Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXIV)

Crato, 19 de junho de 2041

Apresentei o alvará e logo escutei um comentário: 

“De um homem é que nós estávamos a precisar!” 

De imediato, não compreendi a razão da masculina preferência. Mas logo me foi explicado que seria bem-vindo um pedagogo musculado que pusesse na ordem umas pestes de uns alunos, que por aquelas paragens perturbavam a placidez dos dias. 

Trinta repetentes crónicos, armazenados numa só turma, a chamada “turma do lixo”

Era assim que, na distante década de setenta, apelidavam seres humanos a quem era negado o direito de aprender. E que se vingavam, transformando a vida das professoras num inferno. 

“Olhe, colega, à professora eu você veio substituir partiram-lhe um braço!”

A professora que por lá tinha passado no ano anterior jurara para nunca mais… Tinha sido insultada e apedrejada. O material didático que, na melhor das intenções, ela confeccionava, voava janela fora. E lá se foi, um dia, de atestado médico. 

“Um colega é que nos estava mesmo a fazer falta. Do que estes trogloditas precisam é de um pulso firme! Infelizmente, no primário não podemos pô-los na rua, nem os mandar para casa! Não é?” 

“Ainda bem!” – respondi, na mais pura ingenuidade dos “verdes anos” de profissão. 

Foi como entrar com o pé esquerdo naquela escola. As colegas passaram a olhar-me de esguelha, como quem pensa: 

“Lá vem em este armado em bonzinho!”

Para abreviar, dir-vos-ei apenas que tudo acabou bem. Só não houve castigos para os maus (como acontece nas telenovelas), porque, afinal… eram todos bons rapazes. 

A prática de segregação, da exclusão, serviu para legitimar a banalização de um iníquo sistema de sanções. Os processos disciplinares funcionaram como amortecedores de tensões, não lograram eliminar as causas dos conflitos. Sob a eufemística designação de “medidas educativas disciplinares”, recorria-se à panaceia das repreensões, suspensões, expulsões e quejandos, reflexos de uma racionalidade arcaica, infectada por sentimentos negativos de desconfiança e insegurança. 

A indisciplina era a filha dileta do autoritarismo e da permissividade. A disciplina era a liberdade que, conscientemente exercida, conduzia à ordem. Não era uma ordem imposta, que restringia ou negava o exercício de uma liberdade responsável. Enquanto não se compreendeu isso, não se compreendeu nada. 

A disciplina não poderia ser alcançada e mantida com recurso a mais castigos, normas, multas, punições. Talvez dependesse da criação de condições para o exercício de uma cidadania plena, dentro e fora do prédio da escola, algo que viabilizasse a formação pessoal e social de pessoas responsáveis pelos seus atos, individuais e coletivos, algo que dispensasse quaisquer imposições normativas de códigos de conduta. Talvez bastasse elaborar acordos de convivência.

Mas, como conseguir tal desiderato, se as escolas raramente se constituíam em espaços democraticamente organizados? Quem instituía as regras, os direitos, os deveres? Quem estabelecia e geria horários e calendários? Onde encontrar uma pedagogia – ou uma antropogogia – da participação e da democraticidade? 

Era o aluno que estava doente, ou estaria doente a escola e a sociedade, que a engendrou? Seria com mais represálias que se eliminaria as causas do desconforto de múltiplas violências? O respeito, que muitos diziam estar em défice, não seria uma réplica do medo que sentiam da sua “escola do antigamente”? 

Qual o significado da expressão “comportamento desviante”? Como poderíamos pensar em controlar as águas revoltas de um rio, se nos esquecíamos das margens que as comprimiam?

 

Por: José Pacheco

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