escolar centrado em aulas dadas para um (inexistente) “aluno médio”, em tempos iguais para todos. Nos idos de vinte do século XXI, a pergunta da sábia Élise permanecia sem resposta.

A que se deveria tal desacerto? Na década de setenta, o vosso avô identificou uma das causas. Quando era obrigado a assistir a palestras, deparava com palradores de acetatos (os “acetatos” colocados em retroprojetores foram os antepassados do famigerado power point) debitando respostas à interrogação da Élise. Diziam aos professores como deveriam “diversificar as suas aulas”, mas, à saída dessas “ações de formação”, eu escutava o habitual comentário:

“Aquilo e tudo teoria!”

O teoricismo era a doença infantil da teoria. E, porque havia quem enveredasse pelo aventureirismo pedagógico, o discurso dos “formadores” até chegou a ser causa de muita desgraça.

Na década de oitenta, aquando da minha licenciatura em ciências da educação, tomei consciência de que, por detrás da prática da Ponte, havia muita teoria. Que não havia prática sem teoria. Mas, também, confirmei uma triste realidade: havia teoria sem prática. As teóricas respostas dos “formadores” nada tinham a ver com práticas, que eles, artificialmente, revestiam de jargão científico.

A propósito, recordo-me de um episódio ocorrido, quando eu tentava preparar futuros professores para a dura realidade das escolas. Tudo começou com a frase que caracterizava o início de cada um dos meus dias: 

“O que quereis saber?” 

“Fale-nos de Bruner!” – retorquiram. 

“Por que quereis que eu fale do Bruner?” – inquiri. 

“Porque vamos ter uma prova noutra disciplina e vai sair o Bruner.” 

“E o que já sabeis de Bruner?” 

“Nada!” – exclamou a turma, em coro. 

“Deixai ver se eu entendo. A prova é já na próxima semana e vós ainda não lestes nada sobre o Bruner?” 

“Para quê? Quando formos trabalhar numa escola, não vamos precisar disso! Isso é só teoria! Só queremos que você nos dê aula como faz o professor da outra cadeira.” 

Quando citaram o nome do professor e me recordei dele como “formador”, curioso como era e ainda sou, quis saber como o professor dessa cadeira dera a aula sobre Bruner. Responderam: 

“O senhor doutor projetou uns slides, umas transparências. E foi lendo o que lá estava, aquilo que o Bruner escreveu nos livros.” 

“E vós, que ides ser professores, não sabeis ler?” 

“Sabemos. É claro que sabemos ler!” 

“Então, ide até à biblioteca e lede o que quiserdes sobre o Bruner. Depois, trazei para aqui as dúvidas que a leitura vos tiver suscitado pois, para que haja diálogo, todos nós teremos de estar por dentro do assunto.” 

“Nós preferimos que você dê uma aula sobre o Bruner.” – e já aprontavam papel e caneta, para apontamentos. 

“Não, meus amigos! Não vou dar a aula sobre o Bruner! Sou professor, não sou papagaio!” 

E por aí se quedou a conversa.

 

Por: José Pacheco

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