Fundão, 19 de julho de 2040

No lugar de onde vos escrevo, encostado ao pé da serra, merendei as cerejas de muitas primaveras, em escolas onde anônimos professores me acolhiam, nos idos de oitenta. São memórias de um velho glutão, que muito queijo da serra saboreou na casa do amigo Gildo. Quase de partida para a mátria brasileira, ainda dispus de um tempo para satisfazer a gulodice e escrever esta cartinha.

Nos difíceis tempos, de que vos venho falando, mal grado os avanços que a lei consentia, a escola brasileira continuava imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites.

Enquanto os herdeiros da plêiade educacional do Manifesto dos Pioneiros defendia que a educação deveria ser pensada a partir das comunidades, de modo que os processos de aprendizagem assumissem um papel transformador nas sociedades, ainda havia quem acreditasse que o modelo escolar instrucionista era único e que o prédio da escola era o único lugar onde se poderia aprender.

Até que chegaram tempos novos. Encontrei educadores, que faziam das suas escolas instrumentos de emancipação, para que um povo educado não mais aceitasse “as condições de miséria e desemprego como as que temos”. Nestas palavras do Florestan estava contido o drama que a herança escravagista e colonialista perpetuava: a de manter a maioria da população culturalmente alienada e afastada das decisões políticas. O Brasil padecia de um enorme déficit democrático e de cultura cívica. As escolas que, infelizmente, ainda tínhamos e que para tal contribuíam, eram objeto da crítica do eminente sociólogo.

Falo-vos de Florestan, porque, em julho de 2020, ele fez cem anos. E porque interpelava a prática da sala de aula, a concepção do professor como transmissor do saber, a hierarquização da gestão e dos saberes. Uma linha de trabalho característica de Florestan, nos anos cinquenta, foi o estudo das perspectivas teórico-metodológicas da sociologia e os seus ensaios foram fundamentais para a afirmação da sociologia como ciência.

Florestan não estava sozinho. A educação brasileira era pródiga em referências internas, mas a síndrome do vira-lata impelia à procura de sonhadas finlândias, na ignorância das finlândias domésticas. O Brasil dispunha de uma extraordinária plêiade de teóricos: Paulo Freire, Anísio Teixeira, Nise da Silveira, Agostinho da Silva, Milton Santos, Maria Nilde, Darcy Ribeiro, o piagetiano Lauro de Oliveira Lima… mas o Piaget importado prevalecia sobre o “produto nacional”.

Com o advento da pandemia, uma das modas importadas dos States, uma escola dita “de elite”, perdeu grande parte dos alunos. E os seus pais tomaram consciência de que “o que era brasileiro era bom”. Assim se expressavam:

“Você sabe como é a elite do Brasil. Eles pensam: ‘Se é americano e custa caro, vale a pena’. Os que mantêm o filho nessa escola acreditam no marketing do ensino e têm a fantasia de que o filho, só por estudar ali, vai virar novaiorquino e levar a mesma vida que um nativo nos Estados Unidos. Não tem sentido, nos dias de hoje, continuar submetendo o aluno a aulas convencionais, previsíveis, com provas e notas. Prefiro que minha filha tenha uma experiência humanística, motivadora, que a faça pensar de acordo com o tempo em que a gente vive. Acredito que isso vai dar a ela maturidade para decidir se prestar o vestibular é algo importante. E entender que não é o fim do mundo”.

Como vedes, a mensagem do vírus suscitava mudanças de atitude parental, mudança social, operava transformações… sociológicas.

Por: José Pacheco