Imperatriz, 27 de agosto de 2040

O meu amigo Tião dizia que a escola era o “serviço militar obrigatório aos seis anos”. Pelo agosto de há vinte anos, se escutava a irresponsável ladainha do “regresso às aulas”, o retorno ao presencial do “serviço militar obrigatório aos seis anos”. A sinistra Direção-geral dos Estabelecimentos Escolares (Dgeste), num ridículo documento intitulado “Orientações gerais relativas aos direitos e deveres dos alunos e ao seu acompanhamento, no âmbito das atividades letivas presenciais e não presenciais”, determinava que os alunos voltassem a poder ser penalizados quando tivessem faltas injustificadas às aulas presenciais ou às sessões síncronas do inútil ensino à distância.

Em próxima carta, talvez comente o famigerado “Estatuto do Aluno”, um documento perverso, que permitia à Dgeste formular ameaças: “O incumprimento dos deveres por parte do aluno é susceptível de aplicação de medidas disciplinares sancionatórias, nos termos previstos no Estatuto do Aluno”. Essas medidas iam da “repreensão registada” à “expulsão da escola”. Os artigos do Estatuto do Aluno mencionados explicitamente nas “Orientações” referiam-se às “faltas injustificadas” e suas consequências, quando ultrapassassem os limites definidos.

Um gestor “puxa-saco” do ministério assim comentou o pérfido documento da Dgeste: “Não tem objetivos persecutórios, mas sim claramente pedagógicos”. O que seria persecutório para esse funcionário? E que pedagogia evocava esse ignorante?

Um diretor de escola pedagogo atento e sem tiques persecutórios – eram raros, mas também os havia – também comentou esse lamentável documento: “É um documento elaborado por alguém que acha que pode passar por cima da autonomia das escolas! Nem sequer está assinado.”

A Paula estava preocupada, pois pretendia manter o seu filho protegido da covid-19. Não queria que fosse obrigado a “regressar às aulas”, sem garantia de proteção contra o risco de contágio. E, sobretudo, sem proteção relativamente aos malefícios de um isolamento social em sala de aula – a escola da aula já causara desgraça maior do que a pandemia!

Mães tinham sido avisadas que que, “se os seus filhos não regressassem à sala de aula” reprovariam por faltas”. A escola da aula ancorava-se numa regulamentação da Lei de Bases elaborada segundo uma racionalidade burocrática e administrativa, que contrariava o disposto no artigo 48º da lei. Isso mesmo! As “Orientações” estavam fora da lei, porque a Lei de Bases é explícita, quando estabelece que “na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”.

Os funcionários da Dgest não poderiam alegar desconhecimento da Lei. Nem eu desejava concluir que talvez fossem analfabetos funcionais, que a tivessem lido e nada tivessem entendido. A “reprovação por faltas” carecia de fundamentação científica. Era um conceito obsoleto, reminiscência de uma das origens da escola da modernidade: os conventos do século XIX.

Se os alunos forçados à reclusão numa sala de aula, duzentos dias por ano, “não reprovavam por faltas”, os indicadores do insucesso escolar demonstravam que esses alunos pouco ou mesmo nada aprendiam. E ninguém poderia ser enclausurado e condenado a não aprender.

A ameaça da “reprovação por faltas” soava a autoritarismo barato e até talvez configurasse um criminoso ato de assédio moral. Por isso, urgia desclausurar a escola. Isso fizemos e sobre isso vos falarei nas próximas cartinhas.

 

 

Por: José Pacheco