Minaçú, 30 de julho de 2040
Em tempo de densas trevas, como eram os de 2020, quisera que a sociedade brasileira escutasse uma das vozes que poderia ajudar a produzir alguma claridade: o Mestre Milton Santos.
O modelo cívico, cultural e político, causa da maior parte dos males do brasil dos anos vinte, fora herdado de séculos da prática da escravidão. E esse Mestre descendente de escravos assim descrevia o drama: “A escravidão marcou o território, marcou os espíritos (…) Um modelo cívico subordinado à economia, uma das desgraças deste país”.
Devido a essa geopolítica, o centro do mundo não era o homem, mas o dinheiro: “Isso abriu espaço para qualquer forma de barbárie, pela qual a gente deixa morrer crianças, velhos e adultos, tranquilamente”.
Milton sabia que a geografia de tenebrosos tempos se orientava por velhos princípios e permanecia colonizada por modelos educacionais provindos do norte escravocrata.
Quando, no princípio deste século, cheguei ao Brasil, apercebi-me de que eram escassas as referências a autores brasileiros nas bibliografias de artigos e teses. E raramente encontrava nas bibliotecas das faculdades de pedagogia obras de autores negros quase brancos e as obras de um branco quase negro de nome Lauro. Os professores brasileiros “norteavam” os seus estudos, porque desconheciam os estudos produzidos no sul. Não sabiam que a proposta da italiana Montessori fora reinterpretada por Agostinho da Silva e que o ideário de Pestalozzi fora posto em prática por Eurípedes. Mas, viriam a aprender o Piaget abrasileirado pelo Lauro e o pragmatismo do norte-americano Dewey adaptado pelo Anísio, quando os méritos de Milton foram reconhecidos, no tempo em que os brasileiros dissiparam a síndrome do vira-lata.
Queridos netos, cada coisa a seu tempo, como diriam as vossas tetravós., que tão boas contadoras de estórias eram. Se a cidade de Tecla – uma das “Cidades Invisíveis” – nunca fora concluída, para que ninguém pudesse iniciar a sua destruição, por que se considerava irreversível o triste destino de um povo?
Nos anos vinte, os avós contavam estórias feitas de tristeza, de pessimismo e alguma fé. Passado esse tempo, uma nova moral as esperançou. Na década de trinta, o apelo de Milton foi escutado. E, na humana geografia deste país, aconteceria cidadania plena, através do aprender a viver em comunidade. A ação humana agia como instrumento de mudança, porque, finalmente, o propósito e o comprometimento estavam presentes e coletivamente cultivados.
Como me emocionava o fato de o eminente geógrafo ter deixado na Terra um rastro de amor incondicional. Que afirmação audaz ele fez: “comunicação é troca de emoção”. Apesar de te sofrido na negra pele um duplo ostracismo, sempre se manteve semeador de paz.
O seu exemplo nos ajudava a continuar aspirando ao fim de um tempo em que ainda “existiam duas classes sociais, a do que não comem e as dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem”.
A experiência humana não poderia continuar a ser destruída pelo modelo civilizacional, que os poderosos impuseram a frágeis criaturas e instituições. Quando os brasileiros conseguiram identificar, não o que os separava, mas aquilo que os unia, aconteceu o inédito viável. Nos condomínios de luxo, como nas favelas, foram derrubados os muros e reconstituídas redes de vizinhança.
Em meados dos anos vinte, a profecia de Milton se concretizou, na recriação de amorosos vínculos, no resgate de identidades, na recuperação de uma convivência fraterna.
Por: José Pacheco