Recanto das Emas, 09 de abril de 2040

No primeiro dia de abril, mais de dez mil pessoas morreram na Espanha, vítimas do vírus. No sexto dia desse mês, a China não registrou qualquer morte por COVID-19. No Brasil, ia sendo atingido o pico da pandemia. Estas são anotações contidas nuns cadernos, que ciosamente guardei no armário das velharias – estou velho e tenho por hábito guardar papéis.

O caderno número 5 – eu era bem metódico, como vedes… – contém registro de ocorrências desse mês e respetivas observações e inferências. Estão redigidos numa linguagem pouco adequada às finalidades destas carinhas. E, dado que nem todos os leitores estão familiarizados com os saberes das ciências da educação, recorrerei, em breves linhas, a metáforas inspiradas no COVID-19. Creio que, assim, talvez nos entendamos. Metaforizemos…

Também eu, de tenra idade, fui vítima do “vírus da ensinagem” (o designarei por inen-1900). Esse vírus havia surgido na Prússia militar do século XIX, na França dos conventos e casernas, e na Inglaterra da primeira revolução industrial, nas usinas da produção em série.

A epidemia alastraria pelo mundo e chegaria à América do Sul, trazida por um senhor chamado Lancaster, a convite de Simon Bolívar. E penetrou no Brasil, no tempo Imperador. Por aqui ficou, até hoje, contribuindo para reproduzir um sistema escolar e social iníquo.

O inen-1900 foi responsável por inúmeras catástrofes e flagelos. A escola da ensinagem engendrou degradação ambiental e guerras sem fim. Nas salas de aula, por onde passei, todos fomos infetados por esse vírus, através da fala do professor, quando nos encontrávamos a menos de dois metros dele. E pelos espirros pedagógicos do professor, quando a menos de seis metros de distância.

Outros professores me ajudaram na cura. Um padre e uma professora de francês me ajudaram a contrair o “vírus da mudança” (o muvi-68). Duas professoras da Escola da Ponte me inocularam o “vírus da aprendizagem” (o apvi-76). Professores, famílias e comunidades brasileiras me ajudaram a contrair o “vírus da inovação”. Metaforicamente o chamei de invi-20, pois se tratava de uma mutação benigna do vírus da ensinagem.

Por que foi o vosso avô procurar os cadernos? – perguntareis. Para que a memória não me traísse. Na página do dia 8 do quinto caderno, está escrito que a Cláudia utilizou o WhatsApp – lembrais-vos desse software? – para convidar o “Grupo de Trabalho das Comunidades de Aprendizagem” para um encontro virtual. Era nossa intenção partilhar a reflexão sobre a iniciativa da secretaria de educação “Escola em Casa”. E ver de que modo poderíamos auxiliar a secretaria a garantir que os jovens aprendessem, enquanto o isolamento social durasse.

O GT das comunidades tinha sido criado pela secretaria de educação. A origem do projeto remontava a 2015, quando a secretaria de educação nos pediu – a mim e à Cláudia – para criar duas comunidades de aprendizagem: uma na regional do Paranoá, outra na de São Sebastião. Isso fizemos, gastando muito tempo, muita paciência e muito dinheiro. Foi trabalho voluntário e não recebemos sequer um real da secretaria.

Em outra carta, vos direi o que sucedeu, após o fraterno convite enviado pela Cláudia.  Também vos falarei desse projeto e de como a corrupção intelectual e moral se tinha instalado no sistema educacional da ensinagem. Preciso contar-vos e com precisão, tudo o que aconteceu nesse distante mês de abril. O registro destas memórias poderá evitar que tempos sombrios regressem.

Por: José Pacheco