Mafra, 06 de abril de 2040,

Queridos netos,

Enquanto ligava o computador, recordava um episódio de antanho. Tinha à minha frente cerca de uma centena de jovens. Discutíamos as virtudes e os defeitos da escola de antigamente, num ambiente de incómoda letargia. Para os espicaçar, exagerei algumas posições críticas. E, talvez por ser apanágio da juventude contrariar os adultos, um dos jovens assumiu a defesa do chamado “ensino tradicional”:

Ó professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu aprendi tudo o que sei ouvindo aula. Saí da escola muito bem preparado!

Ainda bem. – respondi, atenuando a irritação do jovem.

Ele insistiu, realçando as qualidades do dito “ensino tradicional”, nomeadamente, “a preparação que dava na Matemática e na Língua Portuguesa”.

Eu contrapus:

Permitis que vos coloque algumas perguntas?

Faça o favor! – disseram, num tom desafiador.

Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questões muito simples, uma relacionada com a Matemática, outra com o Português. Alguns ainda balbuciaram algo ininteligível, depois fez-se um silêncio de embaraço. E eu rematei a discussão com crueldade. Recorri a outras perguntas a que ninguém ninguém soube responder.

Se, nas áreas nobres, já estávamos conversados, a incursão na História acabou com a resistência daqueles combativos jovens. Todos se gabavam de saber na ponta da língua as datas e os nomes. Mas, tudo se lhes tinha varrido da memória, à semelhança do que decoravam para os exames, que preencheram o seu itinerário escolar até à universidade. Tudo tinham “vomitado” nas provas e, depois, esquecido, para “arranjar espaço para o que não cabia na cola”.

Magnânimo (como convinha à circunstância…), eu lá fui dizendo que nem tudo se deveria rejeitar no “ensino tradicional”, que era falsa a dicotomia entre moderno e antigo, inovação e tradição. Afirmei-lhes ter testemunhado inovações no “antigamente”, ilustrando a afirmação.

Nos primórdios da década de setenta e nos vigiados e estreitos corredores de liberdade de uma escola sujeita aos ditames da ditadura, um professor desafiou-me para a aventura de um conhecimento, que nos era sistematicamente ocultado. Incitou-nos a conduzir os nossos destinos: O que quereis fazer? O que quereis aprender? – perguntou logo no primeiro dia de aulas. E nós ficámos perplexos, receosos de uma eventual armadilha contida na pergunta. Rapidamente se desvaneceu a desconfiança. Partimos na aventura de descobrir.

No meu percurso de estudante, nunca mais ouviria da boca de um professor esses estimulantes desafios. Mas as palavras e os gestos desse professor ficaram a levedar no mais profundo do subconsciente, à espera do momento propício para se transmudarem em atos.

Aqueles “velhos” jovens rejuvenesceram:

Estudamos a História de ponta a ponta, mas ficou pouca coisa. A gente tem de ser humilde e aceitar que as coisas eram mesmo assim.

Se, no domínio da acumulação de conhecimentos, o “ensino tradicional” falhou rotundamente, o que dizer da aprendizagem de outros saberes? O “tradicional” ostracismo a que era votado o desenvolvimento sóciomoral dos jovens, contribuía para reforçar a ideia de que teríamos de aceitar como fatalidade uma sociedade de vícios privados e públicas virtudes.

Felizmente, a educação familiar e aquela que alguns professores vos propiciaram protegeu-vos dos malefícios de uma “tradição podre”.

Recebei o amoroso abraço do vosso avô José.

Por: José Pacheco