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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXV)

Minaçú, 30 de julho de 2040

Em tempo de densas trevas, como eram os de 2020, quisera que a sociedade brasileira escutasse uma das vozes que poderia ajudar a produzir alguma claridade: o Mestre Milton Santos.

O modelo cívico, cultural e político, causa da maior parte dos males do brasil dos anos vinte, fora herdado de séculos da prática da escravidão. E esse Mestre descendente de escravos assim descrevia o drama: “A escravidão marcou o território, marcou os espíritos (…) Um modelo cívico subordinado à economia, uma das desgraças deste país”.

Devido a essa geopolítica, o centro do mundo não era o homem, mas o dinheiro: “Isso abriu espaço para qualquer forma de barbárie, pela qual a gente deixa morrer crianças, velhos e adultos, tranquilamente”.

Milton sabia que a geografia de tenebrosos tempos se orientava por velhos princípios e permanecia colonizada por modelos educacionais provindos do norte escravocrata.

Quando, no princípio deste século, cheguei ao Brasil, apercebi-me de que eram escassas as referências a autores brasileiros nas bibliografias de artigos e teses. E raramente encontrava nas bibliotecas das faculdades de pedagogia obras de autores negros quase brancos e as obras de um branco quase negro de nome Lauro. Os professores brasileiros “norteavam” os seus estudos, porque desconheciam os estudos produzidos no sul. Não sabiam que a proposta da italiana Montessori fora reinterpretada por Agostinho da Silva e que o ideário de Pestalozzi fora posto em prática por Eurípedes. Mas, viriam a aprender o Piaget abrasileirado pelo Lauro e o pragmatismo do norte-americano Dewey adaptado pelo Anísio, quando os méritos de Milton foram reconhecidos, no tempo em que os brasileiros dissiparam a síndrome do vira-lata.

Queridos netos, cada coisa a seu tempo, como diriam as vossas tetravós., que tão boas contadoras de estórias eram. Se a cidade de Tecla – uma das “Cidades Invisíveis” – nunca fora concluída, para que ninguém pudesse iniciar a sua destruição, por que se considerava irreversível o triste destino de um povo?

Nos anos vinte, os avós contavam estórias feitas de tristeza, de pessimismo e alguma fé. Passado esse tempo, uma nova moral as esperançou. Na década de trinta, o apelo de Milton foi escutado. E, na humana geografia deste país, aconteceria cidadania plena, através do aprender a viver em comunidade. A ação humana agia como instrumento de mudança, porque, finalmente, o propósito e o comprometimento estavam presentes e coletivamente cultivados.

Como me emocionava o fato de o eminente geógrafo ter deixado na Terra um rastro de amor incondicional. Que afirmação audaz ele fez: “comunicação é troca de emoção”. Apesar de te sofrido na negra pele um duplo ostracismo, sempre se manteve semeador de paz.

O seu exemplo nos ajudava a continuar aspirando ao fim de um tempo em que ainda “existiam duas classes sociais, a do que não comem e as dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem”.

A experiência humana não poderia continuar a ser destruída pelo modelo civilizacional, que os poderosos impuseram a frágeis criaturas e instituições. Quando os brasileiros conseguiram identificar, não o que os separava, mas aquilo que os unia, aconteceu o inédito viável. Nos condomínios de luxo, como nas favelas, foram derrubados os muros e reconstituídas redes de vizinhança.

Em meados dos anos vinte, a profecia de Milton se concretizou, na recriação de amorosos vínculos, no resgate de identidades, na recuperação de uma convivência fraterna.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXIV)

Taguatinga, 29 de julho de 2040

Há dias, recebi uma carta enviada pela mãe de duas crianças, residente num lugar bem pertinho daqui. Sei que não mereço os elogios que a Luana me faz, mas não os retirarei da missiva. Acolho a expressão do seu saber cuidar, encaminhando o seu preito de gratidão para os educadores que tão bem cuidaram dos seus filhos. Que os encômios da Luana sejam uma singela homenagem aos professores brasilienses que, há vinte anos, mudaram o rumo da educação.

Transcrevo a carta, sem lhe acrescentar qualquer comentário. Sei que, pela sua leitura, compreendereis que havia mães atentas e responsáveis naquele tempo.

Olá, professor José Pacheco.

Lhe escrevo essa carta para agradecer, por me dar coragem para não deixar que ninguém fechasse as asas dos meus filhos, das minhas crianças. Em 2020 te ouvia sempre clamar, com muita emoção, que os professores se respeitassem e fossem éticos consigo e com os alunos que amavam. Não, eu não sou professora e por isso não pude seguir os seus conselhos, mas, ouvi-los, tão intensamente, levou-me a procurar onde estavam aqueles professores que optaram por segui-los.

Naquele 2020, quando fomos obrigados a ressignificar tanto, resolvi ressignificar o modo como queria que meus filhos aprendessem. Me encorajei a buscar uma educação que rompia com os moldes defasados do século retrasado. Você morava aqui no DF e eu também. Então pensei que, se estava tão perto de mim quem pregava uma mudança, estava perto, também, a própria mudança.

Naquele julho tão cheio de incertezas sobre nossos modelos de escola e sobre os métodos que obrigavam meus filhos a se encaixarem, resolvi falar com você. Precisava que me dissesse por onde eu poderia começar. Precisava que me dissesse se uma mãe poderia ir contra todo um sistema imposto, que lutava contra as mudanças. Precisava que me dissesse, onde, aqui na nossa cidade, eu poderia encaixar os meus filhos que, até então, estavam sufocados dentro de uma sala de aula.

Minhas crianças tinham 5 e 7 anos. Os conselhos que me destes à época e a coragem que invadiu esta mãe, mudaram todo o resto. Tomei a coragem que encontrei, depois de nossa conversa. E busquei os caminhos que me indicaste. Aquela escola e aqueles professores me ajudaram a elaborar um novo caminho por onde meus filhos andaram livremente, enquanto aprendiam.

Estou sentada na mesa de jantar da minha casa olhando para as minhas crianças, hoje, com 27 e 25 anos. Que belos caminhos puderam percorrer! Sorte deles que, ainda crianças, viram o mundo resolver questionar os moldes de uma educação amarrada em outro século. Sorte dos meus netos, que, um dia, virão e que já poderão desfrutar da aprendizagem nos moldes do século em que vivemos. Sorte a minha, que tive a coragem de romper e que, com a ajuda de gente como você e tantos outros dispostos a ressignificar o modelo que ainda tínhamos naquele 2020, pude ver crescer junto com meus filhos o projeto de um novo aprender!

Tenho, aqui, em casa, dois adultos com alma de criança, porque não desaprenderam de perguntar! Tenho, aqui, dois adultos, que, saudosamente, falam sobre os tempos de escola! Tenho, aqui, duas crianças que tiveram a coragem de dizer o que queriam aprender e a oportunidade de o aprender. Tenho, aqui, dois adultos realizados profissionalmente, porque aprender aquilo que fazia sentido para eles os empolgaram a ir bem longe. Tenho, aqui, duas crianças que adulteceram e não se adulteraram!

Graças a tantos professores que resolveram respeitar o que faziam. Graças a eles, que resolveram encarar a educação de forma ética e com amor pelas crianças que tinham nas mãos. Graças a tantos idealizadores, que vieram antes de 2020 e graças a tantos outros que, em 2020, lutaram. E graças a tantos mais, que continuaram a luta até aqui.

Graças ao seu apoio. Graças à criança que havia (e que há) em mim e que precisava ver não morrer a criança que havia (e que há) dentro dos meus filhos.

Me despeço, com gratidão. Um abraço! Luana.

 Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXIII)

Engenho de Dentro, 28 de julho de 2040

Já não me recordo de quem terá escrito que, junto com Anísio Teixeira, Freire, Darcy e Lauro formavam o quarteto mais fecundo, fértil e injustiçado da história da educação em nosso país, mas sei que li algo assim. E não eram apenas estes os injustiçados. Temos registros de muitas e muitos mais injustiçados. Como a Nise…

O Sartre dizia haver dois tipos de pessoas que diziam a verdade: as crianças e os loucos. E, nos idos de vinte, para obstar à sadia loucura, os loucos eram internados em hospícios, enquanto as crianças eram sequestradas em salas de aula. Jovens guetizados, na mesma sorte dos velhos confinados em lares da terceira idade ou estupidificando-se, frente a um televisor. Naquele tempo, os verdadeiros loucos andavam à solta e os netos eram separados dos avós em tenra idade.

A salutar criatividade da infância era cerceada pela louca velha escola. Mas a “busca da verdade e da beleza são domínios em que nos é consentido ficar crianças toda a vida”, como nos dizia o sábio Einstein. E as pinturas dos considerados loucos, nos quais a Nise reconheceu genialidade, deram origem a um belo museu, prova de que nem tudo estava perdido.

Pela mão do meu amigo Vítor, fui até ao Engenho de Dentro, onde o Hotel da Loucura provava ser possível, em imprevistos e improváveis lugares, retomar o rumo perdido da humanização, concretizar utopias.

No discurso sobre educação, a palavra utopia era sinônima de impossibilidade. Mas, como diria o Quintana, “se as coisas são inatingíveis… ora! / Não é motivo para não querê-las”. Concretizar utopias – recriar vínculos, rever e re-olhar, reelaborar as práticas – reconfigurava a metáfora do Mito de Sísifo, o “inédito viável” freiriano. A nova educação, que emergia do sonho de todos nós, deveria formar o cidadão democrático e participativo, o ser humano sensível, solidário, amoroso.

Todas as teorias já estavam escritas. Importava renovar a denúncia da guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem transformadora. Nunca seria demasiado afirmar a possibilidade de uma escola na qual os aprendizes aprendessem a lidar com um conhecimento mutante, na busca da integração das diversas dimensões do humano “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”, como diria uma Nise, que um tal Carl Jung admirava e desejava conhecer.

Então, como entender a pressa na decisão de, ainda em plena pandemia, remeter a infância para dentro de muros? O que se aprendia dentro de um edifício escolar, que não pudesse ser aprendido fora dos seus muros? Quase nada! Os decisores não sabiam que o espaço de aprender era todo o espaço, tanto o universo físico como o virtual, e a vizinhança fraterna. O modelo escolar não era o único modelo de educação. E esta deveria ser pensada mais a partir das comunidades que servia, do que a partir da instituição.

Urgia que os “paidagogos” não mais conduzissem as crianças da comunidade para a escola, mas que as libertassem da reclusão em guetos escolares e as devolvessem à comunidade. A recuperação de vínculos afetivos, seria início de cura das enfermidades sociais, como dissera a Nise: “O que cura é o contato afetivo entre uma pessoa com a outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito”.

Nos anos trinta, chegaria o tempo do despontar da claridade, que pôs fim à loucura. Tinha chegado o tempo de, à semelhança do Jung, o Brasil (finalmente!) encontrar a Nise.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXII)

Caldas Novas 27 de julho de 2040

No meio do internético entulho, achei um textinho com um título bem sugestivo: Um momento para recriar a educação”. Com a devida vênia reproduzo breves passagens, pois o seu início é auspicioso.

“Podemos estar prontos para acolher o imprevisto, as mudanças de rota, as incertezas e as dificuldades, mas temos que concordar que diante da atual situação, que o coronavírus trouxe, quase todos os paradigmas usuais e conhecidos foram quebrados.”.

O textinho é auspicioso até sugerir a transferência do instrucionismo para o virtual…

“A única ferramenta que temos disponível atualmente é o ensino a distância. Os canais on-line, as plataformas, os sites, as redes Facebook e WhatsApp e as vídeo chamadas. Frequentemente criticados no passado recente, hoje se tornaram nosso principal recurso, para manter relacionamentos e superar a sensação de isolamento”.

Depois, apesar de manifestar alguma ambiguidade, retoma o rumo inicial.

“Porém, precisamos manter claro o significado, a intenção profunda de quando usamos essa forma de ensino – que é manter vivo nos alunos o sentimento de pertencer à comunidade escolar, suprir a necessidade de estar juntos, de compartilhar, de sentir-se parte de um grupo, possibilidade de encontro (…) de troca e de escuta, para romper a solidão e o isolamento”.

Como referi, da tralha mercadológica, que poluía a virtual comunicação, emergiu esse exercício de algum bom senso. Porém, maculado pelo pressuposto de que só havia um caminho a seguir, o da ensinagem.

O Piaget escreveu que a educação era a única área das ciências humanas em que todo mundo se considerava especialista. O autor do textinho era formado em marketing e empreendedor na área de tecnologia. À semelhança de outros marqueteiros, confirmou a piagetiana afirmação. Para esses gurus do digital, as ciências da educação eram ciências ocultas. Mas atreviam-se a escrever livrinhos com sugestivos títulos, como “A educação do Século XXI”, reificando a inteligência artificial no monitoramento dos padrões de preferência cerebrais de estudantes – “Big Brother is watching you!”.

Três possíveis cenários pós-pandêmicos se apresentavam. O mais provável seria o “regresso à sala de aula”, que, desde há dois séculos, era causa da hecatombe escolar. O segundo era assustador: a manutenção do instrucionismo geminado com o digital, o da tecnologia ao serviço de grandes empresas do ramo da educação. O terceiro eventual cenário seria o da concepção de uma nova construção social de aprendizagem. A harmonização do presencial com o virtual aconteceria no contexto de territórios educativos compostos de “círculos de vizinhança” autônomos e com acesso à Internet.

Os aprendizes de feiticeiro do instrucionismo digital não conseguiam entender que a coexistência do presencial com o virtual aconteceria num casamento perfeito. Após um divórcio, claro! Um divórcio que augurava ser litigioso, entre uma nova escola e o velho e esclerosado sistema de ensinagem.

Em finais de julho, a mercantilização da educação impunha-se, agressiva, disfarçada de internéticas “comunidades escolares”. Nessas “comunidades”, contemporâneos dos marqueteiros do digital surtavam, por terem deixado entrar nos seus lares a internética sala de aula. E as escolas particulares faziam carreatas, exigindo o “regresso às aulas”…  presenciais.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXI)

Jussara, 26 de julho de 2040

Nos idos de vinte, um relatório da UNESCO lembrava que a pandemia revelou que vivíamos num mundo frágil, complexo e inseguro. Num cenário de total imprevisibilidade, que decisões deveriam ser tomadas, que afetassem a vida em comum? Dever-se-ia voltar ao prédio da escola, em agosto ou em setembro, com focos de infeção ainda ativos?

O bom senso e o respeito pela Vida aconselhavam que o não fizéssemos. Mas, já havia anúncios de “regresso às aulas” marcado para esses meses. Artifícios vários serviam de argumento: funcionamento por turnos, turmas reduzidas a metade, contratar mais professores, não permitir contatos no recreio, eliminar intervalos, aumentar as atividades online… Consciente dos riscos e do ridículo desses e de outros remendos instrucionistas, um diretor de escola manifestava preocupação:

“Espero que não estejam a brincar com a saúde das crianças!”.

Qualquer justificativa servia para viabilizar um precoce “regresso às aulas”, até mesmo radicais propostas como despedir professores e usar robôs, ou substituir auleiros por inteligência artificial: “Há sempre a hipótese de fazer somente ensino on-line. A manterem-se os atuais números de infectados, seria única hipótese inteligente”.

O debate nada tinha de “inteligente”, não ultrapassava o limite da indigência mental: “Agradeço a explicação gráfica mas devo dizer-lhe que é muito ingênua e ineficaz, para provar o seu ponto de vista. Ponto 1. Os utilizadores estão de costas e não há, portanto, possibilidade de contágio (saliva). Ponto 2. E se as mesas, em lugar de em fila, estivessem desalinhadas? Seria possível assegurar a manutenção da distância de um metro entre alunos, obrigados a olhar para o quadro, sentados sozinhos em mesas duplas?”

Estapafúrdias propostas e míseras sugestões de especialistas de ocasião aconselhavam que, nas salas de aula, onde se havia colocado as mesas em círculo, se retomasse o enfileiramento, para que os alunos não ficassem com dores nas costas de olhar para o quadro, nem “corressem o risco de poderem ficar virados uns para os outros, a respirar na cara do outro” (sic). Aventava-se a hipótese de reduzir o número de alunos por turma ou optar pelo desdobramento em três turnos. Mas, “especialistas”, os administradores e os gestores não ousavam alterar programas informáticos, que haviam organizado horários e turmas, nem conseguiam pensar soluções fora do prédio da escola, ou para além do modelo instrucionista.

Era urgente encontrar soluções de rentabilização de espaço, porque, por imperativos de ordem economicista, o regresso à indispensável escola presencial não poderia ser adiado. Mas, como assegurar equilíbrio entre a aprendizagem, a educação, a saúde e a segurança, em tempo de pandemia? Como não agir leviana e displicentemente, não criar situações de risco para alunos, famílias e profissionais do desenvolvimento humano?

Queridos netos, permiti que, mais uma vez, recorra às metáforas. Porque, neste início da década de quarenta, ainda me custa pensar que tudo isso aconteceu. Precisamos de duas décadas de porfiados esforços, para reconfigurar a escola e refundar a educação, para a todos garantir o sagrado direito à educação.

Então, metaforicamente, vos digo que, nos anos que sucederam aos dramáticos acontecimentos, que venho narrando, as gaivotas que sofreram o fustigar das asas por ventos contrários aprenderam no canto das almas sensíveis a arte de voar contra ciclones e tufões, sem esquecer que o importante não é a velocidade, mas a direção e o sentido do voo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXX)

São Gabriel de Goiás, 25 de julho de 2040

Na última das cartas para a Alice, eu vos dizia que ela marcaria o reinício da vossa história de vida. A vida é uma história sempre inacabada, poderemos conferir-lhe diferentes desenlaces, poderíeis dar-lhe quantos diferentes desfechos lhe quisésseis dar. Bastaria que não vos confinásseis nos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres desse tempo da proto-história da humanidade.

Para que entendais esse tempo feito de medo e solidão, deixo-vos com mais alguns excertos do Manifesto da Denise. Para vos dizer que havia educadores que cumpriam a Vida, dando-lhe sentido. Que se respeitavam, que preservavam a sua dignidade pessoal e profissional, que propunham novos rumos para a sua Vida e a dos outros. Eis o que proclamavam:

“Pela existência palpável da vida, queremos a revolução dos Sem Medo. Queremos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja. Caminhamos… Quase nunca somos ouvidos. Vivemos através do que dizem que devemos fazer. Adote esse livro. Siga essa apostila. A orientação da escola diz que está na hora de realizar provas. Mas nunca perguntamos: Qual o sentido dessa escola? Qual o sentido desse currículo, dessas provas, desses horários? Nunca perguntamos: qual o meu sentido de estar aqui, nesse momento presente, histórico, apenas observando a crise humanitária, que 2020 está desvelando.

Temos a ciência, mas codificam como magia. A transformação permanente do tabu em totem, da Verdade em mentira. Quem merece passar de ano? A fixação no progresso por meio do “ele vai precisar disso no futuro”…

É a mentira muitas vezes repetida que nos amedronta. Cadê a vacina contra as escleroses urbanas, contra a pseudo Educação? As ideias reagem, queimam a gente por dentro. A nossa independência ainda não foi proclamada!

Caros colegas, estamos fazendo esse chamamento: #semmedodedizernão! É uma campanha que pretende fortalecer Professores e Professoras a se declararem contrários ao retorno às aulas, nesse momento. Já deixamos passar tempo demais sem nos posicionarmos”.

Fazendo eco dessas palavras, regresso, não ás aulas, mas às metáforas…

Nesses conturbados tempos da pandemia, um rouxinol de nome Góis – não é aquele em que estais a pensar e que a Santa Inquisição assassinou, mas um seu homónimo mais discreto – cantava que não se vendem certas estrelas, nem dunas de areia… Por sabermos isso, o silêncio que nos pudessem impor cantaria, num secreto jardim, melodias imperceptíveis aos ouvidos dos pássaros sem alma.

Por falar em jardim e daquilo que de dentro dele vem, veio-me à memória um conto escrito pelo Óscar sobre um pássaro que voou acima das palavras habituais. Falava-nos de um rouxinol que, num infausto instante, escutou a voz de um adolescente apaixonado, que reclamava uma rosa vermelha para oferecer à sua amada.

O rouxinol voou, urgente, em busca da rosa encarnada, sem lograr encontrá-la. A roseira queixou-se de que o Inverno lhe gelara a seiva e lhe queimara todos os botões. Apercebendo-se da imensa bondade do pássaro, disse-lhe que seria possível transformar uma rosa branca em rosa encarnada. Bastaria que o rouxinol aceitasse tingi-la com o seu sangue, deixando que um espinho lhe trespassasse o coração, enquanto cantasse o derradeiro canto. Seria o sangue da avezinha que, saciando a sede de cor daquela rosa, a iria carminar.

O Óscar Wilde era mesmo… “wild”. E, na puritana época em que viveu, sofreu as consequências da sua ousadia, quase teve o destino do rouxinol. Mas, não vos contarei o desfecho dessa estória. Inventai-a!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXIX)

Pirapora, 24 de julho de 2040

Por meados de julho, um pitoresco episódio me trouxe à memória situações do mesmo tipo, vividas no Portugal de meados do século passado. Um desembargador, que passeava sem máscara protetora, rasgou a multa passada por um guarda municipal. Não fora bastante o despropósito, ainda ofendeu o cioso defensor da lei. Creio que lhe terá chamado “analfabeto”.

Ocupando um sórdido segundo lugar do ranking dos países onde a desigualdade social prevalecia, o Brasil assistia a infames situações de afirmação de ostensivos status sociais.  O desembargador agiu como se pertencesse a uma casta herdeira de privilégios materiais e simbólicos, quando deveria agir como se esperaria que agisse um servidor público.

Um médico e biólogo chamado Jacques, descobriu que, para além de genes biológicos (físicos), genes culturais se transmitiam de geração em geração. Atitudes racistas ou classistas passavam de pais para filhos, a cultura era como que o último estágio da biologia. O homem, enquanto animal social, era uma inteligência colaborando com outras inteligências, nos seus quatro bilhões de cérebros comunicantes e a cultura era o conjunto de comportamentos aprendidos. Esta e outras descobertas científicas convidavam a conceber uma nova ordem mundial, acima de limites artificiais, que confinavam a humanidade na animalidade. Urgia superar oposições derivadas do egoísmo de classe, nacional ou individual.

Mas, era pesada a herança cultural feita de séculos de escravagismo e coronelismo – a praga das castas sociais, políticas, religiosas, se reproduzia. Genética cultural, certamente, também fruto de um obsoleto modelo de educação familiar, social e escolar. Em finais do século passado, presenciei uma cena, que ilustra este meu arengar…

Duas viaturas colidiram numa rotatória. Por lei, a prioridade pertencia ao carro que contornava a rotatória, porém, a motorista causadora do acidente afirmava que não era sua a responsabilidade pelo sinistro.

Serenamente, o sinistrado argumentava com o código de estrada, pedindo à causadora do acidente os dados para entregar ao seguro automóvel. A senhora recusou dá-los, zombando do fato de o motorista ser trabalhador da construção civil. E, quando, pela enésima vez, respeitosa e pacientemente, ele repetiu o pedido, a senhora gritou o estribilho habitual:

Você, por acaso, sabe com quem está a falar? Eu sou diretora escolar! Eu sou doutora! Ouviu? Eu sou doutora e os doutores têm prioridade em tudo!

Acreditai, queridos netos, que foi mesmo isso que a “doutora” disse. Se o Brasil de novecentos tinha sido um “país de barões”, o Portugal de meados do século XX ainda era um “país de doutores”.

Sempre me avisavam, bem me diziam para não abordar “assuntos-tabu”. Mas, o desassossego derrotava a prudência. No quarto mês de isolamento social, enquanto 9 milhões de brasileiros passavam fome e sofriam outras privações, por terem o seu salário cortado, congressistas recebiam antecipação de metade do 13º…

Naquele tempo, subsistiam repugnantes castas., também no sistema de ensinagem. Havia ensino “superior” e ensino “inferior”. Havia ensino “público” e ensino “particular”. Este era “superiormente” considerado. Enquanto o particular “regressava às aulas”, as escolas públicas, as do ensino “inferior” não tinham previsão de retorno ao presencial.

A administração escolar nada tinha aprendido com a pandemia e forçava o “regresso às aulas”, um regresso à mesmice produtora de castas e reprodutora de desigualdade.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXVIII)

Santo Antônio do Descoberto, 23 de julho de 2040

Queridos netos, nos idos de 2000, entreguei-vos um montinho de cartas, com a recomendação de que, quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens vos permitisse, as irieis ler e sobre elas refletir. Na última das cartas, disse-vos que ela não seria o fim das estórias. Retomei a sina de avô contador, quando um vírus nos remeteu para o único modo de comunicar: o virtual.

Aconteceu que, por meados de julho do distante 2020, mais de oitenta mil vidas brasileiras haviam sido ceifadas pelo vírus. Os técnicos de saúde apelavam ao lockdown, à paralisação dos fluxos de deslocamento, a que as pessoas não se aglomerassem, enquanto mesquinhos interesses economicistas reclamavam o… regresso às aulas.

Também havia quem preferisse outro refrão, o “voltar à escola”. A que “escola se refeririam? Lá do Chile, o amigo Juan assim a definia: Quando se diz ”uma escola”, em geral, se refere a um lugar onde há salas de aula, turmas, um lugar onde se dão as aulas.. Mas o que caracteriza uma escola não são estas coisas. O que caracteriza uma escola é a sua forma particular de existir. O tipo de escola é dado pelo fluxo de interações entre as pessoas. Notemos que o fundamental nessa noção de escola é a ideia de que os seus elementos constituintes não são objetos, mas sim pessoas (…) o que permite que se pode dizer que é uma escola é dado pelo padrão de interações intersubjetivas. O fenómeno escola emerge do padrão de interações humanas.

O Juan ocupara postos de elevada responsabilidade em ministérios e na UNESCO. A sua sabedoria era inquestionável. Os desgovernantes da educação talvez não tivessem lido os seus livros e, por isso, impusessem o “regresso às aulas”. Entretanto, neste lado da cordilheira, vozes avisadas se levantavam. A minha amiga Denise manifestava a sua preocupação:

“Olá, meu caro amigo! Não sei se você lembra de mim. Você foi duas vezes ao nosso Colégio, uma cooperativa de educadores e que acabou… acabando”.

O projeto dessa excelente educadora tivera o mesmo destino de muitos outros projetos com potencial inovador. Mas a Denise não era pessoa de desistir:

“Você pode ajudar divulgando a campanha, ajudar a divulgar entre os professores”.

E juntava ao e-mail o “Manifesto pela Educação sem Medo”, descaradamente baseado no Manifesto Antropofágico do Oswald de Andrade, porque, cem anos decorridos, o essencial desse Manifesto mantinha atualidade:

Só o medo nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos. Ter ou não ter. Essa é questão! Contra todos os medos! E contra a mãe da Hipocrisia. Só interessa que eu não me perca. Estamos fatigados de todos os medos postos em drama. Medo de perder o emprego. Medo da diretora. Medo do dono do colégio. Medo de perder minhas gratificações. Medo de viver. É chegada a hora de perder o Medo e dizer Não!

Por que razão se deveria voltar para um prédio de escola, sem garantias de preservação da vida? Os professores deveriam “regressar às aulas”, ou partir para uma nova educação?

Metaforizando… foi natural, doce, terno, o modo como a escola do vosso pai-professor vos acolheu. Mas, para que pudésseis ir à escola sem medo, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de betão, vigiados, subvivendo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXVII)

São Paulo, 22 de julho de 2040

Regressando à minha mátria brasileira, chego mesmo a tempo de celebrar os cento e vinte anos do nascimento do Mestre Florestan.

A sua origem humilde moldou o teu caráter. Filho de mãe imigrante e analfabeta, começou a trabalhar como engraxate aos seis anos de idade. Foi forçado a abandonar a escola aos nove e fez as primeiras aprendizagens sociológicas na escola da vida. Porém, não deixou de acreditar que a educação poderia ser uma experiência transformadora e que as escolas deveriam formar “um sistema comunitário”.

Como deputado federal, Florestan participou na Campanha de Defesa da Escola Pública, bateu-se pela escola que integrasse a dispersão cartesiana, bem como pela autonomia das escolas, que apenas tinha expressão na timidez do artigo 15º º da LDBEN, jamais regulamentado e, na prática, deturpado.

Em julho de 2020, comemorámos o seu centenário. Parece que foi ontem, que educadores brasilienses se reuniram, nesse mesmo dia, para anunciar a criação da primeira rede de comunidades de aprendizagem.

Entre 2015 e 2018, para que (finalmente!) a LDBEN fosse cumprida, a Secretaria de Educação do Distrito Federal me solicitara um projeto de desenvolvimento de comunidades de aprendizagem. Feita a entrega do projeto, uma portaria criou a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá. O projeto político-pedagógico da CAP apresentava-se deste modo:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento, isto é, a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio, a criar, planejar e respirar os projetos de interesse de sua gente, de sua realidade”. A “Apresentação” da CAP começava com esse excerto do documento-base da política educacional da secretaria, o “Currículo em Movimento da Educação Básica”. Até então, esse documento havia sido letra morta.

Em 2015, a pedido da secretaria, um núcleo de projeto se tinha constituído. Em 2018, o teor do documento começava a ter tradução prática, círculos de vizinhança eram esboçados. Nos encontros com as famílias, com a comunidade, com a secretaria de educação e órgãos de poder, seria suscitado o debate sobre a ressignificação do espaço escolar, bem como da relação deste com a comunidade. Visava-se materializar princípios e valores, que constavam do projeto e o fundamentavam.

Nesses encontros, era apresentada e explicada a proposta de reconfiguração da prática escolar às famílias que desejavam que os seus filhos participassem do projeto. Estimulava-se o encontro informal de esclarecimento. A “Campanha de Defesa da Escola Pública” do Mestre Florestan despertava de décadas de abandono. A defesa de um ensino público, laico e gratuito, enquanto direito fundamental do cidadão do mundo moderno, tomava forma concreta.

O projeto de criação da segunda comunidade de aprendizagem – a Comunidade de Práticas Sustentáveis do Mangueiral – assumia os mesmos princípios da CAP. Visava superar os modelos educacionais vigentes, buscando fertilizar as práticas, a partir do legado deixado por eminentes educadores. Florestan Fernandes e Anísio Teixeira eram disso exemplo, quando concebiam a ideia de uma educação integral, onde se acolhia a multidimensionalidade do ser humano e onde se usava como matéria-prima a própria vida. A rede de comunidades de aprendizagem foi a concretização prática desses princípios.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXVI)

Queluz, 21 de julho de 2040

Prestes a partir para terras brasileiras, participei num encontro de académicos interessados em conhecer a nova educação, nascida no sul de há vinte anos. Aproveitei o ensejo para lhes falar de Florestan Fernandes e da sua obra.

Amanhã, completar-se-ão cento e vinte anos sobre a data do seu nascimento. O insigne educador brasileiro nasceu em São Paulo, em 22 de julho de 1920 e na sua cidade-berço faleceria em 1995. A morte o levou, pouco antes da aprovação de uma Lei de Bases, que ajudou a construir.

Não sei se no lugar etéreo onde se encontra “memória desta vida se consente”, mas sei que o eminente sociólogo se surpreenderia, se soubesse que, um quarto de século depois, essa lei continuava por cumprir. De absurdo em absurdo, os desgovernantes da educação tudo faziam para impedir o seu cumprimento. Narrarei um caso exemplar.

Um governador inaugurou uma escola construída no “Padrão Século XXI”. Pouco tempo após a inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro dessa (dita) escola modelo. Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida.

A diretora disse que o rapaz tinha comportamento normal e boas notas. O porteiro do colégio prestou depoimento: a Polícia Militar vem, ajuda, mas quando eles saem os marginais voltam. Acrescentou que o colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde os alunos estudavam. Que um serralheiro colocaria placas em volta da escola, mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”, disse. Um superintendente da secretaria de Educação averiguou as condições da infraestrutura de segurança e, peremptoriamente, afirmou: um circuito de câmeras de monitoramento será instalado ao redor de toda a escola. E a Polícia Militar, por sua vez, informou que fazia rondas intermediárias.

Porém, apesar de todas as garantias dadas por quem podia dá-las, poucos alunos apareceram na instituição na manhã seguinte. E uma mãe decidiu mesmo tirar o filho daquela escola, porque se cansou de ouvir os relatos do menino, que afirmou ter testemunhado o uso de drogas no local. Culminando esta insana sequência de fatos, a escola, que era pública, se tornou uma instituição militar.

Disse a minha amiga Ely que pais e governo comemoraram o plano de recuperação da qualidade da escola, através da colocação de policiais militares, uma solução retrógrada, talvez inconstitucional e desnecessária. Quanta ignorância a de pensar que se poderia acabar com a violência explícita com recurso à violência simbólica, numa escola-caserna! Ou que um ambiente castrense poderia gerar autonomia e disciplina.

Na minha provecta idade, eu estava crente de que já tinha visto tudo, mas estava imbuído daquele engano de alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito… Perplexo com tantas besteiras, iria juntá-las ao balde do lixo do computador. Eis senão quando, este português cioso da sua herança cultural, encontrou uma razão para reagir – a ocupação das escolas pela PM começaria no “Colégio Fernando Pessoa”.

Diria o Fernando poeta que tudo vale a pena, quando a alma não é pequena. E o que não vale a pena é perder o dom da indignação. Por que não deixavavam o poeta em sossego, no seu repouso eterno? Por que se permitia que a poesia e a pedagogia fossem vilipendiadas? Por que se calavam os educadores perante tantas aberrações? Por que razão, os educadores brasileiros não seguiam o exemplo do Florestan sociólogo, que dizia ser o professor “um cidadão e um ser humano rebelde”?

Na cartinha de amanhã, vos darei um princípio de resposta.

Por: José Pacheco

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