Bandeirantes, 18 de outubro de 2040

Em meados do mês de outubro de 2020, a França decretava toque de recolher noturno. Um novo surto da Covid-19 fazia a Europa suspender as aulas e intensificar o isolamento social. O governo português decretava situação de calamidade. Israel só viria a abrir as escolas quando, depois de um mês, não se verificou uma morte sequer. Escolas, que haviam “voltado às aulas”, devolviam os alunos aos seus lares, após se verificar o contágio que vitimou professores e funcionários. Mas, no Brasil, em botecos, shoppings, salões de beleza e praias, as grandes aglomerações disseminavam o vírus.

Políticos e gestores irresponsáveis forçavam o “regresso às aulas”. O diretor de um colégio disse estar decepcionado com um ex-aluno (o prefeito de São Paulo) porque ele não havia autorizado a volta às aulas presenciais.  Eis o que o prefeito respondeu:

“Não tenho medo de cara feia. Na condição de cidadão ex-aluno, reputo lamentável a postura do diretor, seja por não valorizar a vida daqueles que pertencem à comunidade escolar, seja pela falta de ética”.

O prefeito era responsável pela saúde de dois milhões e quinhentos mil alunos e protegia-os da loucura do “regresso às aulas”, lamentando a atitude do diretor do colégio:

Que este gestor sempre foi autoritário já era sabido, seu caráter duvidoso e pouco apreço pela vida dos alunos, professores e funcionários é que são novidades. Lamentável”.

Nesses tenebrosos tempos feitos de negacionismo, fake news e mercantilização da educação, esse prefeito era uma honrosa excepção à regra. Mas, se na prefeitura havia bom senso, uma escola estadual era “orientada” a retirar uma faixa contra a volta às aulas.

Para o Conselho Escolar “todas as vidas importavam”. Por isso, havia decidido pelo retorno a prédio da escola apenas quando houvesse vacina para a covid-19. Em e-mail, o diretor da escola demonstrava preocupação com possíveis sanções aos professores e gestores da escola. Fazia referência às proibições previstas no “Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado”, uma lei de… 1968:

“Ao funcionário é proibido: promover manifestações de apreço ou desapreço dentro da repartição, ou tornar-se solidário com elas”.

“Somos funcionários públicos e estamos sujeitos as sanções” – concluiu o diretor.

Havia que se preocupasse com a saúde das crianças. Uma avó solidarizava-se com o diretor, mas afirmava:

“Meu neto não volta de jeito nenhum. Somos grupo de risco e o meu neto é asmático. A escola já não apresentava condições humanas para receber os estudantes antes da pandemia. Estou falando de uma escola que nem oferecia papel higiênico aos meninos, que tinham que passar pelo constrangimento de pedir papel a cada vez que iam ao banheiro”.

O estado ameaçava professores com uma lei de 1968, enquanto as escolas racionavam papel higiênico e não havia controle de piolho. A Organização Mundial de Saúde lamentavas as posturas adotadas pelo Brasil e afirmava que a dita “Imunidade de rebanho erra uma abordagem científica e eticamente problemática”. Sem uma vacina, a estratégia de deixar o vírus circular implicava, em mais mortes, mortes evitáveis. O Mestre Agostinho assim descrevia a tragédia anunciada:

“O rebanho dos homens ignorantes, que se deixam arrastar pelas palavras e com elas se embriagam; a fuga das responsabilidades claramente assumidas, o imoderado apetite do poder…”. As palavras de Agostinho ecoavam, muitos anos antes da pandemia. E mantinham atualidade, no distante 2020.

 

Por: José Pacheco