Lagos, 17 de julho de 2040
Vezes sem conta, meus companheiros de profissão suscitaram este diálogo:
As escolas que você ajudou a criar não têm aula, nem turma… Estão dentro da lei?
É evidente que sim.
Então, as escolas que têm aula estão fora da lei?
Sim, estão.
Por que diz isso?
Porque, do modo como funcionam, negam o direito a educação a muitos alunos. E esse é um direito inscrito na Constituição e na Lei de Bases!
Respondiam:
Sim, eu sei que há leis. Lá isso há, mas…
Por mais de cinquenta anos, eu ouvira esses “mas” e a expressão “a lei não permite”. Mas, a lei permitia. Bastaria requerer inovação normativa, para que a inovação educacional acontecesse.
Embora soubesse das raízes de certos traços culturais, a resignação dos educadores me desgostava. Atitudes de silêncio e demissão eram causa direta de uma contraditória situação: a autonomia das escolas estava garantida por lei, mas estava ausente das práticas. Especialistas afiançavam que a busca de autonomia deveria ser constante, fortalecendo a instituição, demandando a participação de professores. Porém, naqueles ignominiosos tempos, imperava o medo de perder o emprego.
Com a participação da população, professores elaboravam projetos político-pedagógicos, fundamento de autonomia. Raros eram os diretores que haviam lido esse documento e a maioria dos professores nem sequer sabia da sua existência. As escolas sobreviviam num “faz-de-conta que somos autônomas”. Mais grave ainda era o fato de as práticas serem em tudo o opostas ao que estava escrito nos projetos. Isto é: as escolas estavam fora da lei, como eu dissera ao meu interlocutor.
Ao instituir um quadro normativo subordinado ao paradigma instrucionista, a administração educacional entrava em contradição com documentos de política educacional por si mesma aprovados. E essa contradição talvez configurasse falsidade ideológica.
Acresce que, impondo às escolas práticas instrucionistas, a administração impedia que princípios constitucionais fossem cumpridos. Poderíamos inferir que incorria em outra ilegalidade: a do abandono intelectual de milhões de alunos. Esse abandono se refletia nos péssimos índices de desenvolvimento da educação e de proficiência, que, por sua vez, eram evidências de ineficiência administrativa.
Se somarmos a esse rol de potenciais ilegalidades, situações de abuso de poder e episódios de assédio moral, poderíamos concluir que, nesse distante julho de 2020, o sistema de ensinagem sobrevivia imerso em corrupção moral e intelectual. Sem pretender generalizar – eu sabia de bons exemplos de gestão – se poderia dizer que a administração recorria a todos os truques, para impedir que uma nova educação se manifestasse.
A pandemia havia posto a descoberto esse lamentável cenário. Enquanto a vala comum acolhia corpos das vítimas de um vírus, a sociedade acolhia os despojos de um delinquente sistema de ensino, que as secretarias continuavam a impor às escolas. Esses meses de 2020 foram um pesadelo, mas também oportunidade de transformação social, política, económica… educacional.
Da violência simbólica da sala de aula à violência das periferias, dos assassinatos de homossexuais ao feminicídio, entre a corrupção intelectual e a corrupção moral, das depressões dos adultos ao suicídio juvenil, o Brasil definhava. Mas, como dizia a sabedoria popular, “não há mal que sempre dure”. No mês de julho, esse mal sofreu o primeiro revés. Em próximas cartas, vos contarei o que aconteceu.
Por: José Pacheco
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