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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCIV)

Sobradinho, 30 de agosto de 2040

Querida Alice, numa cartinha de há trinta e nove anos, celebrava o teu nascimento e assim dizia:
Raros serão os seres humanos que entendam a sutil sapiência dos pássaros. Mas eu sei que tu, querida Alice, compreenderás a lição. Sei que teus caminhos se hão-de cruzar com outros caminhos, com ou sem rotas definidas. Sei que não estás condicionada por sentidos obrigatórios, nem contaminada pela vertigem das ultrapassagens. Saberás inventar venturosos mapas, respeitando os que optarem por inventar os seus. Esta ideia da divergência de percursos, sejam eles itinerários paralelos ou alternativos, é tão antiga como a imposição das veredas por onde correm à desfilada e em atropelo jovens pássaros aprendizes da perseguição de fugazes pódios e honrarias.
No dia do teu décimo nono aniversário, convidei educadores para conversar sobre a criação de uma rede de comunidades de aprendizagem. Fraternalmente e definitivamente os convoquei, pois estava mais do que provado que a escola da aula fora uma invenção diabólica. Já Férrière o dissera. Contava esse eminente pedagogo que, um dia, deu o diabo uma saltada à terra e verificou, não sem despeito, que ainda cá se encontravam homens que acreditavam no bem. O diabo concluiu que as coisas não iam bem e que se tornava necessário modificar isso. E disse consigo: ‘A infância é o porvir da raça; comecemos, pois, pela infância”. Mas mudar a infância, como? Teve uma ideia luminosa: criar a escola. E, seguindo o conselho do diabo, criou-se a escola. “A criança adora a natureza: encerraram-na dentro de casas”.
Aqueles que, na Rede de Comunidades de Aprendizagem, assumiram o “desencerramento” da infância seguiram recomendações de grandes humanistas desse tempo. Do Mia Couto, quando propunha: “cada um de nós faça a sua parte, para que se dê um novo reencantamento do mundo, a começar por nosso mundo interior”. E, também do Papa Francisco, que apelava ao “renovar a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva”:
“É necessário acelerar esse movimento inclusivo da educação para combater a cultura do descarte, criada pela rejeição da fraternidade como elemento constitutivo da humanidade”.
Se Papa João dissera que a Igreja era o “Povo de Deus em Marcha”, o Papa Francisco nos convidava a reinventar a Escola, a colocar a “Pessoa na Casa Comum”, chamada a viver e a reencontrar o dom da fraternidade, num novo tipo de relação humana a que chamávamos “aprender em comunidade”.
Querida neta, parabéns pelo teu aniversário! E por te teres juntado àqueles que contribuíram para que fosse possível humanizar o ato de aprender. Termino esta cartinha com palavras escritas no tempo em que nasceste.
Esse agosto de há vinte anos, foi tempo de “tensa expectativa, tempo de alguma ambiguidade, de apreensão, mas também de teimosa confiança. Como pombas com ramos de oliveira atravessados nos bicos, as aves aprendizes estabeleciam laços, lançavam alicerces das pontes, que levavam dentro de si, nas faldas das margens a unir. Não importava a tumultuosa torrente que ameaçava fazer ruir as frágeis fundações. Não importava que horrendas fauces assomassem nos itinerários construtores. O medo não era sentimento que se cultivasse. Aliás, uma das gaivotas encontrou recados de despedida deixados na escola das aves. Um desses recados de pássaro aprendiz dizia: Hoje, sinto-me quase feliz, à beira de voar sonhos novos. Medo não sinto. E até o inesperado me fascina. É um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce. Medo não sinto, porque não parto sozinho”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCIII)

Eldorado dos Carajás, 29 de agosto de 2040

Esta cartinha será feita de citações de mensagens recebidas no mês de agosto de há vinte anos. A primeira, do amigo José, que comentava deste modo o “Roteiro do regresso às aulas”, objeto da minha cartinha de há dois dias:
“Um Roteiro, para ser coerente, tinha a obrigação de ser menos prescritivo e incluir exemplos que integrassem todas as linguagens e saberes. É altura de comprovar textualmente a natureza prescritiva do documento: O verbo DEVER ocorre, pelo menos, 26 vezes nas suas 51 páginas. As ESCOLAS Devem (pelo menos 5 vezes); os Alunos devem (pelo menos 3 vezes); os PROFESSORES devem pelo menos 3 vezes; as estruturas/dispositivos devem pelo menos 7 vezes; e o sujeito indeterminado ocorre pelo menos 8 vezes. Curiosamente, o Ministério, a Dgeste, e todas as demais estruturas centrais não têm neste documento de orientações qualquer DEVER”.
O amigo Tuck abordava o “principal problema da aula”, o obsoleto dispositivo de ensinagem para onde a Dgest obrigava a voltar:
”O principal problema da aula é que trata muitos indivíduos como um só, como massa. Quando você critica a cultura de massa e não crítica a escola que força dar aulas, você está sendo muito mais a favor do que contra a cultura de massa, afinal o impacto negativo de uma escola ruim e aulista é mil vezes maior do que o de uma emissora de tv, um site ou uma rádio.
“Nossa, mas estamos falando de educação ou comunicação?” E eu te pergunto: existe educação sem comunicação? O grande problema da aula é que ela é pautada por ruídos, onde emissor e receptor estão quase ou completamente desconexos, ou com mal contato dando curto.
“Então como seria a outra forma, sem aulas?” Primeiramente, sem solidão docente. Segundo, baseado em convivência de qualidade (para isso ocorrer, algo tem que sair e esse algo é a aula pois preenche o tempo de forma desproporcional). Terceiro, criação de novos tempos e espaços, que permitam autonomia, que permitam pesquisa, que permitam subjetividade, convivência, criação, que permitam qualidade de vida. Quarto, autonomia. Fala-se muito de gerar autonomia em crianças, mas hoje, em 2020, podemos contar nos dedos da mão quantos professores, coordenadores, gestores e técnicos de educação são autônomos. Autonomia é uma coisa, independência é outra. A independência é algo nocivo, pois é alimentada por orgulho e individualismo. Não existe a educação, se não houver consciência de interdependência, e não existe educação de qualidade sem ação baseada em alteridade, pautada pelo diálogo. Sem isso tudo, nós temos esse caos, onde podemos tranquilamente colocar a aula como um dos grandes causadores”.
Por fim, um recado da Fernanda:
“Vivemos o triste momento em que a necropolítica apoia-se na naturalização da perpetuação do inaceitável número de mortes diárias registradas no país como consequência da Covid-19. A postura negacionista da gravidade da situação por autoridades governamentais, materializada em políticas públicas ineficazes, requer o questionamento crítico das determinações vindas desses órgãos. Nossa posição em defesa da permanência do ensino remoto é pautada em um motivo que entendemos estar acima de quaisquer argumentos ou mecanismos de pressão: a vida”.
A Fernanda recusava obedecer às imposições dos burocratas do “regresso às aulas”. Sabia que era urgente matar saudades de colegas e amigos, que era intenso o desejo de, não virtualmente, abraçar os professores. Mas, a Fernanda também sabia que não se tratava de “regressar às aulas”, mas de… desaular.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCII)

São Mateus do Maranhão, 28 de agosto de 2040

No final de agosto de há vinte anos, a Organização Mundial de Saúde insistia na recomendação do distanciamento social, como medida mais eficaz para controlar a disseminação do coronavírus. Mas, políticos circulavam sem máscara, dando exemplo de irresponsabilidade. A administração educacional insistia no “regresso às aulas”, quando se sabia que, entre crianças e adolescentes, dois em cada três infectados pela Covid-19 eram assintomáticos e fator de risco de contágio de professores e… avós.

O egoísmo dos políticos e a irresponsabilidade dos administrativos tinham sido incutidos pela educação familiar, social e escolar. O adestramento num “currículo oculto” os fizera assim. Imersos numa cultura feita de clausura e resignação, “tias e tios” reproduziam um modelo escolar inspirado em instituições reverenciadas no século XIX.

Queridos netos, sei que será difícil explicar aos filhos dos filhos dos nossos filhos, nascidos na luminosa década de trinta, a turbulência social de tempos sombrios. Tentarei fazê-lo, nas próxima cartinhas, falando-lhes de causas longínquas das violèncias sofridas pela humanidade do início deste século.

A Escola da Modernidade nasceu nos estados-nação europeus, que se afirmavam entre os séculos XVIII e XIX. Teve origem na Prússia Militar, na Inglaterra das usinas de produção em série da Primeira Revolução Industrial e na França das casernas e conventos. Nasceu enclausurada em “celas de aula”, de janelas estreitas e abertas bem acima de onde alcançava o olhar dos alunos.

Dentro delas, sob a designação de “tias”, as professoras agiam como monjas de clausura e os “diretores tios”, como madres superioras.

Freire escreveu um livro com o sugestivo título de “Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar”. O insigne mestre convidava-nos a refletir: A professora pode ter sobrinhos e, por isso, é tia, da mesma forma que qualquer tia pode ensinar, pode ser professora, por isso, trabalhar com alunos. Isto não significa, porém, que a tarefa de ensinar transforme a professora em tia de seus alunos, da mesma forma como uma tia qualquer não se converte em professora de seus sobrinhos só por ser tia delesEnsinar é profissão (…) enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão, enquanto não se é tia por profissão. Se pode ser tio ou tia geograficamente ou afetivamente distante dos sobrinhos, mas não se pode ser autenticamente professora, mesmo num trabalho a longa distância, “longe” dos alunos”.

No tempo da ditadura de Salazar, as professoras aspirantes ao matrimônio eram obrigadas a pedir aos seus superiores hierárquicos autorização para casar-se. Deveriam provar que o candidato a marido possuía rendimentos suficientes para “manter a esposa”. Acaso o candidato não reunisse essa condição, ela teria de procurar novo namorado, ou ficar para… tia. E, se não estou errado, a Etologia explicava a origem do termo “tia”: a macaca que não poderia ter filhos, porque se encarregava de cuidar dos filhos dos macacos que morressem. A pretexto de os pais precisarem de “ir trabalhar”, a infância era confiada em “celas de aula”, vigiadas e punidas por “tios e tias”.

A escola das “tias” encerrou a infância e a juventude dentro de “celas de aula”. Por isso, quando mini ditadores ameaçavam com a “reprovação por faltas” – como referi na cartinha anterior – partiam do princípio de que a escola era um prédio com salas de aula, uma indisfarçável clausura.

Urgia desclausurar a escola. Isso fizemos, na década de vinte.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCI)

Imperatriz, 27 de agosto de 2040

O meu amigo Tião dizia que a escola era o “serviço militar obrigatório aos seis anos”. Pelo agosto de há vinte anos, se escutava a irresponsável ladainha do “regresso às aulas”, o retorno ao presencial do “serviço militar obrigatório aos seis anos”. A sinistra Direção-geral dos Estabelecimentos Escolares (Dgeste), num ridículo documento intitulado “Orientações gerais relativas aos direitos e deveres dos alunos e ao seu acompanhamento, no âmbito das atividades letivas presenciais e não presenciais”, determinava que os alunos voltassem a poder ser penalizados quando tivessem faltas injustificadas às aulas presenciais ou às sessões síncronas do inútil ensino à distância.

Em próxima carta, talvez comente o famigerado “Estatuto do Aluno”, um documento perverso, que permitia à Dgeste formular ameaças: “O incumprimento dos deveres por parte do aluno é susceptível de aplicação de medidas disciplinares sancionatórias, nos termos previstos no Estatuto do Aluno”. Essas medidas iam da “repreensão registada” à “expulsão da escola”. Os artigos do Estatuto do Aluno mencionados explicitamente nas “Orientações” referiam-se às “faltas injustificadas” e suas consequências, quando ultrapassassem os limites definidos.

Um gestor “puxa-saco” do ministério assim comentou o pérfido documento da Dgeste: “Não tem objetivos persecutórios, mas sim claramente pedagógicos”. O que seria persecutório para esse funcionário? E que pedagogia evocava esse ignorante?

Um diretor de escola pedagogo atento e sem tiques persecutórios – eram raros, mas também os havia – também comentou esse lamentável documento: “É um documento elaborado por alguém que acha que pode passar por cima da autonomia das escolas! Nem sequer está assinado.”

A Paula estava preocupada, pois pretendia manter o seu filho protegido da covid-19. Não queria que fosse obrigado a “regressar às aulas”, sem garantia de proteção contra o risco de contágio. E, sobretudo, sem proteção relativamente aos malefícios de um isolamento social em sala de aula – a escola da aula já causara desgraça maior do que a pandemia!

Mães tinham sido avisadas que que, “se os seus filhos não regressassem à sala de aula” reprovariam por faltas”. A escola da aula ancorava-se numa regulamentação da Lei de Bases elaborada segundo uma racionalidade burocrática e administrativa, que contrariava o disposto no artigo 48º da lei. Isso mesmo! As “Orientações” estavam fora da lei, porque a Lei de Bases é explícita, quando estabelece que “na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”.

Os funcionários da Dgest não poderiam alegar desconhecimento da Lei. Nem eu desejava concluir que talvez fossem analfabetos funcionais, que a tivessem lido e nada tivessem entendido. A “reprovação por faltas” carecia de fundamentação científica. Era um conceito obsoleto, reminiscência de uma das origens da escola da modernidade: os conventos do século XIX.

Se os alunos forçados à reclusão numa sala de aula, duzentos dias por ano, “não reprovavam por faltas”, os indicadores do insucesso escolar demonstravam que esses alunos pouco ou mesmo nada aprendiam. E ninguém poderia ser enclausurado e condenado a não aprender.

A ameaça da “reprovação por faltas” soava a autoritarismo barato e até talvez configurasse um criminoso ato de assédio moral. Por isso, urgia desclausurar a escola. Isso fizemos e sobre isso vos falarei nas próximas cartinhas.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CC)

Santo Antônio da Patrulha, 26 de agosto de 2040

Oitenta e quatro meninas de dez a catorze anos deram à luz em São Paulo, no período de três meses. Havia um silêncio cúmplice perante essa e outras violências, que encobria os vinte e seis mil partos anuais, de crianças entre dez e catorze anos. Havia um avanço de um fundamentalismo hipócrita, encorajado por discursos e ações que reforçavam o preconceito e a misoginia. Proteger as crianças era dever da família, da sociedade e do Estado, mas a sociedade do tenebroso tempo da pandemia falhava em todas as esferas de proteção.

Essa situação suscitou recordações de há meio século. Muitas crianças, que não frequentavam a Escola da Ponte nos visitavam, no seu contraturno de escola. Os nossos alunos os acolhiam e com eles partilhavam aprendizagens. Certo dia, observei uma dessas crianças aproximando-se do prédio da Ponte. Parou na porta sempre aberta, espreitando. Convidei-o para entrar.

Observando as crianças, desejávamos que a grega scholé se fizesse permanente. Enquanto brincavam, evidenciavam o respeito a regras, aprendiam a conviver. Aprendiam que a sua liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro, mas que começava onde a liberdade do outro começava. Aprendiam a ser, se reconheciam reconhecendo o outro. Aprendiam a não estar sozinhos.

Durante cerca de um mês, observei o modo como aquele menino interagia com os nossos alunos. Com preocupação, me apercebi de que, apesar de bem acolhido, quase não falava e não fazia amigos. Quando se tentava chegar à fala com ele, esquivava-se. Pensei em ir à sua escola, conversar com a sua professora, manifestar-lhe a minha preocupação e me disponibilizar para com ela colaborar. Não cheguei a fazê-lo. Essa criança se suicidou com veneno de escaravelho.

A tragédia foi motivo de profunda reflexão.Ao tentar identificar os motivos que uma criança pudesse ter para pôr fim à sua vida, identificamos alguns “solitários” entre nós. Perante tristes silêncios de alunos nossos, decidimos criar dois dispositivos – o tutor e a caixa dos segredos – canais de comunicação, que abreviaram situações de discreto sofrimento. Se as escolas eram arquipélagos de solidões, lançamo-nos num anular de insularidades.

Quando encontrávamos um recado depositado na “caixa dos segredos”, de imediato combinávamos uma amena conversa. Os autores dos recados sempre aceitaram partilhar o “lugar de estar sozinho” com o seu tutor. E tinham dado um nome original ao meu “lugar de estar sozinho”. Por ser o professor mais antigo, chamaram-lhe a “pedra da idade da pedra”. Nela sentado, muitas mágoas de infância ajudei a enxugar, em conversas de incondicional e amorosa escuta. Muitos dramas e pesadelos ajudei a mitigar e a dissipar.

Como escrevi nas cartinhas para a Alice, “Calhou de uma gaivota pousar sobre a pedra da idade da pedra, uma pedra que não era igual a outras pedras, uma pedra detentora de inefáveis dons, de uma clara magia, onde se partilhava segredos.  E o coração das gaivotas sossegava. Sempre que uma gaivota nela pousava e cerrava os olhos, subia da pedra da idade da pedra um suave perfume e eflúvias meditações se produziam. De imediato, do recanto mais íntimo de um lugar onde os homens supõem não haver lugar para a imaginação, assomavam suaves gestos de solidariedade de humanos pássaros”.

Sempre disponíveis, carinhosos, pacientes, esses “humanos pássaros” – seres a que se costumava dar o nome de professor – com singelos gestos, afastavam preocupações e medos, ajudavam as crianças a reconstruir futuros, a não estarem sozinhas.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCIX)

Barra de São Francisco, 25 de agosto de 2040

Nos idos de vinte, a universidade mantinha-se ancorada num modelo epistemológico de antanho e as escolas vegetavam na prática do instrucionismo. Acadêmicos interessavam-se por “novidades” e a academia desperdiçava recursos sob a forma de bolsas para doutoramentos no estrangeiro, na procura de finlândias, desconhecendo que havia muitas finlândias dentro do Brasil da educação.

Aprovadas as teses, eram vertidas em palestras de power point. Os sites de divulgação de “novidades” se enfeitavam com essas “reinvenções da roda” da educação. E, generosamente patrocinados por empresas, ofereciam às escolas esses paliativos do instrucionismo.

O rumo que a aplicação desses produtos do engenho humano tomou foi causa de enorme prejuízo, gerou preocupação entre aqueles que, sem patrocínios, operavam prodígios no chão da escola. Deixo-vos um exemplo, entre muitos, que, sob o rótulo “inovação”, contribuiu para comprometer mudanças e protelar verdadeiras inovações.

A produção acadêmica, que tomava por objeto a comunidade de aprendizagem, consagrava o princípio do diálogo igualitário. Esse princípio estabelecia que, nos espaços de tomadas de decisão, a comunicação deveria basear-se na força dos argumentos e não em posições de poder. Mas, seria possível conciliar o “diálogo igualitário” com a manutenção de uma gestão de escola hierárquica? Quando se assumia que, em comunidade de aprendizagem, se buscava trabalhar a gestão da escola em uma perspectiva democrática, participativa e dialógica, por que se instituía uma comissão gestora da escola e não se substituía órgãos de gestão unipessoais? A gestão escolar não poderia ser democrática, através da introdução de um órgão de gestão paralelo aos órgãos de gestão tradicionais, ignorando que os diretores estavam sujeitos ao dever de obediência hierárquica.

A “tertúlia dialógica” ou a “biblioteca tutorada” poderiam ser consideradas inovações? Não eram! Desde há muito tempo, idênticos dispositivos eram utilizados em escolas sem sala de aula. Não fazia sentido que a leitura de um livro, no contexto de uma “tertúlia literária dialógica” fosse remetida para o domínio da sala de aula. Nem se percebia por que razão a “biblioteca tutorada” era um espaço aberto em horário contrário ao da sala de aula. Por que não era utilizada durante as aulas?

Se ”a capacidade de aprender e de apreender de diversas maneiras se dá ao longo da vida”, por que razão se subordinava ao tempo da escola formal? Se existia a intenção de “transformar as relações entre as pessoas em outra lógica que não a da competitividade, mas a da cooperação”, por que se dizia haver “comunidade de aprendizagem” numa escola competitiva, seletiva, excludente?

Era muito reducionista a definição do conceito e a prática do chamado “grupo interativo”, usado como recurso para a revisão de conteúdo já trabalhado em sala de aula. A presença de diferentes pessoas em sala de aula ou fora dela era prática há muito tempo utilizada em escolas que prescindiram da “aceleração da aprendizagem”, de “classes de reforço” e de outros dispositivos de educação compensatória. Nestas escolas, os jovens aprendentes não eram distribuídos por grupos previamente estabelecidos pelo professor, mas em função de objetivos comuns. E as equipes assim constituídas eram acompanhadas por tutores, que asseguravam a mediação da aprendizagem.

Na Rede de Comunidades de Aprendizagem de há vinte anos, deparávamos com este e muitos outros obstáculos à inovação. Conseguimos ultrapassá-los.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCVIII)

São Gabriel da Cachoeira, 24 de agosto de 2040

Na porta do banheiro de uma famosa confeitaria, estava pendurado um dístico: “Por favor, não urine no chão, nem no cesto dos papéis”. O inusitado apelo avivou memórias, devolveu-me a indelével imagem do Cassiano, cábula e decano dos alunos, urinando contra as paredes dos sanitários da sua escola, incitado pela algazarra de outras boçais criaturas. Decorridos tantos anos, as suas estridentes gargalhadas ainda ecoam, violentas, nos meus ouvidos.

No início de 2020, pouco antes do surgimento da covid-19, visitei uma faculdade de pedagogia. No hall de entrada, estava afixado um imponente cartaz: “Salvemos a Amazónia”. Em letras pequenas, apelava-se a uma intervenção cívica que pudesse atenuar a sanha destrutiva dos que dizimavam a floresta. Em letras ainda menores, uma nota: “Ao poupares papel, estarás a ajudar-nos nesta campanha”.

Segui pelos corredores dessa faculdade. Cartazes caídos dos expositores eram pisados por professores, alunos, funcionários, por quem por ali passava. Desemboquei num bar inundado de algazarra e lixo, líquidos não identificados e restos de guardanapos pelo chão. Na sala dos professores, observei um cesto atafulhado de papel. As folhas estavam impressas apenas de um lado. Metade das folhas estava em branco, mas estavam amarrotadas, sujas, inutilizadas.

Evoquei uma escola que eu bem conheci, onde os alunos aproveitavam o papel até ao último milímetro e colocavam na “caixa das folhas de rascunho” aquelas folhas que só tinham sido utilizadas de um lado. Recordei o gesto de um pai que, certo dia, foi oferecer a essa escola duas resmas de papel, porque “tinha visto o filho a escrever num papel usado e pensava que a escola estava a passar por dificuldades”. Quando lhe foi explicado, esse pai entendeu que a prática de reutilizar papel não se ficava a dever a dificuldades, mas à criação de hábitos, comportamentos, atitudes. Ficou sabendo que o seu filho tinha adquirido competências de educação ambiental.

Competência é o saber em ação e, nas minhas deambulações pelas escolas, escutava desabafos de professores que, sem descurarem o bom desempenho dos seus alunos no domínio cognitivo, também se preocupavam com o atitudinal:

“As nossas crianças descobriram ninhos de morcegos nas entranhas de uma velha árvore, por detrás da escola. Com elas, fizemos um projeto, para conhecer a vida dos morcegos e cuidar da árvore que era a sua casa. Chegou o “Dia da Árvore” e nós lá fomos com os alunos para uma tarde de observação. Quando chegámos ao lugar onde deveria estar a árvore, só vimos restos de ramos cortados e raízes arrancadas. Diga lá, amigo Zé, se nós não devemos estar desanimadas!

“O que aconteceu?” – perguntei.

“A diretora, quando soube da descoberta dos alunos, disse que “as crianças poderiam tentar subir à árvore e cair”. E, na manhã do ”Dia da Árvore”, mandou cortar a árvore, que era a casa dos morcegos”.

Enquanto isso acontecia, em todas as salas de aula, em cartilhas iguais para todos, todas abertas na mesma página, todos os alunos, ao mesmo tempo, pintavam árvores de papel… árvores todas iguais.

Nos idos de vinte, a Amazônia sofria uma devastação sem precedentes. E os professores brasileiros pareciam alheios às causas desse desastre ambiental, mantinham-se coniventes com o holocausto educacional perpetrado pelo poder público. Não entendiam (ou os impediam de reconhecer) que reproduziam nas suas salas de aula um modelo social, causa indireta da destruição da Amazônia e responsável por outros crimes.

Por: José Pacheco
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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCVII)

Governador Valadares, 23 de agosto de 2040

Escondido no fundo de uma nau, a caminho do Maranhão do século XVII, Vieira escreveu num dos seus “Sermões”:

“Vós, diz Cristo, falando com os pregadores, sois o sal da terra. E chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção”.

Discretamente, cuidadosamente como deveria agir um foragido da Santa Inquisição, um jesuíta denunciava a corrupção que grassava no Reino de Portugal e dos Algarves. Também na sociedade e na escola do século XXI, faltava o “sal” do Vieira. E a imprensa fazia eco de um “caso de cola”, protagonizado por alunos de um centro de estudos. Cito o articulista:

Esses formandos foram reduzidos ao estatuto de alunos e os formadores elevados à categoria de catedráticos. E, assim, em vez de efetiva preparação profissional, se ministra um ensino essencialmente teorético, em que a cabeça dos formandos é atulhada com tecnicidade pelos seus omniscientes mestres. Não admira que, assim tratados, se comportem como alunos, para quem copiar nos exames sempre foi uma espécie de direito natural”.

Diz a sabedoria popular que cesteiro que faz um cesto faz um cento. Tínhamos razões para nos preocuparmos com a degenerescência da honestidade. E, quando essa degenerescência se manifestava na escola, talvez se explicasse a degenerescência restante.

Um professor-vigia de uma prova nacional foi instruído pelo “manual do aplicador” a colocar os alunos a uma “distância prudente” uns dos outros. Inteligente, como qualquer professor, apercebeu-se de que, sem nada dizer, o não-verbal falava mais alto do que o verbal e que ele agia como quem considerava estar na presença de seres potencialmente desonestos. Com tal procedimento, estaria a praticar o chamado “currículo oculto”, a transmitir valores negativos aos alunos: mentira, deslealdade, falsidade, “espertismo”. E, como esse professor, para além de inteligente, era sensível e assumia individualmente responsabilidade pelos atos do seu coletivo, sentiu-se um ser miserável.

Uma escola brasileira decidiu enviar os deveres de casa através da internet. Aqueles alunos que realizassem todas as tarefas seriam recompensados com um ponto extra na média do bimestre. A “inovação” foi um sucesso enquanto durou. Um professor descobriu que as respostas constavam de um site de relacionamento criado por uma aluna. A criativa aluna foi ameaçada e instada a retirar as respostas do site.

Numa das minhas viagens pelo chão das escolas, li num dístico, à entrada de um hotel: “Caro hóspede, devido à triste estatística de três ou quatro toalhas extraviadas por mês, estamos intensificando a revista após o fechamento da sua conta”. O absurdo virara instituição, como se avalia por mais uma situação, que passo a descrever.

O Gastão era professor e homem que se dizia íntegro. Um amigo do Gastão ganhou a eleição para a prefeitura e convidou-o para ser o chefe de divisão de educação. Seria necessário conferir seriedade à escolha e foi aberto concurso público. Falta referir que o critério básico para admissão a concurso seria ser titular de licenciatura em… Ciências da Religião. O Gastão foi o primeiro (aliás, o único) classificado no concurso. Acrescente-se que o Gastão era professor de… Educação Moral.

Era preciso acreditar que a crise moral em que o Brasil estava imerso seria civicamente debelada e que outra educação seria possível. Urgia tomar decisões éticas, porque já o velho Platão nos avisava ser curta a distância entre a corrupção moral e a tirania.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCVI)

Fidelândia, 23 de agosto de 2040

Ao longo do século XX, o Brasil foi pródigo em fazedores de boa educação. E um português ilustre se veio juntar a uma plêiade de sábios, ignorada pelos brasileiros, nos idos de vinte.
Para o Mestre Agostinho, mais importante do que educar, seria evitar que os seres humanos se deseducassem, pois “cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à volta”. Esta asserção aplicava-se plenamente aos tenebrosos tempos vividos por volta de 2020. Era preciso “não desanimar”, não desistir, esperançar.
Agostinho acreditava sermos capazes de reencontrar o que em nós é extraordinário para transformar o mundo. E agiu em coerência com as suas convicções. Ajudou a criar universidades, tertúlias, institutos. Traduziu para a língua brasileira a obra de Montessori e de outros escolanovistas, ousou a ruptura com o instrucionismo, gesto poético de quem aprendeu a arte de colocar o sonho em ato.
Debaixo de uma mangueira próxima da faculdade de Pedagogia da Universidade de Brasília, escrevia poemas, que distribuía por alunos, professores e candangos. E, quando propôs que se trocasse o lema “ordem e progresso” por “liberdade e desenvolvimento”, sofreu as consequências da sua civil desobediência e da coerência com o seu credo:
“Poeta é aquele que cria na vida alguma coisa que na vida não existia. A vida certa do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida e cada um dos outros pudesse ter esse espetáculo extraordinário de ver pessoas diferentes à sua volta e não, como tantas vezes acontece, sobretudo em pessoas que gostam de mandar nos países, achar que deve ser tudo igual, e quando aparece alguém diferente se ofendem, acham que está fugindo das regras, saindo da vida que deve ter”.
Em Santa Catarina, em São Paulo, na Bahia, na Paraíba e outros lugares do Brasil, que amou e celebrou, viveu como um franciscano, porque sabia que nascemos para criar e que a vida deve ser gratuita. Consta que, em Itatiaia, reuniu gente naquilo que, hoje, poderíamos designar por comunidade de aprendizagem. Sabia que o desenvolvimento dessas comunidades dependia da diversidade de experiências das pessoas que as integravam, bem como requeria que todos os membros que a constituíssem se envolvessem num esforço de participação, de produção conjunta de conhecimento, vizinho a vizinho, numa fraternidade aprendente.
Quando puderdes, lede o Manifesto lançado por educadores para quem Agostinho continuava a ser inspiração, educadores que não deixaram morrer a criança grande que os habitava, que perceberam o significado da entronização da criança na Festa do Divino, objeto de muitas de agostinianas reflexões.
Etimologicamente, a palavra crise – do grego Krisis – designa um momento crítico. Quarenta anos após a brasileira despedida de Agostinho, a educação daquela que foi a sua segunda pátria continuava imersa numa crise de séculos, com a Educação à deriva, pois quem a poderia transformar não tinha poder e quem tinha poder não a transformava.
Agostinho partiu de Brasília para Portugal, quando a ditadura destruiu o projeto da faculdade sonhada para Brasília, quando a pátria mãe andava distraída em tenebrosas transações e a ditadura levava Darcy ao exílio. Na Brasília de sessenta, deixou-nos um Instituto de Letras e o início de um projeto de universidade brasiliense e… brasileira. Com Anísio, Darcy e outros amigos do sul, Agostinho lançou sementes de mudança na educação, no reconhecimento de que não existe alternativa à concretização de utopias.
E novas utopias se anunciaram em… 2020.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCV)

Itanhaem, 21 de agosto de 2040

No início deste século, a Ponte recebia milhares de visitantes. Oriundos de muitos países e continentes, a curiosidade os impelia a percorrer o mesmo itinerário do meu amigo Rubem Alves. O Rubem fora em busca da escola com que sempre sonhou, sem imaginar que pudesse existir. E a ancontrou.

Mas, diz a sabedoria popular que “santos da porta não fazem mlagres” e que “ninguém é profeta na sua terra”. Talvez por isso, raros eram aqueles professores que, sendo portugueses, visitassem… aquela portuguesa escola. Entre os raros visitantes lusos, alguns captaram e adotaram o “espírito da Ponte”. O meu amigo António foi um deles. Após a visita, esse excelente educador tomou a decisão ética de mudar a sua prática, para que todos os seus alunos pudessem aprender. E adentrou a via sacra dos disruptivos.

Numa escola sujeita a cartesianas segmentações, o amigo António era professor do “primeiro ciclo”. Com preocupação, via que, quando os seus alunos completavam esse ciclo e transitavam para o seguinte, quase todo o seu trabalho se perdia. Os jovens passavam a ser sujeitos a uma ensinagem que nada ensinava. Em poucos meses, os quatro anos de desenvolvimento de uma educação de excelente qualidade se dissipavam nas salas de aula do “segundo ciclo”.

Para que os seus alunos continuassem a beneficiar de efetivas aprendizagens, o António solicitou aos órgãos de direção e gestão do seu agrupamento de escolas a integração do “segundo ciclo” no projeto. Apresentou a fundamentação legal e científica da proposta. Porém, a maioria dos professores do “segundo e terceiro ciclo”, sem apresentar qualquer fundamento legal ou científico da decisão, indeferiu o pedido.

O amigo António não era homem de aceitar desaforo. Compreendeu que era já tempo de contestar lideranças tóxicas. Contrariando as indecorosas imposições dos seus pares, integrou o “segundo ciclo” no projeto. Acaso alguma múmia pedagógica viesse a oferecer oposição, não seria o António quem teria problemas – seria a múmia.

Quando milhares de professores colocaram idêntica decisão em ato, foram alvo de assédio moral, ameaças, perseguições. Aperceberam-se de que, se o maior aliado de um professor era o outro professor, o maior inimigo dos professores disruptivos era… o outro professor. A ditadura de maiorias silenciosas já havia destruído muitos bons projetos e obrigado muitos professores a marcar consulta em psiquiatria.

No Brasil desse tempo, havia escolas que, tendo banido as aulas, conseguiam garantir aprendizagem a todos. No decurso da pandemia e na contramão de um irresponsável “regresso às aulas”, essas escolas consolidavam um modelo misto de aprendizagem – presencial e virtual – e… perturbavam o instituído. Também sobre elas caiu a infâmia e o desrespeito de canalhas.

Gandhi dizia que ser tolerante não significa aceitar o que se tolera. Poder-se-ia aceitar que a paciência suportasse a injúria? Poder-se-ia tolerar que todas as atitudes fossem consideradas legítimas? Poderíamos incorrer num relativismo “tolerante”, onde verdade e mentira se equivaleriam? Poder-se-ia servilmente aceitar manifestações de prepotência? Que tolerância se poderia colocar, por exemplo, nos limites das lideranças toxicas de gestores educacionais? Dever-se-ia tolerar o colapso ético, situações de desprezo pela vida e do não cuidar da infância, frente ao aceno do “regresso às aulas!? Essa “tolerância”, aliada à permissividade não permitiria que os tolerados impusessem as suas conveniências e caprichos?

 

Por: José Pacheco

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