Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXII)

Torre de Moncorvo, 26 de junho de 2041

No dia da Festa, “as crianças mostravam eufóricas os seus presentes”. Todas, exceto uma, que a jovem estagiária assim descreveu:

“A aluna postada no fundo da sala, de rosto sério, sem sorriso, expressão neutra, de olhos aguçados e cabelo negro, calada, a observar. Era uma adolescente de origem chinesa”. 

A Marta era uma jovem candidata a professora e já ia no seu terceiro mês de estágio. O primeiro contacto com a jovem chinesa foi premonitório do que mais adiante viria a acontecer: 

“Os nossos olhares cruzaram-se e eu sorri. Hesitei em falar, melhor dizendo, gesticular, hesitei em tornar a olhar. Depois de breves segundos, desisti de comunicar com a nova aluna”. 

Os pais da jovem chinesa tinham encontrado num restaurante da cidade o destino feliz da sua saga migratória. Na cozinha e na sala de jantar, o mandarim era a língua oficial. O patrão recomendava que conservassem, nas falas e nos gestos, o exotismo e a graciosidade, clichés ou veros atributos dos orientais que os clientes muito apreciavam. 

Na rua e no mercado, a conversa era outra e a comunicação era mais exigente. Aí, o dedo indicador e alguns esgares compensavam a elementaridade do vocabulário. Mas a rua lhes havia ensinado um vasto repertório, onde pontificava o vernáculo. 

As crianças, que eram ignorantes da língua de Camões, mas não eram parvas, adivinhavam nas palavras captadas nas brincadeiras e zaragatas uma carga pejorativa pouco abonatória e de utilização pouco recomendável no meio académico. Não era de espantar que se remetessem para um total mutismo, na sala de aula. 

A estagiária deixou que decorresse mais de um mês, reuniu toda a coragem necessária e avançou para o fundo da sala, ao encontro de um fantástico desafio. Meteu conversa com a chinesa, mas obteve “uma resposta negativa”. 

No dialeto do bairro, como no mais puro mandarim, este eufemismo equivale, no mínimo, à expressão “vai dar uma volta, a ver se chove” (e o leitor já percebeu que também o narrador não escapa ao recurso a figuras de estilo, para não ter que enxamear a escrita com reticências). 

A estagiária não se deu por achada com a “resposta negativa”, habituada já a outros e bem mais contundentes mimos que os “vândalos do bairro” costumavam dispensar às estagiárias. Fazendo-se desentendida, a Marta leu no olhar da aluna qualquer coisa parecida com um pedido de atenção, e passou a entrecortar o seu afã de estagiária com momentos de encontro com a aluna do fundo da sala, o que parecia satisfazer a professora: 

“Mas a menina não se iluda! Não sei o que fazer dessa aluna. Ainda está no pa, pe, pi, po, pu e no ta, te, ti, to, tu. E daí não passa”. 

Efetivamente, a Li Yan (assim se chamava a pequena) dali “não passava”. 

Sentada a seu lado, com montanhas de imagens, a estagiária Marta trabalhava “arduamente em todos os dias de estágio e sempre que era permitido.” Tinha prescindido do “pa”, do “pe” e do “pu”. A Li Yan interessou-se pelos jogos de identificação de palavras, construía “pequenas frases como: «A Li tem os olhos pretos». E até já tinha conseguido obter da aluna chinesa “um sorriso e um «Olá»”.

Um mês mais tarde, a estagiária arriscou fazer um teste. Apontou para a mesa e disse “mesa”. A jovem chinesa apontou para a mesa e disse “mesa”. A Marta apontou para o livro e disse “livro”. A aluna apontou para o livro e repetiu: “livro”. A Marta apontou para o lápis e disse: “lápis”. Porém, quando a miúda apontou para o lápis, respondeu: 

“Made in China”. 

E, com sotaque muito british, acrescentou: 

“China! That’s my country!” 

A surpresa da Marta seria ainda maior, como vereis na cartinha de amanhã.

 

Por: José Pacheco

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