Almada, 11 de maio de 2040
No mês de maio de 2020, a sociedade começava a tomar consciência da necessidade de refundar a educação e eu recebia mensagens de pais preocupados. Como esta, que encontrei num velho arquivo:
Ninguém sabe para que existe a escola, neste momento. Queria partilhar algumas preocupações, que me andam a atormentar, há já algum tempo. Recebi um e-mail do professor da minha filha. Dizia assim: “Estamos a trabalhar com aulas ZOOM. No entanto, há alunos que não têm comparecido, ou participam intermitentemente (só às vezes) nas mesmas. Relembro que a assiduidade, pontualidade, atenção e participação nestas aulas serão avaliadas no final do terceiro período”.
Bastaria usar o “quanto baste” de intuição e bom senso, para saber que o professor não conseguiria “avaliar” a filha do João. O professor só sabia aplicar testes e dar nota. Não sabia avaliar. Mas, a “avaliação” era usada como arma de arremesso, velada ameaça:
“Há alunos, que não têm realizado qualquer trabalho, ou enviam outras atividades, mas não devolvem as que o professor solicitou. No final deste período, terei forçosamente de ter em conta todos os elementos de avaliação solicitados pela Direção e a devolução atempada das tarefas. Sem estes elementos, a avaliação dos alunos ficará seriamente comprometida. Nos casos mais graves (ausência total ou prolongada de assiduidade e de qualquer resposta ou trabalho por parte de um aluno), o Agrupamento poderá inclusive considerar que se trata de negligência parental ou de eventual abandono escolar, vendo-se na obrigação legal de informar as entidades competentes.
Inacreditável! – exclamei ao ler este naco de autoritário desplante – e lembro-me de ter proferido alguns impropérios, que, por razões óbvias, não mencionarei…
Muitos pais me pediam ajuda. Mas que ajuda poderia eu dar? Dizer-lhes que deveriam rejeitar as inúteis aulas online, recusar participar da farsa? Seria pouco aconselhável, porque as escolas e as secretarias reforçavam ameaças com o legalismo de “um artigo 4.º” de um decreto qualquer que, “pelo disposto no Estatuto do Aluno e Ética Escolar”, estavam os alunos obrigados ao dever de assiduidade nas sessões síncronas e ao cumprimento das atividades propostas para as sessões assíncronas, “nos termos a definir pela escola”. E passavam das tentativas de persuasão à intimidação:
“Quero ressalvar que a dita escolaridade obrigatória implica deveres para todos nós, alunos, professores e pais e é para ser levada a sério, podendo trazer complicações para quem não cumpre”.
Este e muitos outros docentes não eram “éticos”, nem “levavam a sério” o seu múnus profissional, mas não o sabiam. Uma subcultura profissional, forjada numa pedagogia fóssil e numa miserável formação de professores, os impelia à obediência a “legítimos superiores”, os impedia de se aperceberem figurantes de uma farsa, que poderia redundar em drama.
Nesse mês de maio, aumentavam as pressões para jogar as crianças nos prédios a que chamavam “escolas”. Na Internet, encontrei o comentário de um observador atento a esta e a outras humanas misérias: Por uma falsa sensação de normalidade, pretendem amontoar as crianças, no meio do caos. Voltarão infectadas. Muitas delas assintomáticas, mas quem vai abraçá-las? Que professora vai dar colo, que avós vão deitar-se junto, vão querer essa intimidade? Vão infectar pessoas e carregar essa culpa pela eternidade. O que a maioria das crianças vive, agora, é um massacre dentro do massacre.
Por: José Pacheco
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