Pau dos Ferros, 10 de abril de 2040
Para muitos dos vivos, a imposição do isolamento agia como prisão domiciliar. Sem saber como gerir a solidão, não suportando a solidão do outro, não partilhando as dores, muitos seres humanos se aperceberam de que sempre tinham estado sozinhos. E, do mais recôndito recanto dos lares, do mais profundo da alma humana, um insuspeito gérmen da compaixão e da solidariedade se revelava.
No tempo em que um vírus impôs o isolamento social, o vosso avô enviava e recebia mensagens, na intenção de ajudar a mitigar desavenças, a debelar conflitos, de que me chegavam notícia. Vinte anos antes, eu publicara um livrinho, que dava pelo título de “Sozinhos na escola”. Em 2040, ele se apresenta como premonitório. Em 2004, antecipava a denúncia, ainda agora apenas sussurrada, da solidão da sala de aula. Ainda possuo um exemplar velhinho, como eu, de onde respiguei este episódio:
O Miro percorreu a via-sacra de várias escolas, até chegar àquela, por recomendação de uma técnica de serviço social e de uma psicóloga. O seu calvário académico incluía várias passagens pelo ensino especial e por outros padecimentos. Um professor aproximou-se do jovem recém-chegado e propôs-lhe que escrevesse as suas primeiras impressões da nova escola.
Não sei, não sou capaz, não faço. E você não me pode obrigar!
O professor insistiu com jeitinho: Mas…
Mas eu não sou obrigado a fazer. Você não manda em mim. Você não é meu pai! Ponha-me lá fora. Na outra escola, quando me portava mal, punham-me lá fora. Marque-me uma falta e pronto!
O Miro não sabia que só estava carente de firmeza e carinho. O pai não poderia dá-lo, porque, há muito, abandonara a família. A mãe “já não tinha mão nele”. Professores, a julgar pelo condicionamento que nele se tinha operado, poucos teria encontrado pelo caminho. O Miro tinha passado sete anos sozinho em casa e outros tantos na escola, e deixara de acreditar ser possível aprender.
À quarta tentativa de persuasão, quando lhe pediram que fizesse algo de que ainda se lembrasse, o Miro pediu-lhe que o dispensassem da tortura da escrita e lhe “ditassem umas contas, mas só de dois números”, pois apenas se recordava (e mal) das contas de somar e de diminuir: Eu sou assim. No hospital, a psicólica até disse à minha mãe que eu sou atrasado da cabeça p´raí uns cinco anos. Eu sou burro…
Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de comunicação. Sabemos que não é bem assim. As escolas são, quase sempre, espaços de solidão. O trabalho dos professores é um trabalho feito de solidão e a solidão dos professores é da mesma natureza da solidão dos alunos – professores e alunos estão sozinhos nas escolas.
Decorridos dois meses, o Miro já escrevia algumas frases, até já lia palavras em inglês! E foi a professora de Inglês que protagonizou um episódio que viria a influenciar o curso da recuperação do Miro.
Perante uma atitude menos correta do Miro, a professora repreendeu-o. Porém, apercebendo-se das nefastas consequências da reprimenda, num momento ainda tão frágil da reciclagem dos afetos, pediu desculpa ao Miro pelo exagero posto na repreensão.
Aqui, os professores pedem desculpa? – inquiriu o Miro, estupefato.
Claro! – respondeu a professora.
O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu viagem, para que a professora não visse que pela sua cara de traquina inveterado passeava a manga da camiseta com que limpava uma teimosa lágrima.
A solidão do Miro sofrera um rude golpe… e a cura havia começado.
Por: José Pacheco
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