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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCI)

Sarandi, 17 de novembro de 2040

Permiti, queridos netos, que vos fale mais um pouco sobre avaliação. Em particular, daquela que se fazia na Ponte. Quem a visitava transformava a estranheza em perguntas: “Existe um processo de avaliação? Como se dá esse processo? Que critérios são usados para avaliar os alunos? Como a criança se apropria dos seus avanços e dificuldades?”

Eis o que o pai de uma aluna respondeu:

“Ao ver como a avaliação acontece na Ponte, eu pergunto: será que existe um processo de avaliação nas escolas “tradicionais? Na Ponte, a avaliação acontece o tempo todo. Cada passo que a criança dá é avaliado, a começar por ela mesma. Vocês não imaginam como é difícil, para quem passou a vida inteira sendo avaliado por outros, esperando coisas como notas, graus, conceitos etc., se autoavaliar! Não estamos habituados e sentimos tanta dificuldade!

Agora, imagine uma criança da Ponte: dia após dia, mês após mês, ano após ano, pegando um objetivo de aprendizagem, fazendo atividades para atingir aquele objetivo, concluindo que se sente apta a procurar um professor, para que este confirme a autoavaliação.

Outra coisa: os objetivos de aprendizagem não são uma coisa “secreta”, oculta para os alunos, que somente o professor conhece. São o ponto-de-partida da aprendizagem. A coisa começa com a criança escolhendo. Tudo ganha sentido em função de objetivos a atingir”.

Sem que o soubesse, esse pai enunciava um dos princípios gerais da aprendizagem: o princípio da significação. Compreendia que a sua filha atribuía significado ao objeto de estudo, sabia por que pesquisava, por que aprendia. E, sobretudo, porque deveria partilhar o conhecimento construído.

Naquele tempo os estudantes de Pedagogia poderiam ter lido Vygotsky, estudado Brunner, para colocar decoreba numa prova. Mas o tinham feito sem sentido. Aqueles que se resignaram à ensinagem em sala de aula reproduziam aquilo que tinham experienciado. Em situação de sala de aula, não havia aprendizagem significativa. Uma prova quase nada provava. Uma nota nada significava.

Naquele tempo, quase não se fazia avaliação. Apenas se classificava, sequenciando alunos numa escala ordinal, imperfeita referência de acesso à universidade. Rankings e exames não eram avaliação, eram meros instrumentos de darwinismo social.

Voltemos à resposta dada pelo pai da aluna da Ponte. Na contramão do uso de inúteis e nefastos instrumentos, esse pai assim falava do “socioemocional”:

“A observação permite avaliar melhor os alunos em termos de valores e atitudes, para que os alunos sejam solidários, responsáveis e autônomos. No que diz respeito aos conhecimentos (é lógico que a separação entre todos estes fatores é artificial, mas torna mais simples a explicação), eles são avaliados de diferentes formas. A assembleia, os debates, as apresentações dos trabalhos constituem, também, excelentes momentos de avaliação”.

Por volta de 2020, um amigo brasileiro mostrou-me a “avaliação online”, que o professor do seu filho lhe enviara:

“O aluno é interessado, mas distrai-se com muita facilidade, o que pode comprometer os seus resultados escolares. Relembro que a assiduidade, a pontualidade, a atenção e a participação nas aulas online serão avaliadas”.

Esse pai entendeu a velada ameaça do professor. Também percebeu que o professor não sabia avaliar. E me confidenciou que, tão logo passasse a pandemia, iria para Portugal, para matricular o seu filho na Escola da Ponte. Disse-lhe que não precisaria de atravessar o Atlântico. No Brasil de 2020, já havia pontes para uma nova educação.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXC)

Santo Antônio das Missões, 16 de novembro de 2040

No idos de vinte, já se sabia que, até 2030, oitocentos milhões de empregos seriam eliminados e que 80% das profissões de então já não existiriam. Nesse tempo e alheadas dessa projeção, as escolas preparavam os jovens para o exercício de profissões em vias de extinção.

Também por essa altura, os teoricistas dissertavam sobre competências do século XXI, enquanto praticistas reproduziam uma pedagogia do século XIX. Quanto muito, algumas escolas particulares reproduziam versões centenárias das propostas de Montessori, Steiner, Freinet, sem as atualizar. Eram práticas fósseis, misto de instrucionismo e escolanovismo mal assimilado.

Em 2030, dávamo-nos conta de um corolário de maldades. Aulas presenciais ou online, de contraturno, híbridas, invertidas, ou de outra moda qualquer, não conseguiam evitar a evasão e o insucesso escolar. Com ou sem Ritalina, com aulas de reforço ou escolas cívico-militares, ao longo de mais de um século, a administração educacional cometera o hediondo crime de privar milhões de jovens do direito à educação.

Eram injetados nas escolas projetos: de educação ambiental, mas o efeito de estufa aumentava, a Amazônia encolhia, espécies eram extintas e geleiras derretiam. Projetos de educação sexual não obstavam a que estudantes universitários estuprassem colegas, durante o trote. Havia projetos de educação para o trânsito e para a saúde, mas as estradas eram cemitérios, a covid-19 prosperava e a obesidade mórbida aumentava. Até havia projetos de educação para a paz, num tempo em que centenas de brasileiros eram assassinados, diariamente. Muitos professores adoeciam. E da indisciplina ao suicídio, se perderam gerações.

Acumulavam-se as teses nos arquivos das universidades. Assistíamos à importação de modismos pedagógicos e à proliferação de cursos, anunciando mágicas soluções. Assistíamos à propaganda enganosa de pseudo-inovações enfeitadas de novas tecnologias. Assistíamos ao desperdício de recursos e de gente.

A formação de professores era precária e esquizofrênica. Formadores publicavam teses sobre o paradigma da comunicação, enquanto propunham a aprendizagem centrada no aluno, em aulas centradas no… professor.

A regulamentação da lei estava concebida para uma escola do século XIX. Nas decisões de política educativa, predominavam critérios de natureza burocrática, quando deveriam prevalecer critérios de natureza científica. A Escola, que deveria ser produtora de conhecimento e de reelaboração cultural, era instrumento de reprodução social e cultural. Deveria ser um berço de oportunidades, mas aprofundava o fosso da desigualdade.

Estávamos em plena quarta revolução industrial. Não se tratava de tentar melhorar um modelo educacional herdado da primeira. Aliás, tal modelo já nem poderia ser melhorado. Num tempo de pós-verdade e negacionismo, mais se fazia sentir a necessidade de inovar, de refundar a educação.

Era essa a triste situação em que nos encontrávamos, nos idos de vinte. Mas, sabendo que a esperança nunca morreria, houve quem agisse e reagisse. Até ao início da terceira década deste século, paralelamente ao desperdício de talentos e de vidas, foram criados diferentes sistemas de… aprendizagem.

Numa prática dialógica, no primado da solidariedade, se recriava o sentido individual e coletivo dos saberes. Homeopaticamente, dos núcleos familiares aos círculos de vizinhança, das comunidades às redes, o ensino à distância acabou substituído por aprendizagens na proximidade.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXIX)

Ijuí, 15 de novembro de 2040

Decorria o mês de novembro daquele estranho 2020. Os jornais davam conta da barbárie. Na França, um professor foi decapitado, por ter mostrado caricaturas de Maomé na sala de aula. Um ditador mandou construir e inaugurou uma estátua dourada em homenagem a um cachorro. Acontecia o “regresso às aulas sem teste negativo à covid-19”. Já havia pais preocupados com as aglomerações provocadas pelo “regresso”. Entre esses pais, este vosso avô, pai do vosso pai, porque o professor André contraíra covid-19.

A avaliação do evoluir da pandemia subestimara o potencial do contágio do vírus. O economicismo e os erros de desgovernantes haviam condicionado a avaliação. E uma segunda vaga de sofrimento e morte atingia a Europa.

Queridos netos, dissestes que eu talvez tenha exagerado quando escrevi que os gestores educacionais sabiam aplicar prova e dar nota, mas não sabiam avaliar. Pois ficai sabendo que essa afirmação era feita da mais pura verdade. A propósito, vos darei a conhecer como se fazia avaliação na Ponte. Se, nos idos de vinte, os gestores tivessem visitado essa escola, não diriam besteiras. O meu amigo Celso visitou-a, estudou-a e assim a descreveu:

“Um portão aberto: uma escola cidadã! Artes, o despertar da sensibilidade, desenvolvimento de novas linguagens, progressão… continuada.

A avaliação determina nossas práticas educativas. Nos principais dispositivos ali desenvolvidos ou aplicados, a avaliação está presente. A Assembléia da escola (toda sexta-feira, à tarde) tem sua origem na avaliação que os alunos fazem do seu cotidiano, expressa, por sua vez, nos dispositivos do Acho bem e do Acho mal (cartazes que ficam nos murais e os alunos vão registrando). Na Reunião de professores (quartas-feiras, à tarde), se avalia o Projeto ese  busca formas de melhorar. No Debate de todos os dias, os alunos avaliam o dia de trabalho. E os portfólios também fazem parte da paisagem cotidiana dos ambientes de estudo.

A observação é uma prática constante de avaliação por parte dos professores, sobretudo em termos de valores e atitudes (sem estabelecer ruptura com a avaliação de conhecimentos). Como não existe observação neutra, ela é pautada na matriz axiológica da Ponte: solidariedade, responsabilidade e autonomia.

A autoavaliação é um dos pontos fortes da avaliação, estando também presente em vários dispositivos: Eu preciso de ajuda (o aluno, que não sanou as suas dúvidas, sinaliza para o professor e demais colegas); Eu já sei (aluno, tendo convicção de seu aprendizado, sinaliza para o professor que está pronto para uma avaliação mais formal – que também existe na Ponte, mas que é algo muito tranqüilo, pois não serve para classificar, e sim para qualificar).

O amigo Celso deitou um olhar atento ao quotidiano da escola e captou o essencial: avaliar não era classificar. Porquê comparar alunos? Porquê ordenar seres humanos numa escala? Porquê fomentar uma competitividade negativa?.

Já Pasolini dissera que as pessoas não deveriam comportar-se como “alpinistas sociais”. Deveriam construir uma identidade capaz de avisar a comunidade de que se posderia fracassar e recomeçar, sem que o valor e a dignidade fossem afetados.

Não ser um “alpinista social” consistia em não passar sobre o corpo dos outros, para chegar primeiro. “Perante um mundo de vencedores vulgares e desonestos, de fazedores falsos e oportunistas, de pessoas importantes, que ocupam o poder, que escamoteiam o presente, e perante neuróticos do sucesso”, numa antropologia do vencedor, Paolini prefiria o perdedor.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXVIII)

Santiago, 14 de novembro de 2040

No novembro de 2020, sucederam-se situações de xenofobia. A palavra xenofobia advém de dois termos gregos: “estrangeiro” e “temor”. Referia-se a manifestações de hostilidade relativamente a tudo que fosse estrangeiro. Também poderia significar discriminação, dificuldade de comunicação entre subculturas, dentro de uma mesma comunidade, ou uma elitização, que negava direitos e remetia gente para vidas marginais. Na escola da aula, também poderia traduzir-se na imposição de distância social e no recurso a códigos linguísticos elaborados, que geravam incompreensão em usuários de códigos restritos, supostos ignorantes.

O Tiago escreveu um texto em que se lia, a certo passo:

“As pessoas querem lá saber o que ainda vai acontecer. Se não nos ajudam é sinal de que só querem que os filhos aprendam a fazer contas, a escrever e mais nada. Se elas fossem espertas…!”

O Tiago era um moço de oito anos de idade e evidenciava maior conhecimento do fenómeno educativo do que os ministros da educação.

“Hoje é o último dia de escola. Amanhã, vou ficar triste, vou ter saudades desta escola. Tenho muitos amigos e os professores também são. A minha escola é a melhor escola do mundo”.

“Até mais logo, amigo Tiago! Que os teus futuros professores não se preocupem somente em encher-te a cabeça com conhecimento inútil!”.

Os tiagos não nos pediam que lhes ensinássemos só contas e letras. Era grato saber que, mais do que as matemáticas ou as gramáticas, “os professores ensinavam a paz e a sermos amigo dos colegas”.

Todas as escolas eram as melhores escolas do mundo. O que ninguém conseguia explicar era que entre os cidadãos portugueses houvesse muitos analfabetos funcionais e que 70% dos portugueses nunca, ou raramente, tivessem lido um livro. Quem conseguiria explicar por que, no Portugal da Comunidade Europeia, foi necessário recorrer a um “nível zero” para abranger 600.000 portugueses incapazes de responder a qualquer das perguntas ou ordens formuladas em testes de literacia?

O povo que andara na “escola de antigamente” entendia a seu modo o mundo em que vivia. Mas, na da década de oitenta e num país europeu, o analfabetismo funcional e literal não deixava entender a informação que se recebia. De cabeça “oca”, ou com ela cheia de conhecimentos inúteis, os produtos de uma escola decadente agiam como um fardo, que impedia a interrogação e a ação refletida.

Havia quem aparentasse saber ler e ler não soubesse. Havia quem lesse apenas os títulos de livros e jornais e quem lesse até aquilo que não estava escrito. Também havia quem não lesse e dissesse que tinham lido. Na escola da aula, tinham lido “resumos” de obras, para debitar em testes e… esquecer.

No mundo, apenas em dois países se tratava por “doutor” um licenciado – Portugal e Brasil – o que contribuía para a pseudo-elitização de uma Escola reprodutora de ignorância. Em países de reminiscências de morgadios e caciquismos, ainda se cultivava a ridícula “doutorite”.

As conclusões de um estudo do final do século XX eram alarmantes. Portugal era classificado como “nação em risco”. Em 2020, a escola instrucionista continuava a produzir bonsais humanos corresponsáveis por uma segunda e trágica vaga de covid-19. A escola da aula não os tinha ensinado a responsabilidade individual pelos atos de um coletivo. A escola instrucionista nem sequer os ensinara a lavar as mãos!

Dois, ou três séculos antes, tínhamos perdido o sentido de orientação. Estávamos numa encruzilhada da história comum, em busca de mapas e caminhos, que nos levassem a torcer o destino.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXVII)

Horizontina, 13 de novembro de 2040

Existe uma grande diferença entre amor e pieguismo. Fiquei muito perturbado, após ter conversado com um jovem professor, que era a personificação da amargura. Confidenciou-me que estava a pensar mudar de profissão:

“Estou a pensar mudar de profissão. Na última aula, eu saí desesperado. Deram-me uma turma com mais de trinta alunos. Nem mesas há para todos, naquela sala! Os professores não conseguem dar aula. Os meus colegas dizem que os alunos podem estar a pensar em tudo menos no que o professor está a dizer, mas o que importa é que não os aborreçam e os deixem dar a aula. Se não deixarem, há sempre a falta disciplinar, não é? Rua com eles!”

“E os outros professores da tua escola, aqueles que conseguem ter uma boa relação com os alunos?” – inquiri.

“Os outros?” – replicou – “Quais? Na sala dos professores, só os vejo dizer mal dos alunos e a preparar processos disciplinares”.

Naquele tempo, instaurar um processo disciplinar, suspender ou expulsar um aluno era fácil e era a regra. Mas, quando puniam um aluno, os professores agiam sobre as consequências, não sobre as causas. A solução administrativa dos problemas disciplinares era, em si mesma, deseducativa. Não resolvia os problemas, não era entendida por mentes revoltadas, nem prevenia futuras situações de conflito.

Os professores vacilavam entre uma permissividade humilhante e um autoritarismo medroso. Pareciam receosos de exercer autoridade. Poucos a exerciam com maturidade e serenidade. O pieguismo pedagógico usurpara o espaço onde deveria haver amor maduro:

“Os meus alunos dizem que eu não consigo entender os seus problemas. Pois não! Nem os meus eu entendo! Dominar a sala de uma classe de seis anos é difícil. É muito difícil mantê-los sentados! Quanto mais dar aula!

Muitos educadores não sabiam que o que mais importava era a comunicação de alma para alma. A mão que apertava a nossa mão e o sorriso com que nos acolhiam nos desvendam um mundo de afetos, emoções.

Os problemas de relação tinham raízes profundas e desde o ventre materno. Conheci pais imaturos, reféns dos seus filhos, como uma mãezinha que se queixava de não ser capaz de “aguentar o filho”:

“Não sei o que hei-de fazer, senhor professor. Tem de me indicar um bom psicólogo. Já fui a dois, mas não gostei. Eu sei que ele só tem seis aninhos e que eu não o posso contrariar. Se o faço, ele começa a chorar, a gritar. E eu já não sei o que fazer”.

Compreendi que, gritando, a criancinha ganhava a contenda. E perguntei a essa mãe por que razão o seu filho não usava os talheres, durante a refeição. A mãe da criança esclareceu:

“Olhe, senhor professor, o meu filho come com a mão, porque no jardim infantil não o ensinaram a comer”.

A palavra “violência” tem origem no radical sânscrito e significa “força vital”. Todavia, era utilizada para designar atos de agressão. Nas escolas, a mais grave das violências talvez não fosse a explícita, aquela que degradava corpos, mas aquela que maltratava o espírito – a violência simbólica.

Naquele tempo, desgovernantes impunham a criação das chamadas “escolas cívico-militares”. Apesar do apoio de famílias, que padeciam de menoridade cidadã e confundiam autoridade com autoritarismo, a absurda remilitarização das escolas teve vida breve. Debelada a crise democrática de há vinte anos, os militares regressaram aos quartéis e a educação voltou às escolas.

Os professores aprenderam a lição. E o autoritário instrucionismo (escolar e militar) deu lugar à edificação da utopia: uma escola onde não imperasse a ordem imposta, mas reinasse a dignidade e a liberdade.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXVI)

Santo Ângelo, 12 de novembro de 2040

Ao longo da minha já longa existência, assisti a muitas campanhas eleitorais imersas na costumeira mesmice: promessas já prometidas e abundantes disparates. Como este, proferido quando decorria a campanha eleitoral de 2020:

“Rede estadual terá aprovação continuada em todas as séries em 2020”.

Encarei a hipótese de se tratar de mais uma fake new. Não era. Era mesmo mais um disparate, portador de um novo conceito: “aprovação continuada”.

A notícia dava conta de que “todo aluno que tivesse feito atividades seria aprovado para a próxima série escolar em 2021”. A rede estadual de ensino “teria progressão continuada em todas as séries, em 2020, para os estudantes que tivessem feito alguma atividade letiva” (sic). No ano seguinte, os estudantes seriam matriculados na série subsequente da que frequentavam, “em regime de progressão continuada”.

Em campanhas anteriores, os candidatos sempre haviam execrado a dita “progressão continuada”, confundindo-a com a maléfica “aprovação automática”. Por que decidiram recorrer à “progressão automática” disfarçada com o rótulo de “progressão continuada”?

A estapafúrdia proposta fora aprovada pelo Conselho Estadual de Educação. Estudantes que não tivessem feito nenhuma atividade seriam convocados para “recuperação presencial”, em janeiro. Em outros locais, as autoridades também “decidiram suspender a reprovação de alunos, por novas políticas de avaliação e por enxugamento do currículo escolar”.

“Novas políticas de avaliação”? Quais? Já o “enxugamento do currículo escolar” seria bem-vindo, embora tardio. Entretanto, o secretário da educação afirmava que nenhum estudante seria “reprovado pelo desempenho escolar”. Entendeis o que o secretário pretendia dizer? Nem eu!

A maioria dos alunos não tinha conseguido acompanhar as aulas remotas, fora vítima do crime de “abandono intelectual”. Segundo a secretaria, seria necessário “dar um tempo maior para essa “recuperação das habilidades” (sic). Os anos letivos de 2020 e 2021 seriam considerados “um único ciclo contínuo, formado por oito bimestres escolares”. Cabia perguntar: por que não trimestre, ou semestre? Enfim!

No contexto de uma escola e de uma democracia em crise. o disparate se democratizara. Essa boa gente sabia “aplicar prova e dar nota”, mas nada sabia de avaliação. As suas afirmações eram manifestações de ignorância. Se tais afirmações fossem proferidas por gente das ciências da educação, tratar-se-ia de falsidade ideológica.

Os políticos não falavam com conhecimento de causa. Mas o que dizer dos seus assessores? A demagogia dos políticos se casava com a pedagogia fóssil dos assessores, contribuindo para inviabilizar a substituição de um “ensino fundamental” por “aprendizagens essenciais”. Praxeologicamente desguarnecidos, “assessores” e “especialistas” dissertavam sobre leituras mal digeridas e exibiam pesquisas viciadas na sua essência.

Segundo o INEP e o MEC desse tempo, a elevada incidência de reprovação e evasão decorria da dificuldade em aprender com os procedimentos de ensino propostos pelos políticos e seus assessores, que não deveriam ter tempo para ler documentos oficiais. Exibindo impressionantes cifras do insucesso, os candidatos a prefeito e a vereador criavam o ambiente propício à apresentação da sua poção mágica eleitoral. E, por muitos anos, a educação do Brasil permaneceu cativa de políticos demagogos e de falsos assessores.

Disso conhecemos, hoje, as trágicas consequências. Mas nunca houve mal que sempre durasse…

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXV)

Passo Fundo, 11 de novembro de 2040

Disse-vos que iria falar-vos de outro personagem sinistro? Pois o prometido é devido.

Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases do Darcy e do Florestan tinha aberto caminhos de superação do caos educacional. Em 2020, o essencial da lei não fora cumprido. Artigos da lei, que permitiriam mudança, inovação, foram neutralizados por uma regulamentação concebida com referência ao paradigma da instrução, algo incompatível com necessidades sociais do século XXI. Servindo-se de regulamentos obsoletos, ministérios e secretarias de educação agiam como obstáculos à inovação. Ilegalmente, condicionavam e destruíam projetos enquadrados na… lei.

Em 2018, atento à necessidade de revisão normativa, um governador ordenou que a secretaria de educação atualizasse regulamentos, de modo a colocar a educação do seu estado no século XXI. Como era uso e costume no Brasil de então, impunemente, a secretaria não acatou a ordem do governador. Prevaleceu o autoritarismo de um denominado “alguém”.

Quem seria esse “alguém”? Um homem? Uma mulher? Um coletivo? Algum alienígena? O que se sabia é que se tratava de um personagem sinistro. À-vontade, se movia nos labirintos de secretarias e ministérios, causando estragos. Dar-vos-ei três exemplos.

Mães e professoras se uniram num projeto inovador. Falaram com a coordenadora de área. Entusiasmada, a coordenadora entrou no grupo de WhatsApp das professoras e foi consultar a secretaria. Logo se desentusiasmou, porque “alguém” da secretaria a proibiu de apoiar o projeto. Obediente aos “alguéns superiores”. Saiu do grupo de WhatsApp e se silenciou.

Um projeto de política pública da mesma secretaria de educação foi objeto da perfídia de outro “alguém”. Transcrevo excertos de uma ata:

Alguém” da secretaria retirou documentos do processo (…) disse que, ou fazemos do jeito que ele quer, ou não fazemos o projeto. Ameaçou-nos (…) disse que, se apresentarmos o nosso plano de trabalho, ele não o vai aprovar. Que temos uma de três opções: ou peitamos e não anda; ou retiramos o projeto; ou trocamos este projeto por outro (…) tentamos obter mais informações, mas nada mais disse. É um pântano!” (sic)

Algumas secretarias de há vinte anos eram verdadeiros pântanos de corrupção intectual e moral. Poderia preencher várias cartas com depoimentos, que isso atestam. Quedar-me-ei por este:

“Professor, criamos uma comunidade de aprendizagem, a partir das famílias que nos procuraram. As crianças fazem projetos, têm os seus portifólios, participam de assembleias etc. Os pais pediram a matrícula em modalidade de ensino doméstico. Mas, parece ainda existir o fantasma da ditadura. Sem argumentos válidos, “alguém” decidiu indeferir os pedidos. De forma irresponsável, sem qualquer preocupação real com as crianças”.

Estatuto é o que define o lugar que “alguém” ocupa numa estrutura social. Nas escolas do início do século, era bem evidente a diferença de estatutos. Não tanto de professor e de aluno (não seriam raras as vezes em que até se confundiram), mas entre professores, profissionais do mesmo ofício. Os “alguéns” da administração escolar exerciam seus podres poderes, geriam o sistema como quem geria uma padaria. Com a agravante de agirem ilegalmente e não saberem mais de leis do que o… “padeiro”.

Os educadores não cederam perante o assédio moral. Exigiram que os “alguéns” respondessem por escrito. A cobardia dos “alguéns” os fez recuar e erguer um muro de silêncio. A partir de então, um sistema de ensino doente começou a dar lugar a um benigno sistema de aprendizagem.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXIV)

Três Passos, 10 de novembro de 2040

O Kant, de que vos falei na cartinha anterior, afirmava que seria difícil para o homem sozinho livrar-se da “menoridade” cidadã, pois ela se apossara dele como uma segunda natureza. Nos idos de vinte, se confirmava a kantiana asseveração. Por serem unipessoais e sujeitos ao autoritário “dever de obediência hierárquica”, a direção das escolas enfermava de “menoridade” cidadã”, que lhe era imposta por uma administração educacional dominada por “alguéns” e “porquenãos”.

Nesta cartinha, falar-vos-ei dos porquenãos. Prometo falar-vos dos alguéns, na missiva de amanhã.

Numa cartinha de 2001, já vos descrevia os porquenãos. Com eles deparei, duas décadas depois, num Brasil de educação doente. Retomo metáforas das cartinhas enviadas no início do século, para tentar explicar o inexplicável.

Estávamos nós num tempo de há muito tempo, num tempo em que as aves falavam à semelhança dos humanos seres. Se quiséssemos estabelecer paralelos entre dois mundos, difícil seria discernir se, nesse tempo, o dom da fala era apanágio da humana condição, se as pontes de entendimento iriam do mundo dos pássaros para o dos homens, ou se deste para o dos pássaros.

Creio mesmo ser injusto que se dissesse da caturra que “só lhe faltava falar”. Esse pássaro – que talvez te recordes de ter visto na casa dos teus pais – era bem mais eloquente do que alguns humanos seres. 

Nesse tempo, encerradas na clausura cinzenta das gaiolas de instrução, eram as aves treinadas para perpetuar o método único, que consistia em trocar o belo canto pela repetição de monótonas melopeias. O borogóvio, “pássaro magro, de aspecto desagradável e com as penas todas pegadas umas às outras”, era quem melhor se adaptava ao método único. Pássaro ridículo, “uma espécie de vassoura viva”, no dizer de Carrol, aderia incondicionalmente à regra do “sempre foi assim”. E tinha por compinchas os porquenãos.

Aos pássaros porquenãos competia vigiar o cumprimento das normas e rituais de adestrar as jovens aves. Os porquenãos, que assim se chamavam por não saberem explicar por que faziam o que faziam – era assim, porque era assim… e pronto! – dificilmente coexistiam com os pássaros-mestres propriamente ditos. Os porquenãos eram aliados dos ratos e das víboras, animais do solo, invejosos e maledicentes. Os pássaros-mestres dormitavam nas copas inacessíveis aos ratos cavernosos e às víboras rastejantes.

À vista desarmada, não havia quem conseguisse distinguir uma espécie da outra. Aos pássaros-mestres não restava alternativa senão a de piar em segredo, aferrolhados nos galhos altos. Porque, se algum porquenão lograsse intuir o perigo da diferença, nunca mais os pássaros-mestres teriam sossego. Restar-lhes-ia mudar-se para uma outra gaiola, de preferência bem distante daquela. E havia ainda os porquenins, animais de outro reino, sempre de acordo, ora com uns, ora com outros, conforme a ocasião.

Talvez se torne difícil para ti, Alice, que vives outros tempos, compreender por que pássaros sem alma roubavam primaveras e impunham céus cinzentos a muitas gerações de aves escolarizadas. Imagino difícil a tarefa de te explicar a exclusão e a incompreensão, que se abatiam sobre as gaivotas. Prevejo difícil explicar-te o emudecer do canto dos bosques, esmagado por vis e letais silêncios.”

Hoje, já longe do tempo em que a menoridade cidadã dos porquenãos conspurcava de medos a educação, considero ainda ser preciso recordar o maligno impacto das suas ações, para proteger as novas gerações de um eventual retorno dessas sinistras criaturas.

 

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXIII)

Minas Novas, 9 de novembro de 2040

Por meados do mês de novembro de há vinte anos, decorria nos Estados Unidos um ato eleitoral. O candidato derrotado não reconhecia a derrota e acusava a sua nação de corrupta. Talvez tivesse alguma razão. Nesse tempo negacionista, eleitores depositavam confiança em políticos corruptos, elegiam políticos racistas, davam o seu voto a gente boçal. Num tenebroso tempo de moderna barbárie, a falácia, o embuste e a mentira alimentavam o discurso político. Cadê o exercício da cidadania?

Os dicionários diziam ser a cidadania o exercício do “direito de cidade”. Dizia-se que o direito de cidadania se exercia quando se atingia a idade requerida para exercer direitos políticos estabelecidos na Constituição. Mas qual seria essa idade? Aquela que a lei outorgava aos que, já crescidos, contra ela atentavam?

Por que não partir do princípio de que a cidadania se aprendia no exercício da cidadania?

Conheci crianças que exerciam cidadania plena, em espaços de liberdade responsável. Também conheci adultos, com a idade requerida para o ser, cuja cidadania deixava muito a desejar. Recordo um dia em que levei os meus alunos a uma sessão da assembleia nacional.

Quando eles começaram a apontar para um deputado, que estava dormindo, arrependi-me de os ter levado àquele hemiciclo.

Quando eles me perguntaram por que alguns dos deputados liam o jornal, pensei em ir embora.

Quando a maioria dos deputados manuseava celulares, alheios ao discurso do tribuno, as crianças questionaram:

“Professor Zé, por que eles não estão com atenção ao senhor que está a falar no microfone?”

“Que falta de respeito!” – comentou outro dos meus alunos.

Não poderia continuar a expor os meus alunos aos maus exemplos dos representantes da nação. E dali os levei para uma biblioteca pública.

Mais ou menos por essa altura, conheci um professor de Filosofia, que dava aulas de… cidadania. Disse-me que a sua maior referência era Immanuel Kant. Despertou-me a curiosidade, levou-me à pesquisa.

Efetivamente, o eminente filósofo discorria sobre a saída do homem da sua menoridade. Segundo esse pensador, o homem era responsável pela sua saída da menoridade. Kant definia essa menoridade como a incapacidade do homem de fazer uso do seu próprio entendimento autonomamente, ou seja, sem a tutela de uma razão alheia.

Na nossa escola, não havia “aulas de cidadania”. Havia cidadania. No decurso de uma reunião da Assembleia da Escola, o Alberto apresentou uma “comunicação”. Tinha feito uma pesquisa sobre a guerra do Vietname e sobre a guerra do Iraque. No seu portfólio, havia várias evidências de aprendizagem: alguns papéis, um cd rom e uma reprodução tridimensional. O relatório de pesquisa chamou a minha atenção. Nesse documento, o Alberto registou dificuldades e aprendizagens. Uma delas foi descrita deste modo:

“Quando fui à internet, para estudar a guerra no Iraque, percebi que quase tudo estava escrito em inglês. E que eu ainda não sabia ler e falar inglês. Pedi ajuda ao meu grupo. Fiz o planejamento com a professora Paulinha. Ela ensinou-me adjetivos em inglês. Aprendi, por exemplo, que o adjetivo “bad” (que quer dizer “mau”) pode ser escrito com um b de Bin Laden, mas também com um b de… Bush”.

Aos sete anos de idade de “maioridade” cidadã, o Alberto aprendeu a ler em inglês. O seu roteiro de estudo conduziu a pesquisa. Recolhida a informação, sobre ela refletiu criticamente e produziu conhecimento. Compreendeu que, numa guerra, não há inocentes. São todos igualmente culpados. Tanto o Bin Laden, quanto o Bush… Tanto o Putin, quanto o Trump.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXXII)

Vespasiano, 7 de novembro de 2040

2020 foi o ano de todos os absurdos. As primeiras páginas dos jornais disso nos davam conta. No Brasil da covid e das eleições grassava a corrupção. Mais de 10 mil políticos com patrimônio superior a 300 mil reais tinham recebido auxílio emergencial. Corajosamente, estações de televisão norte-americanas interromperam a transmissão do discurso de um candidato, por ele ter emitido acusações falsas. Numa aula online, falando sobre violência sexual, uma professora culpava mulheres em casos de estupro.

Face a uma nova vaga de covid, o parlamento português aprovou um novo “estado de emergência”. Esse estado de emergência se prolongaria “até ao final da pandemia”, nas palavras do primeiro-ministro. Porém, os locais das maiores aglomerações continuavam abertos. E a escola era um desses locais.

Levianamente, um administrador escolar afirmava não haver registro de casos de transmissão do coronavírus nas salas de aula”. Dito no mesmo dia em que o André me comunicava que o sistema de saúde o mandara para casa:

“Não posso mesmo sair. Se tenho covid, eu não sei. Já sabia que haveria sempre esse risco. Agora é esperar e ver…”.

O diretor da escola do André fora contagiado. Mas, como se a escola não tivesse qualquer responsabilidade, nela se dizia que a origem do contágio era… a casa dos alunos.

Evidente! Óbvio! Mas, se a maioria dos alunos era assintomática, por que razão a escola havia cumprido a ordem de um ministério irresponsável?

Perante estes absurdos, eu buscava serenidade nas metáforas contidas nas cartinhas, que vos enviei no início do século:

“Nos anos que se seguiram ao teu nascimento, os teus pais não tinham poiso certo, viviam a incerteza da “colocação”. “Colocação” era o final feliz de uma angustiada espera. Dava aos teus pais a certeza de que, pelo menos durante um ano, poderiam fazer o que gostavam de fazer: ensinar e aprender numa escola como aquela onde vais viver alguns anos da tua vida. E também nessa diária aventura de ensinar e aprender que os teus pais amealhavam o seu sustento, aceitando a sina de, ano após ano, levarem a casa às costas para onde o acaso do “concurso” os atirava.

“Concurso” era um jogo de acasos, que os professores eram obrigados a jogar, naquele tempo. O “concurso” era impiedoso e, no final de cada ano letivo, impunha a violência da separação àqueles que se começavam a conhecer e a compreender. Era cego, pouco se importava com os afetos e nada entendia de criar laços. Afastados daqueles que aprenderam a amar, os teus pais mudavam de casa, levando o teu berço para longe das paragens habitadas pelos teus avós.”

Nessas cartinhas, metaforizava desumanas regras, descrevia a via-sacra dos professores em início de carreira. Explicava aos meus netos que, de tanto padecer maus-tratos, os professores desistiam de resistir. E, quando conseguiam uma “colocação” definitiva, já se tinham transformado em “servidores cumpridores de ordens superiores”. A indignação se diluía no lamaçal do “sistema”.

Num dia desse novembro dos idos de vinte, na profusão de e-mails recebidos, havia uma mensagem de resignação. Não a tornei pública, para proteger a remetente. Só, agora, decorridos vinte anos, revelo o início e o final da carta recebida de uma grande (e desistente) amiga:

“Querido amigo José, queria dizer-te que estou e estarei contigo, ainda que ao longe. Apenas e só porque partilho da utopia e o bastante não me basta (…) peço-te que não respondas a esta mensagem, por favor. Abraço largo (Ainda guardo o livro que queria dar-te).”

Com mágoa, respeitei o seu pedido. Não respondi.

 

 

Por: José Pacheco

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