Garibaldi, 26 de dezembro de 2040

O André estava prestes a reprovar, porque já quase havia ultrapassado o limite permitido de “faltas disciplinares”. O pai do André foi saber o que se passava. Foi-lhe explicado que o filho saía da sala de aula sem autorização da professora. Chegado a casa, o pai do André perguntou-lhe se tinha consciência do risco que estava a correr. O jovem respondeu afirmativamente.

Ainda mais preocupado, o pai voltou à escola, tentando entender a obstinação do filho. Um professor amigo acolheu-o e explicou o que vinha acontecendo, desde que uma professora nova tomara a responsabilidade de dar aulas à turma do André.

A professora era uma senhora insegura. No início da aula, gritava, ameaçava de mandar sair da sala, com falta disciplinar, todo o aluno que perturbasse a aula. Havia na turma um aluno, que parecia estar sempre de bem com a vida, dado que um sorriso permanentemente lhe enfeitava o rosto. A professora, supondo que o sorriso correspondia a desafio, pusera esse aluno fora da sala várias vezes. Tantas vezes quantas o André havia saído e, consequentemente, sido punido com “falta disciplinar”.

Na primeira vez, o André tentara explicar que o sorriso do colega era natural, uma caraterística. Não conseguira fazê-lo. A professora o mandou calar. O André saiu tantas vezes quantas o colega havia sido expulso, porque não concordava com a atitude injusta da professora e manifestava-o desse modo: num protesto mudo.

A solidariedade era um dos valores do quadro axiológico do projeto da escola que o André frequentara, antes de ingressar naquela, em que… quase reprovara por excesso de “faltas disciplinares”. São valores traduzidos em atitudes, o que define o rumo de um projeto. Na sua primeira visita à Escola da Ponte, o Rubem deteve-se a observar uma menina, que consultava um dicionário. Perguntou por que o fazia. A menina respondeu:

Estou a fazer uma lista de palavras “difíceis” deste texto e a escrevê-las de uma maneira mais simples”.

O Rubem insistiu:

“Foi um professor que te mandou fazer essa tarefa?”

“Não!” – disse a menina – “Eu sei o sentido destas palavras. Mas os meus colegas mais pequenos ainda não sabem consultar o dicionário e eu decidi ajudá-los, para que eles compreendam o texto, que é bem bonito. Nós somos como uma família. Estendeu?”

O Rubem entendeu. Encontrara, finalmente, a escola com que sempre sonhara, sem imaginar que ela já existia.

Poderá haver educação em práticas sociais que impedem a assunção de vida plena? Num tempo em que a Escola da Ponte começava a deixar de ser uma “escola dos pobres e deficientes”, passando a ser uma escola de todos, um pai transferiu a sua filha de uma escola particular para a Ponte e me confidenciou:

A minha filha aprenderá nesta escola aquilo que outras escolas lhe poderiam ensinar. Mas pode aprender aqui coisas, que outras escolas não lhe ensinariam”.

Em 1934, a primeira Constituição atribuiu ao Estado a responsabilidade pela educação do povo. Inspirava-se em valores e princípios prevalecentes na época. Decorrente de tais valores e princípios, o Brasil da educação cuidou de formar falsas elites e descuidou a educação do povo. Nos idos de vinte, desdenhava-se a ética. Não havia dia em que não se noticiasse crimes de políticos de baixo escalão, ou de colarinho branco, num jogo de salve-se quem puder. A educação familiar, social e escolar fragilizara a responsabilidade social.

Na contramão do caos e coerentes com os valores matriciais dos seus projetos, educadores resgatavam o sentido de união, em amorosos gestos, que nada esperavam em troca.

Por: José Pacheco