Mértola, 16 de julho de 2040

Netos queridos, estareis, certamente, recordados da crítica do instrucionismo que, magistralmente, o meu amigo Celso descreveu, num tempo em que a escola de massas fomentava a destruição em massa. A hegemonia instrucionista ignorava as contribuições das ciências da educação. Mas, a voz do Celso e as de outros mestres se fizeram ouvir. A máxima de Walt Disney “The way to get started is to quit talking and begin doing” (A maneira de iniciar é parar de falar e começar a fazer) teve tradução no ensaio do amigo Celso. Com a devida vénia, cito o Mestre:

O ser humano se constitui por sua atividade, em todos os aspectos (condição humana: não nascemos prontos). O conhecimento é estabelecido no sujeito por sua ação sobre o objeto. O conhecimento não se dá por “osmose”: não adianta o sujeito estar ao lado, em contato com o objeto, se não atuar sobre ele.

Dois sujeitos podem estar realizando a mesma ação — por exemplo, ouvindo o professor —, mas com graus de interação com o objeto de estudo bastante diferentes. Isto significa que não basta a ação; tem de ser uma ação consciente e voluntária, portanto, intencional. Tal perspectiva se contrapõe à ação mecânica, ao “programa” rígido (como um chip implantado).

No decorrer do processo de conhecimento, o sujeito precisa se expressar. O ciclo de aprendizagem só se completa com a expressão por parte do sujeito. São pouquíssimos os espaços de expressão dos alunos durante as aulas. O grande espaço costuma ser nas famigeradas provas (geralmente vinculadas a processos classificatórios, para fins de exclusão), onde os conteúdos devem ser reproduzidos, “devolvidos” (educação bancária-Freire).

Como não há atividade verdadeira, como não se desenvolve autonomia ao longo dos (longos) dias letivos, na expressão não há criação, não há autoria. Diante de uma pro(im)posta de escrita, por exemplo, uma fala inocente, e relativamente recorrente, do aluno denuncia a grande farsa, o grande equívoco da prática instrucionista: “Professora, posso escrever com as minhas palavras?” É muito triste! Aprendeu, desde muito cedo que não pode escrever com as suas (dele aluno) palavras, mas com as palavras do professor e/ou do livro didático (…) A partir da abordagem dos fundamentos epistemológicos vê-se o grande equívoco da prática instrucionista.

Por meados de julho, insensível a vozes sábias, a administração educacional obrigava escolas e professores a exportar para os lares de metade dos alunos inúteis aulas online. E preparava o “regresso às aulas”, então fantasiadas de “híbridas”.

Contrastando com a insanidade, a Rede de Comunidades de Aprendizagem, que assumiria visibilidade pública nesse mesmo mês de julho, era legitimada na contribuição das ciências da educação, de que o amigo Celso era digno representante, antecedido de contribuições de geniais educadores. Citarei apenas alguns: Lauro de Oliveira Lima, Amanda Alberto, Agostinho da Silva, Helena Antipoff, Lourenço Filho, Amanda, Nise da Silveira, Eurípedes Barsanulfo, Anália Franco, Herculano Pires, Milton Santos, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Nilde Mascellani, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro…

Se a produção científica dos mestres denunciava “a grande farsa, o grande equívoco da prática instrucionista”, por que razão ela se mantinha? Onde encontrariam as secretarias de educação legitimidade para as impor?

Em lado algum! Cientificamente, a administração educacional denotava mais de um século de atraso. E, impunemente, permanecia… fora da lei.

 Por: José Pacheco