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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXII)

Livramento, 7 de dezembro de 2040

Sei que poderá parecer mentira, queridos netos, mas juro que, nos idos de sessenta, escutei uma professora dizer o seguinte:

“O último livro, que eu li, foi no curso do magistério. Nunca mais precisei…”

Fiquei atônito. A leitura não era tudo na vida, ler não era suficiente para operar mudança, mas não se poderia dispensar a teoria, porque não existe prática sem teoria. Por mais livros lêssemos, nunca seriam suficientes para resolver as nossas dificuldades de ensinagem. Compreendi isso no contexto de um projeto que concretizou utopias.

Já aposentado, partilhava leituras com professores que não desistiam de se melhorar. Tinha consciência de que, por mais livros que lesse, seria sempre ignorante, dada a imensidão do conhecimento disponível.

Por isso me surpreendia, quando alguém me afirmava haver professores que não liam. Talvez por isso, muitos professores agissem como aprendizes de feiticeiro, não logrando explicar por que faziam aquilo que faziam, fosse lá o que fosse que fizessem. Não conseguiam fundamentar as suas práticas com recurso à teoria e, porque não se distinguisse a sua “opinião” da “opinião” de qualquer leigo em pedagogia, eram “desvalorizados por uma opinião pública na qual todos se consideravam especialistas em educação”, como bem dizia a Hanna Arendt.

Esses docentes eram os mais vulneráveis a discursos pretensamente inovadores e ao assédio de vendedores de poções mágicas. Soube de gente que fazia fortuna, distribuindo receitas de autoajuda pedagógica, “ensinos híbridos”, sedutoras soluções, que os próprios vendedores não aplicavam. Observava falastrões afagando o ego dos professores, falando somente o agradável, em palestras de power point, contornando questões delicadas, recorrendo ao discurso da desculpabilização, tratando os professores quase como mentecaptos.

Eu ria – um riso triste, confesso – das intervenções públicas de adeptos do pensamento único, que acreditavam serem sábios. Misturavam afirmações do senso comum com propostas fósseis, propunham aquilo que sempre se fez. As escolas que não se davam conta da obsolescência do modelo, que tais criaturas defendiam, sempre tentaram transmitir conteúdo, sempre valorizaram a transmissão de informação, centrando o ensino nos conteúdos curriculares e numa “avaliação” feita de inúteis provas.

A formação dos professores parecia ignorar que, à míngua de uma produção teórica que fecundasse as práticas e que por elas fosse reelaborada, se alterava somente a nomenclatura. Ainda se insistia no decorar de teorias velhas de séculos. E, ao preconizar a priorizar a teorização em detrimento da práxis, a formação inicial e continuada contribuía para a desqualificação profissional dos professores.

Em 2020, ainda havia professores, que não liam… a tragédia da reprodução da ignorância estava no auge. O Brasil dispunha de projetos inovadores e de excelentes teóricos. Porém, desconhecia a existência desses projetos. E a teoria produzida quase não tinha espaço nos congressos, pois novas pedagógicas colonizações – quase todas de origem anglo-saxônica – se insinuavam.

No caos de uma comunicação social semeada de fake news, se receitava cosmética educacional, cujos trágicos efeitos, hoje, bem conhecemos. Sucessivas gerações foram condenadas ao grau zero de literacia, ao analfabetismo literal e funcional – havia muitos analfabetos no ensino “superior” – num drama educacional, que a escola da mesmice produzira. Mas, como diria a sabedoria popular, não havia mal que sempre durasse…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXI)

São Gabriel, 6 de dezembro de 2040

A referência mais remota ao termo “currículo” remonta ao século XVII. E são várias as concepções de currículo, associadas a diferentes formas de se conceber a educação. Tradicionalmente, currículo é a seleção cultural de determinados conhecimentos e práticas. Mas não é só isso. É também o conjunto de experiências, vivências, procedimentos, opções metodológicas, modos de avaliação etc. etc.

Currículo é, pois, um conceito de vasto espectro semântico, de difícil unanimidade. Kelly, Goodlad, Gimênio Sacristán e muitos outros autores diferem na sua definição. Deparei com dezenas de definições, que são reflexo da época e do contexto sócio-político em que foram produzidas, ou da corrente pedagógica e teoria da aprendizagem em que estão filiadas. Perante este fato, remeto para a leitura das obras de diferentes teóricos, eximindo-me a reproduzi-las, dado que presumo que o leitor não seja analfabeto e porque tudo se encontra disponível na Internet. Apenas lhes acrescento algumas despretensiosas considerações, numa prosa acessível ao comum dos mortais (incluídos os especialistas, mais ou menos, especializados em currículo).

Na Finlândia, o processo de reforma do currículo envolveu todos os educadores do país. Como declarou a ministra da educação finlandesa:

Para que o novo modelo seja bem-sucedido, os professores nas nossas escolas têm muita liberdade. E uma mudança curricular não poderia ser diferente. Não dizemos aos professores quais materiais devem usar, como ensinar. Eles têm de ter liberdade, porque são eles que sabem o que funciona melhor com cada aluno”.

E acrescentou:

“Além de o currículo focar nos projetos interdisciplinares, ele também avança no maior uso de ferramentas digitais em sala de aula. E esse processo de digitalização não significa apenas colocar um computador em sala de aula, mas usar essas ferramentas tecnológicas para aumentar e melhorar o processo de aprendizado”.

NBrasil, abriu-se uma consulta pública de um documento previamente elaborado. Milhões de sugestões de alteração, quase todas fundadas no senso comum foram colhidas, além de 27000 pedidos de inclusão de novos objetivos. Uma BNCC cativa do velho modelo escolar foi promulgada. E essa reforma acabou reformada, no chão das escolas.

Os discípulos do velho e esclerosado modelo educacional perdiam-se em tentativas de reforma reformadas. Enquanto a obsessão uniformizadora e seletiva da escola vinha sendo questionada por muitos “especialistas”, teoricistas instalados em torres de marfim induziram os políticos a acrescentar camadas de tinta nova em velhos palimpsestos, nos quais os registos primitivos não se apagaram. Até mesmo a euforia da introdução das novas tecnologias de informação e comunicação nas escolas concorreu para a sedimentação de velhas práticas.

No “Fórum das Comunidades”, criado no dezembro de 2020, perguntávamos:

Que razões sustentam a reprodução de um modelo de escola gerador de abandono intelectual e moral? A expressão “insucesso escolar” não se constitui em paradoxo? Como justificar a manutenção de referências teóricas com mais de um século? Até quando se insistirá em equívocos, naturalizações e ideias-feitas?

Sabemos que o caos precede a mudança. O Brasil passava por um período de caos político, de inversão de valores. Mas, a crise educacional era, também, geradora de oportunidades. Fazíamos a nós mesmos esta pergunta: para refundar a educação, não teríamos de repensar a escola?

Foi, então, que algo inusitado aconteceu…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCX)

São Sepé, 5 de dezembro de 2040

Quando foi matriculado no primeiro ano, o Daniel já sabia ler. Quando o visitei estava a fazer a os trabalhos de casa: “escrever uma frase sobre a ida ao circo”. O Daniel já sabia ler, mas estava atrapalhado. Perguntei por quê. Disse:

“Eu quero escrever que gostei de ver os palhaços”.

Insisti, porque desejava saber a razão pela qual o Daniel não queria escrever tal frase. Respondeu:

“Não escrevo palhaços porque a professora ainda não deu o lh aos meninos!”

Culpa do Daniel, que aprendia mais rapidamente do que o ritmo das aulas da sua professora. Culpa do Daniel, porque não cumpria o calendário estabelecido para… aprender a ler.

Em meados da segunda década deste nosso século, um estudo da OCDE recomendava às autoridades educacionais que abandonassem as políticas burocráticas. Não abandonaram! E um dos pontos fortes do debate da dita reforma curricular portuguesa, era “o tempo de duração de uma aula”.

No decurso de um congresso, alguém perguntou se eu estava de acordo com a carga horária em vigor. Respondi que “carga” era coisa de jegue, com o devido respeito pelo colega e pelo jegue. Mas o dito colega voltou à carga, perguntou-me se aprovava a alteração do tempo de aula de cinquenta para noventa minutos. Respondi, perguntando:

“Cinquenta minutos, ou noventa minutos, para qual aluno? De qual aluno está a falar? Algum, que você conhece?”

Ficou arrumada a questão, ainda que eu acrescentasse (e ele já não escutasse) que, há mais de cem anos, alguns pesquisadores chegaram à conclusão de que o “aluno médio” teria, “em média”, uma capacidade de atenção contínua de cerca de cinquenta minutos. Que não era por acaso que as aulas duravam, “em média”, esse tempo. Mas, certas “pesquisas” informavam que as crianças do século XXI tinham uma capacidade de concentração “média” de cerca de seis minutos.

Finalizei a minha resposta, afirmando que a duração da aula era uma falsa questão. O problema consistia em ainda haver aula, fosse de cinquenta, fosse de noventa minutos –esta “aula dupla” era uma dose dupla de tédio.

Expliquei que teríamos de ultrapassar um discurso semeado de abstrações (aluno médio, carga horária etc.) para falar do aluno concreto. Mas, o debate acabou ali, fez-se silêncio – aquilo que era óbvio não carecia de explicação. Portugal e Brasil eram países irmãos também nos absurdos. Em Portugal, a lei estabelecia a idade de matrícula; no Brasil estabelecia a “idade de aprender a ler” e a “idade de corte”. Li num jornal:

“A experiência afirma que o melhor período para aprender a ler é entre os 5 anos e oito meses e os 8 anos”.

E em outro jornal:

“Nenhum aluno poderá ser matriculado, se não tiver completado seis anos até fevereiro. Se fizer o seu aniversário, nem que seja um dia após o limite estabelecido, terá de continuar a educação infantil”.

Imaginava a preocupação de uma mãe prestes a dar à luz. O azar rondava aquele bebé que nascesse “fora do prazo”. Por um dia, arriscar-se-ia a esperar um ano pelo direito à matrícula.

Muitos regulamentos desse tempo roçavam o ridículo! Alguns estados aceitavam matrículas de crianças que perfizessem seis anos até 31 de dezembro. Outros estabeleceram o critério do sexto aniversário até 30 de junho. Disposições legais fixavam o limite em 30 de março. Alguém saberia dizer por quê? Nem eu!

Imenso tempo se perdia em discussões bizantinas. Quando a humanidade já não acreditava que fosse possível deslindar o sexo dos anjos, a administração escolar insistia em determinar “a idade para aprender a ler”, ou “a idade para ingressar no primeiro ano”. Enfim! Que Deus lhes perdoasse!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCIX)

Alvorada, 4 de dezembro de 2040

No fundo do baú das memórias, encontrei um caderno com apontamentos de uma entrevista com um eminente filósofo e educador:

“A escola precisa distinguir o que vem do passado e deve ser protegido daquilo que precisa ser deixado para trás, porque é arcaico”.

Bem pregava Frei Tomás! Foram raros aqueles que escutaram o sábio e deixaram para trás o que era arcaico. Ao longo das primeiras décadas deste século, as reformas, os programas, os projetos, os pactos pela educação não lograram emancipar-se do sarro da velha escola.

Ainda hoje, confesso a minha perplexidade perante tentativas de melhorar o que, há mais de um século, já não poderia ser melhorado. Ao longo do século XX, falharam nobres tentativas de mudança. Um sistema dominado pela burocracia liquidou movimentos renovadores e, em 2020, a saga continuava.

Uma escola, que quase se libertara de arcaísmos recebeu da secretaria de educação uma “proposta de retorno às avaliações bimestrais”. Alegando o “baixo rendimento” da escola (que, aliás, se provou ser falso argumento), a secretaria exigia uma “prestação de contas, como já ocorrera nas demais escolas” (leia-se: prova e outros arcaísmos).

Era perigosa a crença nas virtudes das provas. Era preocupante saber que ainda havia secretarias que acreditavam na “objetividade de um teste” e o consideravam “instrumento de análise do nível de qualidade do ensino”. Era confrangedora a ingenuidade pedagógica de quem confiava nos índices de “decoreba” da educação básica.

Eu temia pelas escolas à mercê de quem se atrevia a avaliar projetos que não entendia. Restava saber quem avaliaria arcaicas secretarias de educação. Quem assumiria a responsabilidade dos nefastos efeitos de uma política pública desastrosa, que produzia um IDEB pífio.

Sob a égide do ministério da educação, participei de muitas avaliações externas e reconheço a sua importância. Acompanhei secretarias de educação e técnicos competentes, que não foram totalmente possuídos por burocráticos cinismos. Aprendi com universitários, para os quais a educação não virou ciência oculta. Apoiei professores, que não se instalaram num comodismo acéfalo. Solidarizei-me com pais, no seu afã de libertar os filhos de uma educação arcaica. Mas, nos idos de vinte chegavam más notícias.

Na mesma semana em que uma escola era caluniada, recebi duas mensagens decepcionantes. A primeira dizia:

Infelizmente, não tenho boas notícias. O prefeito não quer desenvolver o projeto, aqui. Também puxaram meu tapete e, depois de muito sofrimento e reflexão, decidi solicitar minha saída da secretaria da educação. Percebi que a secretária está cercada por pessoas incompetentes e más e não quero mais ficar num lugar onde eu não tenho espaço, apoio e autonomia para trabalhar”.

A segunda mensagem confirmava o fim de outro projeto, que consumiu muitos dos meus solidários dias de fraterna ajuda:

Sinto-me envergonhada e triste por ver que a premência do secretário está em resolver coisas burocráticas e deixar a educação em segundo plano. Não sei o que mais precisará acontecer em nosso país para que os educadores decidam empunhar a bandeira da transformação urgente”.

A perfídia da administração educacional causava baixas entre os defensores da escola pública. O cansaço originava renúncia, desistência.

Por que se consentia que perdurasse o que era arcaico?

Encontramos algumas respostas, quando fizemos sete perguntas. Erradicamos arcaísmos, quando identificamos sete obstáculos e aprendemos a ultrapassá-los.

Irei contar-vos como tudo aconteceu.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCVIII)

Rio Grande, 3 de dezembro de 2040

Conheci o Júlio nos meus primeiros tempos de Brasil. Nos seus quinze anos, os belos acordes que extraía do seu violão faziam as delícias dos clientes de um barzinho de esquina da Vila Madalena. Já em tenra idade se anunciava génio, exímio violonista. Amigos e fãs auguravam-lhe uma carreira promissora. Até que chegou o tempo dos vestibulares.

Alguns anos depois, reencontrei-o, “ganhando a vida” numa loja de shopping. Conversamos:

“Não gosto deste emprego. Mas o meu pai acha que a vida de músico é condenação à pobreza. E, como eu não consegui concluir o ensino médio…”

“Por que não conseguiste?”

“Porque eu nunca tive cabeça para aprender Matemática e Química”.

De pequenino se torcia o destino. Quantos projetos de vida ficaram encarcerados atrás de grades curriculares?  O currículo “pronto a vestir”, roubava o direito de desenvolver talentos e de realização pessoal. Se o Júlio estava vocacionado para a Música, por que deveria aprender a fazer equações de segundo grau, ou decorar fórmulas? A Matemática e a Química seriam mais importantes do que a Música?

O Júlio aprendera a tocar, pesquisando na Internet. Era um autodidata, que desejava aperfeiçoar a sua arte na universidade. Mas, o vestibular (mesmo com a designação de enem) era instrumento de darwinismo social. No processo de elaboração de uma base curricular, havia disciplinas consideradas “nobres”, o “back to basic”. Por que razão se dava a designação de “Arte” a uma disciplina? Não se deveria considerar as Artes Visuais, ou a Educação Musical, no lugar da disciplina “Artes”? Alguém ouvira falar de currículo subjetivo?

Uma base curricular era construção histórica, reflexo de diferentes concepções de mundo e de ser humano, de influências políticas e de ideologia. Também se apresentava como repositório de pressões corporativas e da indústria do cursinho para vestibular. Dependia de obscuras manobras de associações profissionais, que pugnavam por maior carga horária das respetivas disciplinas, ignorando que a inclusão de mais horas-aula não passava de pedagógica contabilidade.

Acontecia “transbordamento curricular”. Constava que, na câmara dos deputados, transitavam cerca de 250 projetos de lei com propostas de inclusão de novas matérias no currículo oficial. A BNCC estava a precisar de um “enxugamento”, que contemplasse apenas o essencial, um exercício de “homeopatia curricular”. Se a “homeopatia” chegou ao Brasil em 1840 e já era utilizada na Medicina, que também na Educação se administrasse doses mínimas, para evitar intoxicações.

O debate em torno da definição de um currículo único continuava “terra de ninguém”. Do alto das cátedras ao chão das escolas, dos sindicatos às associações patronais, todo mundo emitia opinião. No auge do “debate”, surgiram românticos contrapontos à hegemonia da cartesiana organização em disciplinas. Apontava-se a necessidade de práticas interdisciplinares e transdisciplinares, mas ainda não escutava referências a práticas… indisciplinares. Num desenvolvimento curricular indisciplinar, como se definiria um conjunto de saberes essenciais?

Nunca encontrei alguém que, ao longo da sua vida, tivesse precisado de usar a raíz quadrada. E se precisasse, também não saberia utilizá-la, porque não a teria aprendido. Na prática instrucionista, quase nada se aprendia de útil. Na escola da aula, se matavam talentos e se perdiam vidas. Para que o Júlio pudesse cumprir o seu projeto de vida e ser músico, deveria aprender o que eram mesóclises, piroclásticas, o efeito de Coriolis?

 

 

Por: José Pachecho

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCVII)

Lavras do Sul, 2 de dezembro de 2040

Evoco o amigo Rubem, a partir de umas cartinhas escritas para os meus netos. Regresso às metáforas, para tentar explicar o inexplicável. Evocarei, mais uma vez, um Pássaro Encantado, ser raro, sensível, que, no tempo em que vós nascestes, contava a história de um “pássaro branco com cauda de plumas fofas como algodão”, que chorava e sentia saudades, que os humanos nem sequer conseguiriam imaginar.

O Rubem havia lido “A poética do devaneio”, do Bachelard, e descoberto poetas que punham palavras nos sentimentos. Apaixonara-se pela poesia de uma gaivota de nome Pessoa, que escreveu “quando te vi, amei-te já muito antes, tornei a achar-te, quando te encontrei”. No já distante ano de 2003, na estante do quarto que foi o lugar onde o vosso pai cresceu e se transformou no maravilhoso ser que vos gerou, coloquei os livros que o Rubem me ofereceu (antes da era do digital, livros eram objetos através dos quais os humanos passavam a sua herança cultural, de geração em geração). Ali permanecem, à espera de que algum professor se deixe possuir pela paixão de os procurar, de os abrir, de os saborear, para que seja acariciado por benfazejas mensagens.

O meu amigo Celso me dizia que “os humanos sempre foram especialistas de si mesmos”. Eram supremacistas, dominaram o planeta e poderiam destruir tudo. A humanização não deveria ter um caráter antropocêntrico, o planeta precisava de todos os seres vivos, não só dos humanos. Mas, atentai neste triste exemplo de crueldade. No contexto de uma Economia predatória, o visom era a terceira maior fonte de exportação da Dinamarca e responsável pela produção de 40% das peles do mundo. A matança de dezessete milhões de visons aconteceu, porque se suspeitava de que os pobres animais poderiam transmitir aos humanos a covid-19.

A título de exemplo, aqui vos deixo notícias e primeira página do dezembro de há vinte anos: “Homem mata esposa com canivete e se entrega à polícia”; M. surge de biquíni em piscina e exibe marca de bronze; sarada, em fotos de biquíni na praia, G. exibe barriga; Aposa nas Maldivas com biquíni cavado e surpreende fãs; D. comemora novo corpo com foto do antes e depois; de biquíni fio-dental, Lostenta corpãode top e saia, R. empina bumbum. A modelo deu o que falar na web”.

A Web era fértil em voyeurismo boçalidade e estímulo ao consumo. E a cirurgia plástica crescia entres adolescentes de treze a dezoito anos. Porque a aprendizagem era antropofágica. Não se aprendia o que o outro dizia, aprendia-se o outro, os seus valores. Nas famílias “tradicionais”, se aprendia egoísmo e fundamentalismos, por via do “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Nas escolas “tradicionais”, se aprendia a competitividade negativa e uma bovina obediência. Na sociedade se aprendia libertinagem, frivolidade, o “jeitinho brasileiro”.

A escola deveria primar por sua característica antropoplástica, a arte de plasmar o ser humano. Mas, entre as pequenas corrupções em família e a corrupção que grassava nos órgãos de poder, colhíamos o que havíamos semeado em longos anos de instrucionismo. O sistema educacional estava infetado pela corrupção intelectual e moral.

No dezembro dos idos de vinte, os EUA se preparavam para a explosão de casos de covid-19, porque o “Dia de Ação de Graças” tinha sido fértil em aglomerações e em contágios. As autoridades máximas da saúde instituíam normas e impunham-nas à população. Mas, o ministro da saúde brasileiro contraíra a covid-19. E, os diretores-gerais de saúde portugueses foram colocados em isolamento… tinham sido infetados.

 

Por: José Pachecho

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCVI)

Camaquã, no primeiro dia de dezembro de 2040

Visitei a Ponte, observando como a escola evoluíra na minha ausência. Conversei com alunos que interiorizaram o projeto e eram a garantia maior de que os novos professores conseguiriam dar-lhe continuidade. Mas, também vi professores reproduzindo práticas erradicadas, há muitos anos.

Uma criança acercou-se de mim e perguntou:

“O senhor quer que eu mostre a nossa escola? Quer?”

Uma funcionária, que estava por perto, interpelou a criança:

“Tu sabes quem é este senhor? É o Professor Zé.”

Ah! – exclamou o pequenito – Já sei! Foi o professor do meu avô!”

Tinham passado mais de quarenta anos. Estava ali a terceira geração.

Os alunos mais crescidos abriram-se comigo, manifestando senso crítico:

“Parece-nos que os professores novos andam muito desorientados. Precisam de alguém que os ajude a perceber como se trabalha na nossa escola.”

“Porque dizeis isso?” – quis eu saber.

“Por exemplo, ainda ontem houve problemas com uma professora. No debate da tarde, o Rui deu a sua opinião sobre um assunto, mas uma professora nova disse-lhe para estar calado”

“E então?” – insisti.

“E então, professor Zé? O Rui respondeu: Eu fico calado, minha senhora. Mas o que eu disse tem de ficar na pauta do debate. Nesta escola, nós sempre fomos ensinados a dizer o que pensamos.”

A recente entrada de muitos professores dera origem a novas “crises”. E um personagem sinistro referiu-se a colegas, num tom que refletia um ridículo complexo de superioridade:

“Com professores como os que temos, não é possível fazer um projeto.”

Eu respondi:

“Foram professores como os que desprezas que fizeram da Ponte o que ela é, muito antes de teres chegado com as tuas brilhantes teorias e contraditórias práticas.

Nós não temos os professores que idealizamos. Temos professores concretos, tão limitados e capazes como tu, como eu. Aceitemo-los como são. Dêmos-lhes meios e o tempo de que precisam para mudar”.

A Ponte estava a passar por tempos difíceis, mas a inexperiência dos novos professores não era o principal fator de “desvios”. As situações de retrocesso, que presenciei durante a visita, resultavam de um desvio de rota sofrido pelo projeto.

Em 2010, a Ponte sofreu mais um ministerial ataque. O ministério impôs a saída do projeto da vila onde ele nascera. Obrigava à migração da escola para um megalómano prédio (anexei a foto a esta cartinha), indevidamente construído na outra margem do rio, colado ao prédio de uma escola “normal”. Os pais dos alunos rejeitaram a ministerial imposição. Mas, como todos os seres humanos, os professores são uma mistura de belo e de horrível. Contrariando a soberana decisão dos pais, os professores da Ponte acataram a ordem do ministério.

“Cuida-se do que se trabalha e trabalha-se o que se cuida”, como diria o Erich Fromm. Esse “cuidar” dos outros, ajudando-os a refazerem-se, pressupõe uma responsabilidade voluntária na defesa do respeito por princípios. Mas, compreendo bem a atitude dos professores. Cansados de resistir a tentativas de destruição do projeto, optaram por armar barricadas de sobrevivência. A Escola da Ponte virou uma ilha, objeto de turismo educacional. O projeto cristalizou, burocratizou-se. A Ponte continuava a ser uma escola de excelência acadêmica e de inclusão social, mas cessara a inovação.

Eu respeitava as opções dos novos obreiros da Ponte, mas nada poderia impedir-me de voltar às origens, de ajudar a refazer um projeto, a partir da sua matriz axiológica e no respeito por princípios.

Em 2020, iria voltar à Ponte, no lugar onde o projeto nascera. Vos contarei o sucedido.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCV)

Frederico Westphalen, 30 de novembro de 2040

O momento delicado, que vivíamos nos idos de vinte, poderia constituir-se em oportunidade de virar a escola do avesso, extinguindo espaços de grandes aglomerações, onde a covid-19 prosperava. Mas, nessa negacionista época, aqueles que praticavam uma educação do passado falavam de uma mítica “educação do futuro“. Na UNESCO dos idos de vinte, decorria um projeto com essa designação e, desde que me conheço como professor, sempre ouvi falar de um “futuro” educacional, que nunca se fazia presente.

A criação de comunidades de aprendizagem poderia contribuir para modificar a forma como organizávamos o espaço, o tempo, as funções do trabalho, do lazer e da cultura. “Círculos de vizinhança” garantiriam o quotidiano da aprendizagem em espaços bem ventilados, com baixa intensidade de ocupação, feito de interações ainda moderadas por máscaras. Os tempos de pandemia exigiam que aprendêssemos a viver numa proximidade regulada, exigiria reinvenção do modo de aprender. Porém, a especulação teoricista deu origem a um conjunto de práticas, que dessa designação, indevidamente, se reclamaram.

A “comunidade de aprendizagem” aparentava ser conceito de vasto espectro semântico. A título de exemplo, vos darei notícia de alguns significados a ele atribuídos, colhidos na Internet:

“Comunidade de aprendizagem é um grupo que interage entre si, durante um determinado período de tempo, com o propósito de aprender um conceito; é um projeto, que uma escola escolhe, para conseguir uma sociedade da informação para todas as pessoas; é uma estratégia que ajuda a superar os obstáculos para o ensino universitário eficaz; é um programa desenvolvido pela secretaria de educação; é um grupo de pessoas que persegue propósitos comuns”.

Vedes como era reducionista a ideia que se fazia de comunidade de aprendizagem? Os autores destas definições eram “como cegos no meio de um tiroteio” teórico. Vede como nessas definições se observa o caráter simultaneamente utilitário e redentor das comunidades, face ao instrucionismo. Reparai na ênfase do termo “grupo” no lugar de “equipe” e a tendência para novas regulações, tão do agrado dos burocratas da educação.

O Brasil importava mais um modismo, a administração o comprava e a mudança se adiava. Os professores desconheciam a existência do Mestre Lauro. Os formadores de professores não conheciam a sua obra. Nas bibliotecas das faculdades de Pedagogia, nunca encontrei livros do insigne mestre.

Quando as crianças do Projeto Âncora o quiseram homenagear, fizeram-no no contexto de uma escola, que adotara esta definição do conceito: “comunidades de aprendizagem são práxis comunitárias assentes num modelo educacional gerador de desenvolvimento sustentável e que podem assumir a forma de rede social física, ou virtual”.

Era uma provisória, modesta e minimalista definição do conceito, que eu criara, numa tentativa de o proteger da influência do mercantilismo. Não alcancei o meu intento.

Uma empresa, que apoiava o Âncora, suspendeu o apoio ao projeto e financiou uma proposta de origem anglo-saxônica e catalã. Com o patrocínio dessa empresa, universitários operaram cosmética educacional. Caricaturalmente, operacionalizaram o conceito de comunidade de aprendizagem. Revestiram a escola da aula com adereços de desculpabilização curricular. Abriram caminho para que empresas do digital muito lucrassem com a comercialização de práticas “híbridas”. Obstruíram caminhos de uma inovação anunciada. Adiaram, mais uma vez, a “educação do futuro”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCIV)

São Pedro do Sul, 29 de novembro de 2040

A minha amiga Cláudia assim descrevia as suas primeiras impressões na chegada à Ponte:

“Muitas coisas chamam a nossa atenção ao chegarmos na Ponte. Para mim, o primeiro impacto foi o “portão da rua”. Cheguei na escola numa segunda-feira à tarde, horário de aula, e o portão de acesso à escola estava completamente aberto. Achei que alguém tinha esquecido de fechar ou até mesmo de trancar.

Lembrei das escolas que trabalhei e convivi no Brasil, o portão sempre estava trancado, de preferência com cadeado, deixá-lo aberto era uma falta grave. Logo ao entrar na Ponte, é claro que fechei o portão! No entanto, percebi que nos outros dias ele continuava aberto, qualquer um poderia entrar ou sair. Esse era o espírito!”

A Cláudia surpreendeu-se com a atitude de “abertura” da escola, simbolizada num portão aberto. Essa interface escola-meio social, numa escola sem muros, nem seria necessária, numa nova construção social de aprendizagem fundada no exercício da autonomia. A Cláudia fez na Ponte o seu doutorado e escreveu na sua tese:

“A curto e médio prazo, a qualidade da escola pública não é tributária de políticas educacionais macros, tampouco de massificados e efêmeros programas, projetos ou política de governo, mas sim da decisão dos (as) profissionais que nela trabalham de tornarem-se autores (as)”.

E assim descrevia o referencial teórico, que estivera na origem da mudança:

A singularidade da construção pedagógica realizada na Escola da Ponte abriga um processo de produção intelectual dos seus atores, que talvez só possamos nos dar conta da sua verdadeira importância, passado o período de um certo apelo mitológico. O Projeto Fazer a Ponte, tanto no que diz respeito aos princípios quanto às práticas, não deixa de ser tributário de um quadro teórico e conceitual com base em trabalhos de estudiosos do fenômeno educacional escolar e do desenvolvimento humano. Entre esses, incluem-se Celestin Freinet e os educadores que fazem parte do Movimento de Escola Moderna”.

Estava certa a minha amiga. Em meados dos anos setenta e em equipe, este vosso avô e debutante professor começava a gestar aquela que seria a primeira escola a concretizar as promessas escolanovistas e a criar condições para o surgimento de uma escola-comunidade.

Naquele tempo, nem sabíamos da existência de um tal Piaget. Agíamos por amor e intuição pedagógica. Mudávamos a prática, para garantir a todos o direito à educação.  Também não sabíamos que, no final da década de sessenta, na margem sul do Atlântico, o piagetiano Lauro de Oliveira Lima escrevera um livro sobre “comunidades de aprendizagem”. Em meados do século passado, o anunciador dessa nova construção social convidava-nos ao exercício da autonomia, criticando a gestão da escola instrucionista:

“Foi dada uma função educativa ao diretor, que se reduz, atualmente, a mero administrador, manipulador de papelório e ecônomo. É hora de abandonarmos a ditadura escolar de diretores e professores e iniciarmos os jovens no autogoverno. A experiência universal demonstra que é deste regime escolar que saem os futuros cidadãos de uma democracia, autônomos e responsáveis.”

Iriam decorrer seis décadas, até ao aparecimento da primeira comunidade de aprendizagem. No Distrito Federal do início da década de vinte, enquadrados num projeto de política pública da iniciativa da Secretaria de Educação, protótipos de comunidade surgiram, organizados em rede.

Nas próximas cartinhas, espero poder descrever-vos a saga da implantação dessa rede de comunidades.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Novo Tempo da Velha Escola (CCCIII)

Tapes, 28 de novembro de 2040

Queridos netos, aquela pergunta era bem maliciosa:

“Na sua escola, não fazem avaliação?”

Respondi que, na nossa escola, fazíamos avaliação. Mas, não fazíamos prova, não aplicávamos esse instrumento de avaliação, porque pouco ou nada provava.

As “provas” foram prodigamente utilizadas até meados da década de trinta, embora os sistemas de ensino que as utilizavam não lograssem melhorar a aprendizagem. Reconhecidas como precários instrumentos, quase inúteis e até mesmo prejudiciais, desapareceram, para dar lugar à avaliação formativa, contínua e sistemática.

A prova não era formativa, nem contínua, nem sistemática. Era perda de tempo e origem de sutis corrupções. Medir não era sinónimo de mais qualidade no ensino. Muitos alunos chegavam ao ensino médio incapazes de fazer uma interpretação de texto, apenas 15% dos titulares de diploma de Direito conseguiam aprovação no exame da Ordem dos Advogados, mas havia uma crença ingénua nas virtudes das provas.

Um sistema burocratizado impunha estruturas curriculares rígidas e obsoletos modos de organização do trabalho escolar. As escolas mantinham-se coniventes com o estímulo da competitividade, exigiam decoreba de “piroclásticas” e “crivos de Erastóstenes”, que, depois do “vómito pedagógico” numa prova, os alunos esqueceriam.

Para um ensino excludente, uma avaliação seletiva. Confundia-se avaliação com classificação. A reprovação baseada em nota continuava a produzir sucedâneos de desculpabilização curricular, como as classes de reforço, excluía e deixava marcas para o resto da vida. A “avaliação” que se fazia nas salas de aula desse tempo era geradora de uma longa lista de absurdos, da qual vos deixo alguns excertos, prescindo de comentário, porque os absurdos falam por si.

Sabíamos de encobertos e ilegais vestibulinhos, reprodutores de darwinismo social. Sabíamos de alunos consumidores de Lexotan antes de cada prova. Tínhamos notícia de perda de bolsas, porque havia alunos que não conseguiam obter “boas notas”. Escutámos um político que, solenemente, afirmava que, se não se aplicasse cada vez mais provas, poderíamos “estar a formar analfabetos”, como se a aplicação de mais provas fosse solução para catorze milhões de analfabetos funcionais que a ensinagem produzira.

Um secretário de educação obrigou as escolas a colocar na porta da unidade a nota que obtiveram no Índice da Educação Básica (Ideb), expondo os alunos a vexames vetados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Uma secretaria estadual propôs a elaboração de um banco de itens, para que os professores aplicassem provas a cada dois meses. Identificada a necessidade de “recuperação”, sugeria que essa “recuperação” fosse feita no contra turno, ou que se paralisasse as aulas durante uma semana para a… “recuperação”. A educação estava nas mãos de ignorantes autoritários.

A mesma secretaria criou (mais) uma prova padronizada, para aplicar a meio do ano letivo, “com o intuito de melhorar o desempenho dos alunos a meio do ano”. Isto é: estabeleceu-se a ideia do ciclo, sem romper com o modelo seriado. Outra secretaria de educação confundia “aprovação automática” com progressão continuada e adotava “períodos de recuperação trimestral”, insistindo na lógica das classes de “reforço”.

Fazer prova era como medir a temperatura. O termómetro que registava a febre não fornecia um diagnóstico, nem prescrevia a terapêutica. Apenas sinalizava o estado febril. A solução não estava no termómetro – a preocupação com o termômetro não fazia baixar a temperatura.

Por: José Pacheco

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