Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXIV)

Três Passos, 10 de novembro de 2040

O Kant, de que vos falei na cartinha anterior, afirmava que seria difícil para o homem sozinho livrar-se da “menoridade” cidadã, pois ela se apossara dele como uma segunda natureza. Nos idos de vinte, se confirmava a kantiana asseveração. Por serem unipessoais e sujeitos ao autoritário “dever de obediência hierárquica”, a direção das escolas enfermava de “menoridade” cidadã”, que lhe era imposta por uma administração educacional dominada por “alguéns” e “porquenãos”.

Nesta cartinha, falar-vos-ei dos porquenãos. Prometo falar-vos dos alguéns, na missiva de amanhã.

Numa cartinha de 2001, já vos descrevia os porquenãos. Com eles deparei, duas décadas depois, num Brasil de educação doente. Retomo metáforas das cartinhas enviadas no início do século, para tentar explicar o inexplicável.

Estávamos nós num tempo de há muito tempo, num tempo em que as aves falavam à semelhança dos humanos seres. Se quiséssemos estabelecer paralelos entre dois mundos, difícil seria discernir se, nesse tempo, o dom da fala era apanágio da humana condição, se as pontes de entendimento iriam do mundo dos pássaros para o dos homens, ou se deste para o dos pássaros.

Creio mesmo ser injusto que se dissesse da caturra que “só lhe faltava falar”. Esse pássaro – que talvez te recordes de ter visto na casa dos teus pais – era bem mais eloquente do que alguns humanos seres. 

Nesse tempo, encerradas na clausura cinzenta das gaiolas de instrução, eram as aves treinadas para perpetuar o método único, que consistia em trocar o belo canto pela repetição de monótonas melopeias. O borogóvio, “pássaro magro, de aspecto desagradável e com as penas todas pegadas umas às outras”, era quem melhor se adaptava ao método único. Pássaro ridículo, “uma espécie de vassoura viva”, no dizer de Carrol, aderia incondicionalmente à regra do “sempre foi assim”. E tinha por compinchas os porquenãos.

Aos pássaros porquenãos competia vigiar o cumprimento das normas e rituais de adestrar as jovens aves. Os porquenãos, que assim se chamavam por não saberem explicar por que faziam o que faziam – era assim, porque era assim… e pronto! – dificilmente coexistiam com os pássaros-mestres propriamente ditos. Os porquenãos eram aliados dos ratos e das víboras, animais do solo, invejosos e maledicentes. Os pássaros-mestres dormitavam nas copas inacessíveis aos ratos cavernosos e às víboras rastejantes.

À vista desarmada, não havia quem conseguisse distinguir uma espécie da outra. Aos pássaros-mestres não restava alternativa senão a de piar em segredo, aferrolhados nos galhos altos. Porque, se algum porquenão lograsse intuir o perigo da diferença, nunca mais os pássaros-mestres teriam sossego. Restar-lhes-ia mudar-se para uma outra gaiola, de preferência bem distante daquela. E havia ainda os porquenins, animais de outro reino, sempre de acordo, ora com uns, ora com outros, conforme a ocasião.

Talvez se torne difícil para ti, Alice, que vives outros tempos, compreender por que pássaros sem alma roubavam primaveras e impunham céus cinzentos a muitas gerações de aves escolarizadas. Imagino difícil a tarefa de te explicar a exclusão e a incompreensão, que se abatiam sobre as gaivotas. Prevejo difícil explicar-te o emudecer do canto dos bosques, esmagado por vis e letais silêncios.”

Hoje, já longe do tempo em que a menoridade cidadã dos porquenãos conspurcava de medos a educação, considero ainda ser preciso recordar o maligno impacto das suas ações, para proteger as novas gerações de um eventual retorno dessas sinistras criaturas.

 

Por: José Pacheco

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