Cananeia, 17 de agosto de 2040

Em meados dos anos setenta, colaborei na organização de uma “feira de livros”. Poucos foram os visitantes e um deles captou a minha atenção, por ter pousado as mãos sobre uma pilha de livros e me perguntar:

“Quanto custam estes livros? Estão encadernados em couro, não estão?”

“Sim, estão, mas você tem as mesmas obras numa publicação mais barata” – respondi. A pessoa fez questão de comprar os livros mais caros:

“Lá em casa, tenho um móvel, onde cabem aí uns vinte centímetros destes livros. São muito bonitos!”

Em 1978, fui eleito coordenador pedagógico de um programa de formação continuada. Nele encontrei um princípio de resposta para a perplexidade sentida no episódio da compra dos livros… mais por intuição do que por referência a um quadro teórico.

Fiz do primeiro momento um encontro de escuta, em grupo. A Ponte havia-me inculcado a prática do trabalho em equipe. Fora eleito pelos professores e era com eles e por eles que qualquer projeto deveria concretizar-se. Procedemos a um levantamento de recursos e detectámos a existência de uma biblioteca escondida numa arrecadação da prefeitura. Jamais havia sido utilizada pelos professores.

Retirados do pó e das teias de aranha, levamo-los para as escolas. Foram úteis, no decurso das pesquisas e os professores descobriram a Montessori, o Freinet, o Dewey e saborearam as obras de escolanovistas, até então ignorados.

Estávamos em 1978. Em novembro desse ano, era publicado o primeiro número do “Projeto”, boletim do recém criado Centro de Documentação Pedagógica. Nesse primeiro boletim, eram muitas as notas de leitura. Os boletins seguintes davam notícia de encontros de tertúlias literárias, e a biblioteca já não conseguia satisfazer todos os pedidos de livros.

Entretanto, o poder público tudo fez ao seu alcance para destruir algo que pressentiam fugir ao seu controle. Resistimos, mas não pudemos evitar a destruição do projeto. Em 1979, a biblioteca foi conferida, fechada e voltou para a arrecadação onde a tínhamos encontrado. Volvidos alguns anos, foi criado o “Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Educativo”, de que vos falei numa cartinha anterior a esta. No hiato entre as duas iniciativas ministeriais, a Escola da Ponte voltou a ganhar relevância, reconhecimento de muitas escolas e professores, pelo que me coube, novamente, o papel de coordenar o programa. Eleito, reunida a nova equipe, inventariando recursos, encontramos a mesma biblioteca tal qual a deixamos em 1979: apenas faltavam os dicionários e não havia qualquer registo de requisição, entre 1979 e 1987.

Em 1992, o programa foi extinto. Mas, a biblioteca não voltou para a arrecadação. Ao cabo de muitos meses de burocráticas negociações, a Associação PROF se encarregou de a dinamizar. E muitos professores se fizeram… leitores.

Em 2020, numa entrevista, uma professora protagonista do “Estudo em Casa” – a versão portuguesa do disparate das aulas online brasileiras – assim respondeu, quando o entrevistador lhe perguntou o que andava a ler:

“Não sou muito de leituras. Não sou muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los”.

O cenário das aulas televisionadas portuguesas estava emoldurado por estantes carregadas de livros. Entretanto, o desgoverno brasileiro pretendia recriar, agravar o imposto sobre os livros.

Recupero uma denúncia feita por Frei Beto, nesses tempos sombrios:

“Em 1960, uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias!”