Núcleo Bandeirante, 25 de maio de 2040
O “EstudoEmCasa”, programa emitido pela RTP Memória, visava apoiar famílias sem acesso à Internet. O nome do canal ajustava-se perfeitamente àquilo que era transmitido. Até então, esse canal transmitia programas de grande audiência, mas de há 20 anos atrás. Em 2020, a RTP Memória transmitia pandêmicas aulas concebidas há 200 anos. Agora, em formato digital.
O desnorte do norte era equivalente à desorientação do oriente, onde a epidemia virara pandemia. E, naquilo que à educação dizia respeito, a situação de desperdício de recursos e abandono, em Portugal, era semelhante à do hemisfério sul. Porém…
Um professor dotado de senso crítico – havia alguns, naquele tempo – deixou-me esta mensagem no WhatsApp: “O rei vai nu! Foi como um flash, que esta expressão me saiu da boca, após visualizar várias aulas da primeira emissão do EstudoEmCasa, no canal público da televisão portuguesa. Como era possível que as aulas emitidas para o país fossem uma mera transposição da aula presencial para o meio audiovisual? Como explicar que, mesmo recorrendo a vídeos da Escola Virtual ou powerpoints, o formato fosse tão cruelmente imitador da realidade? Como entender que um programa para famílias sem acesso às tecnologias, carecesse de supervisão técnica e pedagógica?
Como era possível não haver mais pessoas, que questionassem o que estava ali, à nossa frente, nos écrans [nas telas, no português do Brasil]. Intervim em grupos do Facebook, questionando o formato de aula expositiva. Mas a onda protetora da classe docente cristalizou a discussão. A escola da ensinagem, do formato da aula do conteúdo, do trabalho de casa (então, chamado de “desafio”), estava ali, desnudada, para o país inteiro. E poucos entenderam o tanto que era urgente transformar a Educação.
A RTP ficou orgulhosa do aumento brutal de audiência do canal RTP Memória. E eu fiquei a pensar como é que eles colocaram os professores num cenário simplório, deram o mínimo de instruções e, por alegada falta de tempo, não permitiram repetição de gravação, indo para o ar erros dispensáveis. Percebi, com tristeza, que a concha, aberta abruptamente pelo forte condicionalismo da pandemia, não iria permitir o esplendor de uma pérola. Tinha acabado de se fechar perante qualquer indício de movimento de transformação.
As reações não tardaram. Estava instalada uma polêmica fraticida:
“Os professores fizeram o seu melhor. Foram lançados para a tevê e merecem respeito. Se fazes melhor, vai lá tu pra frente das câmaras.” E, em menos de uma semana, os zelosos professores tornaram-se heróis com direito a um louvor expresso pelo próprio primeiro-ministro, em sessão de plenário na Assembleia Nacional.
Não participei dessa polêmica. mas, à distância de vinte anos, já ninguém se zangará com aquilo que este professor diga, ou escreva, pelo que completo esta cartinha com um breve comentário.
Os abnegados professores cumpridores de ministeriais ordens manifestaram incapacidade de entender a crítica como uma ajuda, para desocultar mazelas do sistema. E a sua “generosidade” converteu-se, mais uma vez, em oportunidade perdida. Entretanto, havia quem a aproveitasse. Se os seres humanos são, implícita ou explicitamente, conduzidos por valores, os educadores dos núcleos de projeto identificaram valores comuns. O que daria consistência ao projeto seria uma “matriz axiológica”, na qual pontificariam, entre outros, a cooperação, a autonomia, a solidariedade, o senso crítico, a empatia, a responsabilidade social…
Por: José Pacheco
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