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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXV)

Tavira, 29 de abril de 2041

Era tal e qual a Alice dissera, “mais um projetinho, para que tudo ficasse na mesma”. Ela já tinha decidido “não contribuir para esse peditório” (Alice dixit). Só queria que “eu lhe explicasse coisas da avaliação”.

Dei por mim a compadecer-me da angústia da Alice. Fui adiantando que definir “critérios de avaliação” não é o mesmo que ordenar “critérios de classificação”, que a avaliação é um conceito mais vasto do que o de classificação, que a avaliação procura a posição do indivíduo relativamente a ele próprio, a objetivos e, por vezes, a um grupo, para identificar dificuldades, apontar soluções, para regular e melhorar a aprendizagem, enquanto que a classificação determina a posição do indivíduo para o comparar com uma norma estabelecida, ou com posições obtidas por outros indivíduos. E por aí adiante.

E nem a macei com o explicar da distinção entre grandezas qualitativas e grandezas quantitativas, entre variáveis discretas e variáveis contínuas, como se impunha para uma cabal distinção entre escalas.

“Pois, pois, está bem, mas o que eu quero é orientação para fazer os critérios. Quando posso dar um 2 ou um 3” – interrompeu a Alice, mandando às malvas o meu arengar.

A Alice sinonimizava avaliação e classificação, confundia rigor com raciocínio quantitativo. Estrategicamente, recuei o discurso para o registo do menor esforço: Na avaliação sumativa, a Alice não precisava quantificar e, dado que os juízos sumativos assentavam em critérios para cada dimensão curricular, ela poderia fazer avaliação e não atribuir uma classificação.

“Está bem, Zé, és capaz de ter razão, mas o que é que eu vou apresentar aos meus colegas, na reunião? Eles não são complicados como tu!”

“Diz-me o que queres dizer com o “ser complicado.”

“Tu sabes o que eu quero dizer. Eles só querem saber como hão-de dar as notas. Não se preocupam com essas coisas.”

Não dei réplica às ”coisas”. Fiz-me sonso e contra-ataquei:

“Diz-me lá de que dados dispõem os teus colegas, para poderem dar as notas.” “Temos as notas dos testes e mais algumas coisas.” 

Como voltávamos às “coisas”, quis saber quais, mas a Alice titubeou, terminando a não-explicitação das “coisas” num ato de contrição:

“Eu sei que sou uma chata, mas é como se cortássemos o programa às fatias e depois as puséssemos no computador…Pode estar mal, mas…” 

Poupei-a ao arrependimento e reatei o diálogo:

“E quantos testes fizeste neste período?” 

“Só dois, porque o Conselho Executivo diz que não há dinheiro para mais xerox.” 

Se quiserdes, vos relatarei a continuação dessa conversa.

Dias depois, a Alice deu-me uma novidade. A sua escola iria participar no chamado projeto de “autonomia e flexibilidade curricular”. Remeteu-me para a leitura de uma portaria, que continha boas intenções, logo anuladas por hábeis regulamentadores. Se não, vede:

O artigo 3.º era explícito, referia que o desenvolvimento da autonomia e flexibilidade curricular se subordinava a princípios consagrados em dois decretos, bem como aos princípios orientadores inscritos no regime de autonomia, administração e gestão, “designadamente no que diz respeito ao primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa e à possibilidade de adoção de soluções organizativas diversas no quadro das opções pedagógicas e curriculares de cada escola.”

Lestes bem: primado dos critérios de natureza pedagógica. Não os encontrei no restante texto da portaria. Talvez pudéssemos acreditar nas boas intenções de secretários e ministros, mas nunca confiar na boa-fé dos burocratas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXIV)

Tavira, 28 de abril de 2041

Lewis Carroll pôs a Alice à conversa com o Gato:

“Podes dizer-me, por favor, que caminho hei-de seguir a partir daqui?”

Ao que o gato respondeu:

“Isso depende muito do sítio aonde queres chegar.”

“Não me preocupa muito onde vou chegar, amigo gato.” 

“Então não interessa por que caminho hás-de seguir.” 

Na astrologia oriental, por acaso ou talvez não, também sou “gato” (um dos doze animais de Buda, entenda-se). Também por acaso, ou talvez não, uma Alice ansiosa, que não vivia no País das Maravilhas, me pediu ajuda:

“Desculpa estar a incomodar-te. Sei que o teu tempo é pouco, mas…Desculpa só te telefonar quando estou com problemas.”

E lá foi direta ao assunto:

“Olha, Zé, meteram-me numa equipa incumbida de elaborar “critérios de avaliação”. É mais uma chatice por culpa do despacho 181. E, agora, com esta coisa das competências, é mais difícil saber-se quando se deve dar um 2 ou um 3, não é?” 

Esgotada a retórica da praxe, compreendi que a Alice não estava interessada em elencar critérios de avaliação, mas em se livrar dos critérios. Pedia-me ajuda para “fazer um documento”, que o ministério exigia.

“Fui a uma reunião. Uma doutora do ministério falou de qualquer coisa como um “plano de inovação” e que nós iríamos ter autonomia. Também falou do currículo. Como se nós não tivéssemos mais nada para fazer. É papel e mais papel… Eu quero é ver-me livre da Direção do Agrupamento. Estou farta!”

“A que te referes?” – perguntei.

“É mais um projetinho do ministério. Depois, quando vier um novo governo, fica tudo como dantes. Quero é que me ajudes a fazer o documento da avaliação.”

Prometi ajudá-la a fazer o documento. Em troca, ela me falaria do tal “projetinho do ministério”. E do que se tratava?

“A doutora disse que que quem quiser fazer flexibilização, vai poder mudar 25 % do currículo.”

“Mudar o quê? Mudar como? Por quê 25%? Por que não 26% ou 100%?”

“Olha Zé, isso eu não sei. O que sei é que nos querem dar mais trabalho. Quero que me ajudes no projetinho da doutora e nesta coisa da avaliação. Tu, que fizeste o projeto da Ponte, deves saber como se faz.”

“Não fui eu quem fez a Ponte. Foram professores, pais, a comunidade. Eu apenas escrevi um rascunho de projeto, consegui reunir uma equipe e doei décadas de dedicação a essa escola. Continuo ligado ao projeto e continuarei, até morrer, mas não estou na Ponte, nem sei se a Ponte irá aderir a esse “projetinho do ministério”. Sugiro que fales com a Geni, ou a Anita.”

“Está bem. Mas ajuda-me a fazer o documento da avaliação.” 

Com beijinhos e abraços, a Alice se despediu. Desligado o celular, fui espreitar a Internet. E o que vi?

Pouco tempo antes dos idos de vinte, quase em simultâneo, dois documentos fizeram história. Animados de boas intenções, dois secretários de educação fizeram publicar portarias: a 181/19 e a 276/19. A primeira foi publicada em junho, em Portugal. A segunda foi publicada em agosto, no Brasil. Ambas abriam caminho para novas práticas. A maioria dos professores ignorou-as. Em alguns educadores esses dispositivos legais fizeram renascer a esperança.

Netos muito amados, consegui extrair de uma velha pen drive o texto das portarias. Convosco conversarei sobre essas e outras velharias. Me surpreende e agrada que vos interesseis por estes assuntos. Nos idos de vinte, havia quem os considerasse “uma maçada”.

A boa educação de que os vossos filhos, hoje, usufruem não resultou de iniciativas ministeriais. A educação de que beneficiais em 2041 foi concebida à custa de muita resiliência. Os burocratas não estavam distraídos. Preparai-vos para desagradáveis surpresas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXIII)

Tavira, 27 de abril de 2041

Nos idos de vinte, a sofisticação do discurso pedagógico continuava a não encobrir a miséria das práticas. E este idoso insuportável continuava a propor o diálogo, sem hesitar em fustigar por escrito quem prejudicasse crianças. Questionava práxis e “opiniões” carentes de fundamento. Salvaguardava o respeito pelas pessoas, embora tivesse sido caluniado e desrespeitado.

Dado o meu caráter de taurino com ascendência em virgem, não cedia à omissão e ao fácil. E, porque não renunciei a princípios, fui alvo de incompreensão e de tentativas de assassinato de caráter.

Jovem e irreverente professor dos primórdios dos anos setenta, criei sarilhos nas escolas por onde passei. Numa delas, diariamente, mudava as mesas da sala de aula do enfileiramento individual para círculos de trabalho em equipe. Até que a “professora da manhã” deixou no quadro negro uma mensagem para o “professor da tarde”:

“Colega, deixe estar as mesas como estão, no seu lugar normal”.

Já nessa altura, eu respondia com perguntas. E deixei recado no quadro negro:

“Colega qual é o “lugar normal”?”

A “professora da manhã” foi fazer queixa à Direção. No dia seguinte, uma funcionária entregou-me “uma ordem da senhora diretora”:

“Deixe as mesas como no turno da manhã”.

Não “deixei”. Apelidaram-me de “arrogante” e de “desrespeitoso”, mas continuei a mudar o “lugar normal” das mesas”.

Em 1976, entregaram-me uma turma considerada “o lixo da escola”. Havia quem chamasse “lixo” a seres humanos, a crianças lesadas pela escola. Apresentei ao Conselho Escolar o que me propunha fazer. A escola não tinha projeto escrito. Elaborei um projeto, que ainda guardo no caixote das velharias. Ninguém se dignou lê-lo. No sábado seguinte, a diretora respondeu que o Conselho Escolar “não autorizava”.

Se a memória não me atraiçoa, reproduzo, mais ou menos, o que aconteceu nessa reunião. A diretora tinha convencido as suas servis professoras de que eu era “um perigo” (expressão confidenciada por uma colega, anos depois). Ignorei a “ordem” e perguntei se alguma colega queria participar. De novo, fui interrompido pela diretora:

“Não ouviu, colega? Tem de respeitar a decisão do Conselho Escolar! A sua proposta não foi aceite.”

Insisti, fu intimidado e repliquei:

“Não se trata de uma proposta, mas de um projeto. É preciso trabalhar em equipe. E trabalhar com a comunidade. Já estou a trabalhar com três pais e uma mãe…”

“Os pais, caro colega, que fiquem em casa! Não aceitamos a sua proposta e pronto!”

”Não se trata de uma proposta, mas de um projeto. E vou fazê-lo, com os pais, quer a senhora queira, quer não queira!”

Acusou-me de “arrogância” e “desrespeito”.

Durante seis anos, apesar das ameaças, “aguentei o tranco”. Após a publicação da Lei de Bases, fizeram-me diretor. As “dadoras de aula” desertaram. Com a Maria José e a Luísa, constituí o que, depois, se chamou “turma-piloto”. O projeto se consolidou e toda a escola nele se envolveu.

No abril de 2021, fui a Portugal, não só para “curtir” a família, mas para ajudar educadores em processo de mudança. Como é evidente, deveria começar por colaborar com um projeto, que ajudei a criar e a manter. Reuni com a Gestão e com a Direção. Disseram que eu já não fazia parte do projeto. Pressenti que iriam recusar aquilo a que chamaram “proposta”. E reagi ao desvirtuamento do projeto como reagira, quarenta e cinco anos atrás:

“Não se trata de uma proposta. Se não houver um professor que assuma um compromisso ético, a turma-piloto será criada com a comunidade.”

À míngua de argumentos, chamaram-me “arrogante” e “desrespeitoso”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXII)

Paranoá Parque, 26 de abril de 2041

O projeto político-pedagógico da Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (conhecida por CAP) apresentava-se deste modo:

Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento, isto é, a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio; a escola começa a sentir-se pertencente àquela comunidade e, então, começa a criar, planejar e respirar os projetos de interesse de sua gente, de sua realidade.”

A “Apresentação” da CAP começava com um excerto do documento-base da política educacional da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEEDF), o “Currículo em Movimento da Educação Básica”, documento, até então. letra morta.

Em 2015, a pedido da secretaria, um núcleo de projeto se tinha constituído. Em 2018, o teor do documento começava a ter tradução prática, círculos de aprendizagem presencial (de vizinhança) eram esboçados. Nos encontros com a comunidade e com a secretaria de educação, seria suscitado o debate sobre a ressignificação do espaço escolar, bem como da relação deste com a comunidade. Visava-se materializar princípios e valores, que constavam do projeto e fundamentavam a prática. Refletir-se-ia sobre espaços e tempos de aprendizagem, sobre as formas de representação dos conteúdos curriculares, dos procedimentos e estratégias de avaliação, das atividades culturais.

Nesses encontros, era apresentada e explicada a proposta de reconfiguração da prática escolar às famílias, que desejavam que os seus filhos nela participassem. Estimulava-se o encontro informal de esclarecimento.

Este fac-símile fala por si:

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXI)

Águas Lindas de Goiás, 25 de abril de 2041

Hoje, são passados 66 anos sobre uma leda madrugada. Ficai tranquilos, que não irei dizer-vos o que fiz, nem onde estava, nessa leda madrugada. Falar-vos-ei apenas de um povo, que tinha adormecido fascista, no dia 24, e acordado democrata, no dia 25. E que, por muitos anos, continuaria apático (ou desatento?) face a “tenebrosas tentações”.

Durante muitos anos, ensaiei coros de igreja, e até cheguei a cantar sete missas ao domingo… Por essa altura, eu era secretário do Coro da Sé Catedral do Porto, um coro de música sacra, que marcou uma época, dada a sua excelente qualidade. A maioria dos coralistas era de classe social média-alta, vivia em pequenos palácios. Eu vivia na Ilha dos Tigres, um cortiço onde gente digna e de “algumas posses” convivia com toda a sorte de deserdados da vida, onde as pessoas mais belas que conheci partilhavam o seu quotidiano com a violenta fealdade da prostituição.

Operacional da Revolução dos Cravos, saído da clandestina luta contra um salazarento regime, nos ensaios do Coro, conheci a “nata” do regime deposto. Enamorei-me da filha de um grande proprietário rural. E ela me levou a conhecer o resto da família, apresentando-me como “futuro marido”.

Netos queridos, perto de fazer noventa anos, sou uma autêntica ruína. Mas, naquela altura, até era um moço bem parecido. E ninguém sabia da minha modesta origem. Já havia compreendido que a organização social se baseava no princípio “cada macaco no seu galho”. Caíra na besteira de levar à Ilha dos Tigres a minha anterior namorada. A sordidez dos gestos, o eco de impropérios, a sujidade por toda a parte, as insinuações dos meus colegas de cortiço – “Ó Zé, já comeste essa gaja?” – as latentes ameaças de proxenetas, causaram tamanho impacto, que o namoro acabou nesse dia.

No dia em que a minha namorada me fez entrar num palacete repleto de luxo e ostentação, entrei em crise. Os seus pais eram pessoas delicadas, gente de paz. Aliavam um catolicismo tradicional a uma bondade natural, o que fazia deles pessoas admiráveis. A conversa fluiu natural. Creio ter causado boa impressão. Na “hora do chá”, me encheram de encômios e me convidaram para passar uns dias com eles na Casa da Praia. Afáveis, simpáticos, me rogaram que voltasse no domingo seguinte. Dei um beijo no rosto da minha namorada e dei costas ao palacete, sem olhar para trás. Nunca mais voltei aos ensaios do Coro.

Ainda hoje e em todas as manhãs que ainda poderei merecer, ponho em causa as minhas crenças, ponho em dúvida todas as minhas certezas. Porém, nos idos de setenta, eram sólidas as minhas convicções: aqueles que suportavam o regime ditatorial eram inimigos do meu povo sofredor. Tinham causado a prisão do meu pai e a morte da minha mãe. Eram meus inimigos. No dia em que convivi com o “inimigo”, as minhas mais fortes convicções esmoreceram.

Quando me perguntavam por que razão enjeitei uma promissora carreira de engenheiro e decidi enveredar pela profissão de professor, eu dava esta resposta:

“Quando decidimos sermos professores, fazemo-lo por uma de duas razões: por amor, ou por vingança. Eu decidi ser professor por vingança. E me fiz professor por amor.”

Adversidades dos primeiros tempos da profissão me levaram a banir dualismos e fundamentalismos pedagógicos. Busquei uma “terceira via”, que me protegesse de maus exemplos de praticistas e teoricistas. Após o “25 de Abril”, os primeiros quase me causaram a morte. Os segundos continuaram a pecar por omissão. Vivendo no Olimpo das teorizações de teorias, contribuíam para adiar a emergência de uma nova educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DX)

Itapuã, 24 de abril de 2041

Em janeiro de 2015 o secretário de educação levou-me até à penitenciária da Papuda. No final da visita à ala dos jovens infratores, pediu-me que elaborasse um projeto educacional para intervenção numa unidade de internação.

Agradeci a confiança em mim depositada, mas eu estava mais interessado em desenvolver um projeto que evitasse a necessidade de haver prisões, unidades de internação, jovens prisioneiros. Eu trabalhava a montante do sistema, para que não se tivesse de castigar e prender jovens a jusante. Propus ao secretário desenvolver um projeto de comunidade de aprendizagem, que salvasse vidas. O Júlio aceitou.

Júlio Gregório foi um excelente secretário de educação. Compreendeu a necessidade e a intenção, que me animava e lhe expus. Apoiou a iniciativa de algumas professoras do CEF04 do Paranoá, de que vos falei na cartinha anterior, de criar uma comunidade de aprendizagem no Paranoá Parque. Após várias reuniões, enviei à secretaria referenciais de projeto de comunidade, de regimento interno e uma minuta de termo de autonomia.

Numa ata de reunião realizada na DRE do Paranoá estão descritos os acordos de instalação da designada “Escola-Classe/Comunidade de Aprendizagem do Paranoá” Também foram estabelecidas condições de assessoria – o meu trabalho e o da Cláudia decorreria em regime de voluntariado, não remunerado.

No mês seguinte, graciosamente, a arquiteta Cláudia elaborou um estudo de adaptação do edifício às suas novas funções. A Ecohabitare contratou e pagou uma funcionária de apoio às ações de formação por nós realizadas, em que participaram centenas de professores do Distrito Federal. Duas, três vezes por mês, fomos até à SEEDF. Pacientemente, escutamos e esclarecemos burocratas. Dialogamos com engenheiros e arquitetos, que pretendiam instalar salas de aula no edifício da CAP. Realizamos inúmeros encontros de trabalho. Viajamos no nosso carro, gasolina paga pela Ecohabitare. Despendemos centenas de horas num trabalho insano. Gastamos centenas de milhar de reais nesse projeto. Não recebemos um real sequer.

Entretanto, a Ecohabitare elaborara um projeto de adaptação de instalações de um centro de eventos e fizera proposta de realização de mais um processo de formação para dotar os professores para o trabalho em comunidade de aprendizagem. Até que “alguém” – ainda hoje, não sabemos se seria homem, mulher, ou um grupo organizado – iniciou o seu trabalho sujo. A Ecohabitare deixou de ser informada da realização de reuniões de trabalho em que deveria participar.

Houve um tempo na minha vida de professor em que precisei de romancear o drama educacional, para não acabar no divã de um psiquiatra. Se regressasse às metáforas com que presenteei, falaria assim:

Um pássaro generoso ansiava por novos modos de viver e de voar. Contrariavam os porquenãos, pássaros com tendência para beber silêncios no degredo dos ninhos. Precariamente isolado na sua gaiola dourada, quase a soçobrar perante a perfídia dos porquenãos, temia que algum pássaro porquenim espreitasse e fosse contar pecadilhos a um qualquer “superior”. As paredes tinham ouvidos…

Aquela secretaria dispunha de um bom secretário e de excelentes funcionários. Mas, havia por lá alguns “alguéns” de baixa estatura moral. E o secretário Júlio terminou o seu mandato sem que tivesse conseguido consolidar um projeto, que colocaria a educação do Distrito Federal no século XXI. O negacionismo pedagógico fez sentir os seus efeitos, até à chegada do novo secretário.

São tantas as coisas que tenho para vos contar!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DIX)

Vila Franca de Xira, 23 de abril de 2041

O Pedro, de que vos falei numa outra cartinha, não resistiu a me confiar um registo de impressões de uma das suas traumáticas experiências de estágio:

“A estória que gostaria de partilhar é, como tantas outras, passada numa caixa de betão conhecida por escola. E esta era considerada “uma das melhores do país”. 

Eu antevia um futuro promissor para aquele aluno. Mas, os números, o diabo dos números!… O Carlos manifestava indiferença face aos números. “Coisa grave!”

Remetido à última carteira da sala, continuava a desenhar, recusando tentar, sequer, compreender a importância dos números. Com a Páscoa à porta, é chegada a altura das notas quase finais – “as notas que damos no segundo período são praticamente as mesmas do último” – diziam os nossos professores.

A angústia do Carlos era disfarçada por um sorriso tímido, que fazia dele “um dos alunos com melhor comportamento da turma”. O segundo período até tinha corrido bem. Com os estagiários por perto, vieram as notas positivas e um maior à-vontade do Carlos. Com o segundo período, veio também uma matéria diferente, algo de que o “Carlos” gostava e fazia tão bem ou melhor que os restantes elementos da turma: a geometria. 

Os testes foram animadores. Mas o dia de “dar as notas” foi de imensa tristeza para o “Carlos” (que “já estava habituado”) e para nós, estagiários. A memória da “nota um”, a mais baixa da escala de classificação, bem assente na pauta, povoou-me os sonhos de noites malpassadas. Afinal, eu era só um estagiário. Arrastei comigo um sentimento de impotência que ainda não me abandonou. Quando da última vez que falei com “Carlos”, o fantasma da reprovação levava-o a considerar a hipótese do abandono da escola.”

O Pedro apercebeu-se da tragédia. Mas quantos milhares de Pedros passaram insensíveis ao largo dos pequenos dramas que compunham o imenso drama de uma carreira feita de indiferença? Quantos milhares de Pedros morreram profissionalmente aos vinte e apenas foram enterrados quando chegaram aos sessenta? Foram muitos os novos professores a quem a vida roubou os sonhos. Foram muitos mais aqueles que, desfeito o idílio, o enamoramento dos inícios, desertaram.

Se alguém crê que eu pretendo afirmar a falência da formação inicial dos idos de vinte, se houver quem pense que eu insinuo termos vivido uma tragédia criminosamente silenciada, engana-se. Eu afirmo!

Nesse tempo, os ministérios da educação de países onde a covid estava praticamente debelada desistiam do retorno a aulas presenciais. No Brasil, professores conscientes apelavam à greve, quando interesses mesquinhos, particulares, pressionavam a “reabertura das escolas”. No Brasil anestesiado por negacionismos vários do pico da pandemia, se ignorava as recomendações de infectologistas e da sociedade médica em geral, no sentido de evitar aglomerações em sala de aula, por serem propícias ao contágio.

Parecia que o povo brasileiro não compreendera a mensagem do vírus. Empurrava os seus filhos para o retorno à mesmice de uma escola que, indiretamente, ajudara a instalar o caos, pois nem sequer ensinara os seus alunos a… lavar as mãos.

Durante a pandemia, professores ficaram sem salário. Crianças passaram por crises de ansiedade. Adolescentes contraíram novas formas de pânico. A saúde mental dos pais se deteriorou. Uma sociedade doente esgotara energias e clamava pela “volta às aulas”. O negacionismo pedagógico exigia o regresso ao local do crime, onde o talento do Carlos tinha sido roubado, o retorno ao inferno onde a vida profissional do Pedro se fez em cinzas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DVIII)

Vila Real de Trás-os-Montes, 22 de abril de 2041

O artigo 48º da Lei de Bases portuguesa assim reza: “Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.”

Nos idos de vinte, a Lei de Bases brasileira era similar à sua congênere portuguesa. Bastava que fosse lida, para que se compreendesse o quanto a regulamentação da lei concebida pelas secretarias e ministérios da educação era de natureza técnico-instrumental, burocrática. Prevaleciam os critérios de natureza administrativa, pelo que a regulamentação instrucionista estava fora da lei. Os critérios de natureza pedagógica e científica não eram respeitados. Ipso facto, os ministérios e secretarias agiam à margem da lei.

O primeiro ponto do artigo 48º estabelecia que a administração e a gestão dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, “se orientasse por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes”.

Anísio Teixeira já o tinha dito, nos idos de cinquenta do século passado. E tinha ido mais longe. Mais do que concordar com a fixação dos professores nas comunidades de pertencimento, afirmara não ser necessário transporte escolar, nem inúteis e dispendiosos “departamentos de transporte escolar”, nem crianças a acordar de madrugada, para penar longas viagens.

Alunos e professores deveriam aprender no seu lugar de viver. O que iriam aprender dentro de um prédio, que não pudessem aprender sem sair do seu bairro? Nada!

Anísio recomendava: “fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisassem andar muito para alcançá-las”. Mas era outro o “entendimento” da administração educacional.

Queridos netos, nos anos que se seguiram ao vosso nascimento, à semelhança de outros professores em início de carreira, os vossos pais não tinham poiso certo. Ano após ano, viviam a incerteza da “colocação”. E aceitaram a sina de levar a casa às costas para onde o acaso do “concurso” os atirava. O “concurso” e o “remanejamento” eram cegos, pouco se importavam com os afetos e nada entendiam de criar laços. Mas. os vossos pais conheceram-se, amaram-se e quiseram que viesseis ao mundo num tempo incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor, como nas de aprender, o que é urgente não deve esperar.

O artigo citado também refere que, em cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino a administração e gestão se orientassem “por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo.” Mas, cadê a participação de todos os implicados? E cadê a democraticidade, se os diretores das escolas estavam submetidos ao dever de obediência hierárquica?

Nos idos de vinte, a administração educacional contrariava o disposto na lei, negava o direito ao exercício digno da profissão de professor. Lideranças tóxicas recusavam dialogar e, não raras vezes, recorriam à ameaça. A lei era votada ao ostracismo. O instrucionismo imperava. Os trágicos efeitos da escola da aula se perpetuavam.

A anómala situação se prolongou até 2021. No abril desse ano, educadores das turmas-piloto de comunidade de aprendizagem entregaram aos órgãos de direção, gestão e administração um “Plano de Inovação” e um “Contrato/Termo de Autonomia”. Uma solicitação de diálogo acompanhava os documentos. Urgia negociar, restaurar a legalidade.

Em breve, vos contarei o que aconteceu.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DVII)

Torre de Moncorvo, 21 de abril de 2041

Há vinte anos, o meu amigo (e sábio) Isaac Roitman lembrava aos seus conterrâneos que, no dia 21 de abril, a sua “querida UnB” completaria 59 anos de existência.

Percorramos uma “linha do tempo”. No quinquagésimo aniversário da universidade, foram comemoradas “conquistas, identificando os fracassos e as omissões” e a “Comissão UnB.Futuro” surgiu, para pensar a universidade de outro meio século. Na década de cinquenta do século passado, acadêmicos sentiram “necessidade de uma inflexão no ensino universitário brasileiro”. Mas, o que se pretendia fosse inovação, sofreu o desgaste registrado no livro “A Universidade Interrompida 1964-1965”Nos idos de sessenta, no seu depoimento à Comissão Parlamentar na Câmara dos Deputados, o português Agostinho da Silva defendeu um modelo da universidade, que enfrentasse os desafios dos tempos presentes (década de sessenta) e futuros:

“A Universidade atual, que vem da Universidade medieval, é uma Universidade que se alicerça sobre a ideia de fraternidade, de esforço comum, para atingir uma verdade, que não é uma verdade puramente intelectual, mas uma verdade de sentimentos, de unidade entre os homens. O grande drama da Universidade brasileira, hoje, é que estamos tentando implantar no Brasil estruturas que são efetivamente de outras economias, de outros estágios educacionais e que de maneira nenhuma podemos adaptar ao Brasil”.

Nesse corajoso discurso perante a Câmara, Agostinho da Silva denunciou a falta da liberdade e da autonomia, gerada pelo “regime de medo”, que fazia com que a Universidade não pudesse cumprir a sua missão criadora. Em pleno “maio de 68”, num ano em que o mundo passou por profundas transformações, Agostinho vaticinava aquilo que viríamos a vivenciar, algumas décadas depois:

“Cada vez creio mais que o Brasil é de todas as nações aquela que mostra no mundo, neste momento, mais capacidade criadora, mais capacidade humana, mais possibilidade de convivência. Mas, de nenhuma maneira nós podemos ter a esperança de ter uma Universidade nova, se não tivermos um Brasil novo”.

Volvido meio século, novo “regime de medo” se instalou. Nesse tempo de negacionismo, sinais de ressurgimento criador surgiam. Face à pandemia da covid-19, mais de trezentos projetos foram desenvolvidos na UnB, para enfrentar a crise sanitária. O sonho de Anísio e Darcy, não morrera. Outros insignes mestres o retomaram: Luís Pereira, Vladimir Carvalho, Aldo Paviani, Adalgisa Rosário, José Coutinho, Isaac Roitman e outros vultos, que tive oportunidade de conhecer. A UnB “estava viva”. Contudo, resquícios de “regimes de medo” afetavam a universidade, corroendo o sonho de Darcy, ignorando a reflexão de Agostinho: 

“A Universidade não é capaz de responder mais aos anseios da juventude, que quer encontrar um estímulo de criação, alguma coisa que a encaminhe para o mundo e não encaminhe apenas para a sua profissão”.

Nos idos de vinte, essas palavras ressoavam carregadas de triste atualidade. A administração educacional se constituía em obstáculo à inovação. Na universidade, a formação dos educadores permanecia ancorada em práticas instrucionistas. Uma educação arcaica reproduzia uma sociedade arcaica.

Freire havia dito que a escola não mudaria a sociedade, que a escola mudaria as pessoas e que as pessoas mudariam a sociedade. Porém, se a sociedade não mudava a escola, onde estaria a escola que mudaria as pessoas? Onde encontrar pessoas capazes de mudar a sociedade? Como seria possível interromper o círculo vicioso dos “regimes de medo”?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DVI)

Ponte da Lima, 20 de abril de 2041

O Pedro, quando finalista de um curso de formação de professores, era ator de um drama real. Tomara consciência de que, ressalvado o diploma que lhe dava acesso ao exercício de uma profissão, tinha desperdiçado quatro preciosos anos a copiar powerpoint e a memorizar inutilidades que, depois de debitadas num exame, rapidamente esqueceu:

“Chegou o fim da tormenta de quatro anos, em especial o último. Incompreensível estupidificação! Serão os professores capazes de abandonar as cartilhas e sebentas, um palavreado com sabor a bolor? Quantas escolas inovadoras, quantos professores inovadores tivemos oportunidade de conhecer? Dei comigo a pensar “por que teremos nós de copiar powerpoint, quando poderíamos simplesmente ler os livros dos autores neles citados? Certamente, essa leitura nos diria mais da teoria do que as aulas papagueadas.” 

O Pedro admitia contenções e fraquezas:

“E a autocensura que me impus! Por vezes, tive de me baixar ao nível rasteiro adoptado pela maioria dos meus colegas, com o único objetivo de chegar ao fim do curso. Se não fosse assim, não poderia estar a escrever estas linhas. Da nota final dependia a minha sobrevivência. Malditas notas, que nem sequer são musicais!” 

O Pedro elegeu-me como confidente. Não me atreverei a contar-vos tudo o que ele me disse. Apenas acrescentarei que, ao longo do exercício da profissão, deparou com lideranças tóxicas semelhantes àquelas que a Mercedes descreveu. Ora era um diretor a impedir a comunicação entre professores e famílias de alunos, ora era um ministério a impor práticas contraditórias com o projeto das escolas. Ora era um diretor que não permitia o acesso dos seus professores ao conteúdo do projeto da escola, ora era um ministério ou secretaria a impor a todas as escolas um projeto chapa zero, para todas igual.

Pedro arrostou com as pérfidas investidas de supervisores, de inspetores, de diretores, de funcionários de secretaria de educação, de ministeriais burocratas e até de colegas de profissão. Se desesperou, se cansou, exauriu o seu capital de esperança e se perdeu nas insidiosas encruzilhadas da vida de professor.

Raros foram aqueles que se salvaram do naufrágio dos sonhos. O André foi uma das exceções. Conheceu as agruras de ser vice-diretor de um agrupamento de escolas. Sobreviveu no exercício de uma ética de coletividade. Precisou de chegar aos quarenta e cinco anos de idade para, plenamente, se realizar como um excelente professor de matemática, que sempre foi.

Entre a desilusão da (de)formação e a angústia da proximidade do exercício de uma profissão para que não fora minimamente preparado, o Pedro apercebeu-se de outra dura realidade: a de que os seus colegas de curso (futuros professores) eram considerados pelos seus mestres como potenciais trapaceiros. Vejamos.

“Quem cola nos testes, quem se comporta como puxa-saco dos docentes, quem faz xerox de trabalhos escritos por alunos de anos anteriores, saca uma melhor média de curso. Num destes dias, passei por uma sala. Vi alunos serem obrigados a prostrar os seus pertences no chão, debaixo do quadro. Ao que parece, porque “poderiam colar no teste que se iria realizar”. Serão estes alunos, considerados desonestos pelos seus professores, os professores do amanhã? Vão ceder à tentação de rastejar, para sobreviver?”

Para meu infortúnio, rendi-me a outras causas que não estas. Concluí o meu curso com uma média baixa e a consciência tranquila, num equilíbrio ténue entre o desconforto da perspectiva de meses de desemprego e a satisfação de ter ido mais além.”

 

Por: José Pacheco

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