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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXV)

Casimiro de Abreu, 19 de agosto de 2041

Quando, na primeira metade da década de setenta, deparei com uma “primeira classe” constituída por jovens de quinze anos, quis saber por que razão eles estavam na “primeira classe da instrução primária”.

Naquele tempo, havia exame ano a ano. Quem não soubesse ler, reprovava. Meti conversa com os jovens, para procurar entender por que não sabiam ler.

“A gente não tem cabeça para aprender. No ano passado, a senhora professora até disse que nós já não tínhamos idade para andar na escola. E, há uns anos,  um professor até já tinha dito que nós éramos rodos uns burros”. 

“Dizei-me como esses professores ensinavam” – inquiri.

“Os professores e as professoras ensinavam bem. A gente é que não conseguiu aprender”.

“Com ensinavam?”

“Foi sempre da mesma maneira. Primeiro ensinaram o a, e, i, o, u. E a gente fazia carreirinhas de as, carreirinhas de es e por aí adiante.”

“E depois?”

“Depois, eles davam a lição do livro. A primeira era do pê. Depois a letra tê. E mandavam juntar. E a gente juntava: pa, pe, pi, po, pu, ta,te, ti, to tu.”

“E que mais?”

“A gente só chegava a ler a pua, o pato, a tia tapa o pote…”

Uma estranha sensação me percorreu. Era assim que eu ensinava. Tinha aprendido a ler pelo método fônico, ensinava pelo método fônico. Mas, se a abordagem analítico-sintética não resultara com aqueles jovens, ao longo de sete anos, resultaria naquele derradeiro ano de permanência daqueles jovens na escola?

Era por demais evidente que não! Aplicando a mesma metodologia, os condenaria ao analfabetismo. Tomei consciência de que, ensinando todos como se fosse um só, com um só “método”, simultaneamente, desrespeitando o ritmo de aprendizagem de cada aluno, desprezando o repertório linguístico dos jovens, não fazendo apelo a diferentes estilos de inteligência, não levando em consideração a lateralidade predominante, não atendendo à diversidade de processos, por desconhecimento, eu confirmaria que eles seriam incapazes de aprender a ler. E um dilema se me impôs: encontrar outro modo de ensinar, ou… mudar de profissão.

Optei por ficar, a todos garantindo o direito de aprender a ler.

Talvez, um dia, vos conte o que aconteceu. Por agora, vos direi que, nesse ano, aprendi a fazer levantamentos de repertório linguístico. Isso mesmo: quando a criança chega à escola, para ser aluno, já se sabe ler! Por exemplo: “Coca-Cola”.

Soube da existência do chamado “método das 28 palavras”, ou das “palavras geradoras”, muito ao jeito do “ti jo lo, tu já lê” do Freire. Estudei o “Método Natural de Leitura” do Freinet. Se, antes, apenas conhecia uma metodologia, ao cabo de meia dúzia de meses, conhecia vinte e cinco, desde os fonomínmicos aos fonossintéticos, dos silábicos aos mistos, do global de palavras ao global de frases e de contos.

Através de levantamentos de repertório linguístico, cheguei a identificar casos em que crianças de cinco ou seis anos identificavam mais de cem palavras. Nessas palavras estavam todos os ditongos, grupos consonânticos e todos os casos de leitura. Tudo isso era ignorado pelos alfabetizadores. Concebi materiais e os utilizei, sem fazer das crianças cobaias. Todos aprenderam.

Numa escola dos idos de vinte, a minha amiga Cecília encontrou crianças analfabetas, a frequentar o terceiro ano do Fundamental.

“Tia, a gente é burro, não vale a pena perder tempo a ensinar a gente a ler.”

A Cecília tentou. E os “burros” viraram inteligentes.

A linguagem é produção social. Ao ensinar a ler como se todos fossem um só, não se promove o uso da leitura e da escrita como meio de comunicar e de assumir cidadania.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXIV)

Morungaba, 18 de agosto de 2041

Na Ponte, celebramos “compromissos de honra” e os cumprimos. Mas, entre 1976 e 1986, enquanto não foi publicada a Lei de Bases, vivemos momentos de quase-extinção do projeto.

A lei vigente reproduzia vícios da ditadura e isso nos custou perdas e danos. Até que, em fevereiro de 1989, se concebeu o “Enquadramento Jurídico da Autonomia” e a Ponte recebeu o Primeiro Prémio de um concurso de projetos inovadores lançado pelo ministério. Experimentalmente, se concedeu à Ponte o direito de escolha dos seus professores. Estes não se candidatavam a uma escola perto de casa, faziam concurso para participar num projeto coerente com a sua visão de mundo e de educação.

Em 2004, quase trinta anos após o início do projeto, a Ponte celebrou um contrato de autonomia com o ministério da educação. Através dele, passou a poder escolher os seus professores. Mas, longo e penoso foi o caminho para a autonomia.

O concurso era universal e obedecia a parâmetros e critérios bem definidos. Mas, todo esse cuidado não evitou que tiques burocráticos se manifestassem e que novos corporativismos surgissem. Ficou célebre uma situação vivida durante um congresso, nos idos de noventa.

Como sempre, comecei por perguntar o que os professores ali presentes queriam saber. Logo, alguém se insurgiu nestes termos:

“Colega, a Ponte abriu um grave precedente. A partir de agora, qualquer diretor pode contratar um amiguinho seu. Uma diretora, que tenha uma filha para dar emprego, pode contratá-la. Não vão faltar “acordos de comadres”. 

O meu interlocutor foi, entusiasticamente, ovacionado. E eu respondi:

“O colega admite que os professores não sejam éticos e que possamos viabilizar “compadrismo”? Haverá diretores desonestos? Crê que haja educadores desonestos?”

Ficou calado. Depois, falou um pouco, para se penitenciar das insinuações. E dali se foi.

Em 2014, participei do chamado “grupo de trabalho da criatividade e inovação”. Com a minha amiga Helena, com a Cláudia e com outros educadores, se deu visibilidade pública a 178 projetos com potencial de inovação. Raros foram os que sobreviveram. A mudança do prefeito, o capricho do diretor, o autoritarismo do administrador, pequenas traições de colegas professores, deitaram por terra o esforço de notáveis educadores.

Alguns dias antes do primeiro encontro do GT, tive ensejo de conversar com o que viria a ser o ministro Renato Janine. Perguntou-me se, “a partir da minha experiência da Ponte”, eu considerava que os projetos de inovação partiam sempre da periferia do sistema. Disse-lhe que a minha “experiência” era pouca, mas que a minha formação experiencial era significativa. E que, ao longo de meio século de projetos, ela me havia dito que eles partem, quer da base, quer do centro do sistema.

Os projetos são sustentáveis, quando a base e o centro estabelecem acordos de autonomia, o que raramente acontecia. Ano após ano, as escolas se viam privadas de professores leais aos projetos. Quando estes ingressavam em outra escola, raramente encontravam outros professores, que assumissem um compromisso ético com a educação. E se perdiam em emaranhados burocráticos. Àqueles que ficavam, restava-lhes proporcionar formação aos que chegavam e que só sabiam… “dar aula”.

O exercício da autonomia pressupunha assumir maior responsabilidade, que o educador se assumisse como trabalhador da educação ao serviço de um projeto adotado por uma comunidade. Mas, o “sistema” negava estabilidade às equipes de projeto e eram raras as escolas autônomas, eram raros os professores autônomos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXIII)

Cabo Frio, 17 de agosto de 2041

A imagem que encima esta cartinha é reprodução de uma pintura do artista Juan Lucena. Esse pintor espanhol quis prestar uma homenagem póstuma a todos os avós que a Covid ceifou, sem lhes permitir um último adeus.

No decurso da primeira pandemia, se aconselhava distanciamento social entre avós e netos. Mas, por que se manteve essa separação, se continuou a produzir esse corte intergeracional, aquando do regresso ao “novo normal”?

Foi isso mesmo o que aconteceu. Após a pandemia, as escolas regressaram à mesmice. Crianças de tenra idade eram depositadas pelos pais em creches e jardins de infância. Os avós eram depositados pelos filhos em asilos, ou aprisionados em domicílios, estupidificando-se em frente à televisão.

Diz-se que o nível moral da humanidade pode ser medido pelo tratamento dado às crianças, aos velhos e aos animais. Naquele tempo, era negado às crianças o direito a uma escola onde pudessem aprender, sem deixarem de ser pessoas felizes. Muitos idosos eram deixados nas urgências dos hospitais, quando se aproximava o tempo das férias. E, no início de cada Verão, cães e gatos eram abandonados em sítios ermos, tal como as pessoas.

As crianças, tal como os adultos, careciam de um olhar atento, amoroso, da palavra, da risada… de comunicar. O cordão umbilical da comunicação, o diálogo entre gerações era cortado precocemente. Se as crianças, assim como os adultos, comunicavam com quem estava disponível para comunicar, com a passagem do tempo, desistiam.

Como dissera o Pássaro Encantado, quando se fala com amor, cada palavra que se diz é uma revelação daquele que fala. O amigo Rubem não abdicava da sua fé, que lhe dizia não existir amor verdadeiro sem a palavra pura, sem o amor em ato. E Freire afirmou a necessidade de o professor amar o que fazia.

Não seria amor que tudo aceitasse passivamente, mas um Amor que denunciava e anunciava.  Amor e Coragem nos ajudavam a enfrentar, a superar o medo, nos forneciam ânimo para alimentar o sonho, para elaborar consciência crítica e destruir mitos, que deformavam a consciência e naturalizavam situações injustas.

Se Agostinho dizia ser doutorado em raiva, eu o entendia. Na prática, a raiva agostiniana era transmutada em Amor. O Mestre luso-brasileiro buscava harmonizar diferentes visões de mundo, amorosamente abraçar diferenças, usar de compaixão perante sentimentos humanos imbricados em medos e fúrias.

Na Ponte, havia um dispositivo pouco conhecido: o “lugar de estar sozinho”. Era um espaço onde estávamos a sós conosco. O nosso trabalho era prazeiroso, mas desgastante. Por vezes, pequenos incidentes provocavam cansaço, e se mostrava necessário o recolhimento.

No chão da escola, rodeado de crianças, como na solidão de um quarto de hotel, era frequente um fechar de olhos, para poder recuperar a serenidade, ir até ao infinito do que somos: o Amor. Fechava os olhos, para ver. Para me ver. Para desvendar o esconso interior magoado.

Como diria a Regina, agir por Amor, escutar, respeitar deveria ser algo natural. Mas, as escolas estavam acostumadas ao gradeado desrespeitoso, forçado a um silêncio artificial. A tirania imposta pela padronização se tornou “natural”.

Quando reli textinhos publicados nos idos de vinte, me apercebi de que a palavra mais utilizada era… Amor. Assim mesmo, com A maiúsculo.

Inconscientemente, eu adotara uma divisa: escolas eram pessoas, as pessoas eram frutos e sementes de Amor. Não foi por acaso, que encontrei no baú das velharias, um dos quadrinhos com que o amigo Celso nos brindava no WhatsApp da Uniprosa. Ei-lo:

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXII)

Paraibuna, 16 de agosto de 2041

No início da década de vinte, a Ana Júlia, o Wander, a Ana Paula, a Tina, o Michel, a Karen e um seleto conjunto de educadores ajudavam a Priscila co-prefeita e o André secretário a colocar Mogi no século XXI da educação.

Esses educadores e essas educadoras davam-nos lições de dignidade profissional, de cidadania. Mas, ao mesmo, assistíamos à praga do negacionismo, ao desvirtuamento da palavra “cidadania”. Vigorava a racionalidade economicista, prevaleciam valores individualistas, consumistas. Perdera-se a noção de coletividade. O termo “cidadania” era manipulado. O conceito era usado de modo parcial, ao sabor de ocultos ou claros interesses, omitindo-se o seu real fundamento.

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar, a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para os fazerem parentes do futuro. E, porque o Mia Couto o havia dito, não valia desistir. Educadores organizavam-se em núcleos de projeto, se assumiam cidadãos. E, se uma escola não mudava inteira, ao mesmo tempo, no respeito por quem decidia mudar, novas adesões surgiam.

Embora passassem por diferentes estágios de constituição, cada núcleo era um nodo de uma rede, com idênticos objetivos, mas autônomo, pois cada grupo humano reagia em diferentes ritmos à necessidade da paradigmática transição de miseráveis práticas para o exercício do direito à educação.

As etapas transformadoras eram vivenciadas num estatuto de participante ativo. Tomada consciência da precariedade do que chamávamos “ensinagem”, surgia a necessidade de entender como fazer diferente, se evidenciava que um projeto de mudança era ato coletivo. E que a autonomia cidadã resultava de um ato relacional, no ser autónomo-com-o-outro.

Existíamos porque o outro existia, e não sozinhos. A nossa liberdade não terminava onde começava a liberdade de outro alguém. A liberdade de alguém começava onde começava a liberdade do outro. Em equipe, defrontávamos momentos críticos de reelaboração da cultura pessoal e profissional. E, se nos aculturávamos através do exemplo e a aprendizagem acontecia por imitação, recordo uma situação de há muitos anos.

O presidente da assembleia era um mocinho muito autocentrado. Nas reuniões, ele somente dava a palavra aos amigos e não assumia responsabilidade coletiva, em situações que justificavam essa atitude. Foi criticado por muitos dos alunos que o elegeram. Reagiu, dizendo que se demitiria. Então, as crianças tomaram uma decisão surpreendente: decidiram que o presidente deveria continuar no cargo. Mas que a condução das reuniões deveria ser participada pelos restantes membros da mesa da assembleia, de modo a ajudar o presidente a aprender a respeitar os outros e a respeitar-se.

Ao longo daquele ano letivo, o presidente não foi demitido, mas viveu múltiplas situações de ajuda mútua. No final da última assembleia daquele ano, deitou discurso, agradecendo aos colegas a oportunidade de ter aprendido a ser solidário. Em linguagem de gente jovem, disse que não se importava de não ser o primeiro, “para que todos fossem os primeiros”.

Dizia-nos o mestre Pestalozzi que a educação moral não deve ser trazida de fora para dentro da criança, mas deve ser uma consequência natural de uma vivência moral. A compreensão e a aceitação do outro resulta de uma aprendizagem da verdade, na arte de conviver. Desde tenra idade, a solidariedade na solidariedade se aprendia. Não se educava para a cidadania. Se aprendia cidadania no exercício da cidadania, em contextos de liberdade responsável.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXX)

Pasárgada, em 14 de agosto de 2041

Remexendo o baú das quinquilharias pedagógicas, encontrei uma velha “pen drive”. Dentro dela, uma cartinha queixosa recebida de uma educadora. Tem data de 16 de agosto de 2021, de quando ainda vivíamos na “idade da pedra” da educação. Vo-la transcrevo.

“Caro amigo Zé,

Fiquei de enviar para você um e-mail com a tabela das grades com as páginas das apostilas e semanas que cada escola precisa cumprir. O que mais escutamos é que os professores estão atolados com os sete materiais didáticos, os simulados e a sondagem. E, quando falamos para as escolas que os materiais são sugeridos e não obrigatórios, todas as escolas falam o contrário. 

Temos quatro professores que estão dispostos a promover um novo modelo de escola. Outros seis professores ficaram curiosos, mas ainda se sentem receosos. Na equipe gestora, temos muita vontade em concretizar ações, para que a escola inove e possa ofertar um ensino que vá de encontro aos anseios e expectativas das crianças. Entretanto, uma coisa nos inquieta muito. Como assegurar que a equipe docente possa pensar sobre estas ações e estar disposta a executá-las, se o caminhar proposto pela Secretaria vem numa linha que diverge desta proposta?

Por exemplo, o uso obrigatório de materiais, que exigem muito tempo do ensino presencial e tem um cronograma extremamente justo, com a aplicação de simulados ao fim de cada bloco. O material não vai de encontro às necessidades educativas das crianças neste momento, muitos nem se alfabetizaram, outros tantos não conseguem compreender os conceitos, porque não os estudaram antes e aí se leva praticamente todo o momento presencial nesta demanda.

Na última reunião, foram apresentados os cronogramas de sondagem e nos foi noticiado que teremos em breve a Prova Brasil. No cronograma apresentado, somam-se as ações mencionadas no cronograma do material didático obrigatório, gerando ansiedade e preocupação ao professor, que terá de dar conta das aplicações e do lançamento destes resultados, para gerar os índices do município. Pensando nas crianças, imaginamos que ficarão assoberbadas, preenchendo avaliações e simulados, restando pouco para aprender efetivamente.

Assim, o que nos aflige é que fica difícil pensar em novas perspectivas, quando se tem uma gama de ações muito pontuais e com prazos estabelecidos para serem realizadas, de forma tão enxuta. Isso compromete não só a interação com a criança, como também a possibilidade de o professor pensar em fazer algo diferente, uma vez que estes se fixam aos prazos e se preocupa com as consequências de não entregar o que a secretaria solicita.

Temos de fazer uso do material nas semanas assinaladas no cronograma e realizar os simulados nos dias estipulados. Gostaríamos de pedir orientações acerca de como proceder, porque é delicado motivar o novo, se ficarmos obrigados a manter ações deste porte, que ocupam quase que por completo a rotina docente. Os professores acabam apenas por executar e não encontram espaços para fazer diferente, ainda que desejem”.

Como vedes, há vinte anos, ainda havia secretarias que obrigavam os professores a aplicar provas. Já nesse tempo, se sabia que as provas eram precários instrumentos de avaliação, de elaboração complexa e de correção falível. A lei nos dizia que a avaliação deveria ser formativa, contínua e sistemática. Uma prova não era formativa. Também não era contínua, pois era periódica. Nem era sistemática. As secretarias da “idade da pedra” da educação, que impunham às escolas uma “avaliação” fundada na prova, agiam fora da lei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXI)

Brasília, 15 de agosto de 2041

Queridos netos,

Ando remexendo velhos baús, reencontrando papéis, macróbios compact disk, pen drive empoeiradas, restaurando boas e más memórias. A cartinha de hoje é reflexo dessa viagem ao passado.

Nas minhas deambulações por Brasília, ganhei inimigos, fiz amigos. Dos primeiros não falarei pois já nem recordo aqueles que apenas me mereceram compaixão. Entre os amigos, por agora, invocarei o Isaac. Poderia tentar descrever a sua pessoa, mas as palavras não conseguem traduzir a admiração que senti (e ainda sinto) por aquele extraordinário ser humano.

Muitos foram os dias em que, na sua casa, reuniu boa gente, incansáveis educadores em busca de solução para o “pesadelo chamado Brasil”. E, no distante agosto de 2021, isto escreveu:

“Vivemos tempos difíceis no Brasil, diria, dramáticos. A pandemia da Covid-19 nos atingiu como um grande Tsunami. Milhares de vidas foram ceifadas. A fome e o desemprego atingiram as classes mais desamparadas e pobres. A violência, especialmente contra as mulheres, é uma cena repetitiva no nosso cotidiano. O racismo e a intolerância prosperam.

Atritos, alguns fabricados, abalam a harmonia dos pilares da democracia. O embate entre os Poderes aponta para uma desagregação no país. A educação e a saúde em frangalhos. A desinformação constante é um grande aliado da ignorância (…) A educação pública de qualidade para todos e todas é um pré-requisito para termos um Brasil melhor. Lembremos aqui o pensamento de Anísio Teixeira: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara para as democracias. Essa máquina é a da escola pública”. Só teremos o Brasil de nossos sonhos se a educação básica ter como pilares, a ética, a solidariedade, a liberdade, a autonomia, o pensamento crítico, a competência e a responsabilidade social.

Vamos acordar para construir o Brasil do futuro. E nessa nova e brilhante alvorada é pertinente lembrar as palavras de Juscelino Kubitschek, gravadas e imortalizadas na Praça dos Três Poderes: “Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã o do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino”.

Em agosto do distante 2021, quisera ir até ao Rio e a Carnaíba, ajudar o André, a Hilda, a Cléo, a Bianca, a Ingrid, a Rosinha e outros maravilhosos educadores a criar condições de “construir o Brasil do futuro” anelado pelo amigo Isaac. Mas, a covid-19 continuava a fustigar o desgovernado povo brasileiro. Optei por uma nova viagem a Portugal. Solidariamente me fiz presente em lugares onde ressurgia o espírito inventivo de egrégios avós e onde a covid-19 recuava. No Brasil, a Jaqueline e a Rosemari secundavam a oportuna intervenção do Isaac:

“Estamos indignados com a fala do ministro: “a universidade é para poucos”. Se for consolidada, esta reforma sepultará a possibilidade de jovens de classes populares seguirem do ensino médio para o ensino superior, sobretudo das universidades públicas. O quadro é muito grave, é de menos educação. Dêem uma olhada na reforma, que a smed está apresentando. É de chorar no cantinho, não há anti depressivo que dê conta (…) Nossa indignação nos provoca úlcera. Não descobrimos o caminho ou as estratégias, para pararmos este trem descarrilhado. Os gritos retornam como eco de nossas próprias vozes”.

A indignação era o princípio de uma mudança, que aconteceria no ano seguinte.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXIX)

Paraibuna, 13 de agosto de 2041

Na Mogi do início da década de vinte, a Ana Júlia, a Ana Paula, a Tina, a Karen e outros devotados educadores davam-nos lições de cidadania. Mas, ao mesmo, assistíamos à praga do negacionismo, ao desvirtuamento da palavra “cidadania”. Vigorava a racionalidade economicista, prevaleciam valores individualistas, consumistas. Perdera-se a noção de coletividade. O termo “cidadania” era manipulado. O conceito era usado de modo parcial, ao sabor de ocultos ou claros interesses, omitindo-se o seu real fundamento.

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar, a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para os fazerem parentes do futuro. E, porque o Mia Couto o havia dito, não valia desistir. Tendo como referência uma sequência de tarefas adaptável a cada lugar, educadores organizavam-se em núcleos de projeto, se assumiam cidadãos. E, se uma escola não mudava inteira e ao mesmo tempo, no respeito por quem decidia mudar, novas e éticas adesões surgiam.

Embora passassem por diferentes estágios de constituição, cada núcleo era um nodo de uma rede, na partilha de uma mesma linguagem e idênticos objetivos. Os diferentes estágios resultavam do diagnóstico local e da impossibilidade de criar uma coerência exata das ações entre os núcleos, pois cada grupo humano reagia de modo diferente à necessidade de uma paradigmática transição.

As etapas de transformação eram vivenciadas num estatuto de participante ativo. Tomada consciência da precariedade do que chamávamos “ensinagem”, surgia a necessidade de entender como fazer diferente, se evidenciava que um projeto de mudança era ato coletivo. E que a autonomia cidadã resultava de um ato relacional, no ser autónomo-com-o-outro.

Ninguém seria autônomo sozinho. Existíamos porque o outro existia. A nossa liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro. A nossa liberdade começava onde começava a liberdade do outro. Em equipe, defrontávamos momentos críticos de reelaboração da cultura pessoal e profissional. E, se nos aculturávamos através do exemplo e a aprendizagem acontecia por imitação, recordo uma situação de há muitos anos.

O presidente da assembleia era um mocinho muito autocentrado. Nas reuniões, ele somente dava a palavra aos amigos e não assumia responsabilidade coletiva, em situações que justificavam essa atitude. Foi criticado por muitos dos alunos que o elegeram. Reagiu, dizendo que se demitiria. Então, as crianças tomaram uma decisão surpreendente: decidiram que o presidente deveria continuar no cargo. Mas que a condução das reuniões deveria ser participada pelos restantes membros da mesa da assembleia, de modo a ajudar o presidente a aprender a respeitar os outros e a respeitar-se.

Ao longo daquele ano letivo, o presidente não foi demitido, mas viveu múltiplas situações de ajuda mútua. No final da última assembleia daquele ano, deitou discurso, agradecendo aos colegas a oportunidade de ter aprendido a ser solidário. Em linguagem de gente jovem, disse que não se importava de não ser o primeiro, “para que todos fossem os primeiros”.

Dizia-nos o mestre Pestalozzi que a educação moral não deve ser trazida de fora para dentro da criança, mas deve ser uma consequência natural de uma vivência moral. A compreensão e a aceitação do outro resulta de uma aprendizagem da verdade, na arte de conviver. Desde tenra idade, a solidariedade na solidariedade se aprendia. Não se educava para a cidadania. Se aprendia cidadania no exercício da cidadania, em contextos de liberdade responsável.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXVIII)

Alphaville (SP), 12 de agosto de 2041

A primeira palestra do dia estava prestes a começar. Agitado, o organizador do congresso a mim se dirigiu:

“Professor, me ajude! O seu colega António Nóvoa vai fazer a palestra de abertura. E disse que quer um rato. Para que é que ele quer um rato? A palestra vai começar e eu não sei o que fazer. Me ajude, por favor!”

Apaziguei-o. O rato que o António pedia era… o “mousse” do computador.

Portugal evitava o recurso a anglicanismos. Tão logo a informática se apropriou do quotidiano luso, os portugueses ciosos da sua língua pátria criaram termos como “navegador” e “correio eletrônico”. Mais tarde, cederiam perante o uso e abuso de termos como “browser”, ou “e-mail”.

No início do século, era costume abrasileirar estrangeirismos. “Deletava-se” a página doze, “xerocava-se” a carta, “printava-se” o documento.

Convidavam-me para participar num “webinár” (“web based seminar”), quando, antes, me solicitavam a participação num seminário em rede. Em amenas conversas, escutava “dar o start”, sem que algo começasse, na nossa bela e rica língua materna. E, quando o meu “co-host” (coanfitrião) afirmava desenvolver o “mindset”, não fazia outra coisa que não fosse desenvolver “mentalidade”.

O meu amigo Tião resolveu fazer algumas alterações no programa de um congresso. Apagou o termo “insight”, trocou-o por “clarão”. Apagou a expressão “coffee break” e escreveu “paradinha para café”. E não trocou a expressão “brain storming” por “tempestade cerebral” – optou pelo mineirês “toró de palpite”.

Nos idos de vinte, a utilização de estrangeirismos chegara ao absurdo. Ao invés de publicar se “postava um “post”. Utilizava-se a palavra “workshop”, quando se designava uma oficina. O processo de retroalimentação era cognominado de “feedback”. E nem falo de pragas como as “call for papers”, os CEO, as start-up.

Por essa altura, recebia mensagens deste tipo:

“Professor, faça-me uma live”. 

“Quando poderá fazer uma talk”?” 

“Boa Noite! Podemos soltar o card para amanhã?”

Não se poderia substituir “power point” por “projeção de diapositivos”? E por que se falava “data show”, quando se poderia dizer “mostra de dados”?

Trocava-se o trabalho em rede por “networking”. E havia quem achasse falar inglês quando fazia “home office”. Em língua inglesa a isso se chamava “remote work” e, em bom português, poderia ser chamado “trabalho de (ou em) casa”.

A incursão desavisada em outras línguas era traiçoeira. A galera que comia “hot dog” e gostava dos “Bítous” não sabia que Beatles se deveria falar igualzinho ao que se escrevia. Os “motoboys” diziam fazer “delivery”, quando faziam entregas domiciliares. E, num dístico pendurado na porta de um restaurante, eu li: “SELF SERVICE A LA CARTE”. Uma língua se transforma, se transmuta… mas não se deve abusar.

Num congresso, na Inglaterra dos anos noventa, um inglês me invectivou:

“Why don’t you talk in English like the other speakers?”

Perguntou-me se sabia que a língua oficial do evento era o inglês. Respeitosamente, respondi:

“Dear friend, falarei inglês na Inglaterra, quando você falar português em Portugal”.

Naquele tempo, já sabíamos que as línguas não eram apenas sistemas de comunicação, mas de construção de realidade, como dissera Wittgenstein:

“Os limites da minha língua significam os limites do meu mundo”. 

Uma sutil neocolonização linguística estava em curso. Esqueceramos que a linguagem produzia e reproduzia… cultura. E até cheguei a pensar que, pelo caminho de um anglo-saxônico monolingualismo, talvez viéssemos a precisar de falar… mandarim.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXVII)

Arujá, 11 de agosto de 2041

No agosto de há vinte anos, chegavam-nos reações aos encontros nas escolas de Mogi. Eram mensagens-testemunhos de educadores generosos e éticos. Aqui vos deixo, um exemplo.

“Aqui é a professora Beatriz. Será que posso te contar uma pequena experiência que tive essa semana? 

Depois da roda de conversa, que tivemos com o professor Pacheco, eu não consegui mais olhar os meus alunos com os mesmos olhos, não consegui olhar o meu tempo com eles da mesma forma, então decidi mudar um pouquinho. 

Perguntei a um grupo de seis alunos o que gostariam de aprender, e eles tiveram uma reação muito interessante, ficaram surpreendidos. Aos poucos, uma aluna se soltou e disse que gostaria de entender melhor a vida do coelho. Uma outra disse que também gostaria de entender isso. Elas mesmas disseram:

Podemos estudar juntas?

Aconteceu o mesmo com outros alunos, com temas como espaço e futebol. 

Organizamos em uma folha as dúvidas que tinham e combinamos de usarmos a sala de informática para nos ajudar. No dia seguinte, a primeira coisa que eles falaram foi: 

Quando vamos estudar na sala de informática?

Na sala de informática, outra surpresa me esperava. Eles se organizaram e começaram a pesquisa sem precisar de muitas ajudas. Tenho três alunos que não gostam de ler e que passaram uma hora fazendo leitura e anotando as informações mais importantes.

Depois de encerrado o tempo que tínhamos naquele espaço, eles pediram para compartilhar o que descobriram. Fizemos a roda de conversa e eles compartilharam. Os outros grupos levantaram novas questões sobre os temas e combinamos de pesquisar mais. 

Ontem, nosso último dia de aula presencial da semana, eles sugeriram que, no tempo que estivessem em casa, iriam pesquisar mais e preparar uma apresentação, que fariam quando retornassem.

Fiquei imensamente feliz e, também, surpreendida com a empolgação que ficaram. Hoje, recebi algumas mensagens de algumas mães dizendo que os alunos estão animados e chamando-as para participar desse projeto, que criaram. 

Sei que isso foi 1% do que ainda temos para fazer na nossa escola, mas sinto que teremos muito sucesso”.

Enquanto isso, no município vizinho, em Arujá, o meu amigo Marcos porfiava para que a secretaria de educação acordasse para a necessidade urgente de seguir o exemplo de Mogi. Muito aprendi com esse extraordinário ser humano. Dele colhi ensinamento em Maracajaú e outros lugares para onde a sua generosidade o levara.

O exemplo do Marcos, da Tina e de outros companheiros de jornada foram para mim referência de uma nova visão de mundo e de lealdade a princípios. Quando o dom do desapego me permitiu passar da ribalta para os bastidores da mudança, foram eles que asseguraram a continuidade dos projetos. Foram eles os obreiros de uma nova educação.

No Rio Grande do Sul, a minha amiga Jaqueline não se cansava de zurzir naqueles que, através de “malabarismos pedagógicos e invencionices curriculares”, perenizavam um modelo educacional causador de desigualdade:

“A pobreza e a miséria em que vivem milhares de crianças no RS e no BRASIL, antes e durante a pandemia, são diretamente responsáveis pelas descontinuidades, reprovações, evasões que vivem ao longo da sua vida escolar. Fôssemos uma sociedade equilibrada, as cenas de desalento, mostradas hoje na Tv local, não existiriam. Frio no inverno, calor excessivo no verão, poeira e barro, fome, falta do que é básico: banho, roupa e cama decentes, três refeições diárias, determinam, sim, trajetórias precárias na escola e na vida. Não existe pedagogia salvacionista. Quem vende isto mente”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXVI)

Bertioga, 10 de julho de 2041

Quando, em Mogi, se iniciou o projeto de criação de protótipos de comunidade de aprendizagem, a educação passou a acontecer em espaços de cultura, ciência e arte, na consideração de que todo o conhecimento (erudito, ou popular) era válido e de que os saberes não eram propriedade individual, ou de exclusiva produção numa escola-edifício.

Era valorizada a integração comunitária da escola, entendida esta como nodo de uma rede de aprendizagem propiciadora de desenvolvimento local, espaço em que se fomentava a liberdade de pensamento e de expressão, onde todos eram estimulados para a descoberta, para o questionamento e a resolução de problemas, onde o sucesso de cada um era reflexo do sucesso de todos.

Era incentivada a participação das comunidades nos órgãos de direção das escolas e na gestão de projetos, nomeadamente, através de mapeamentos de lugares e pessoas com potencial educativo.

Desenterrei memórias das aprendizagens feitas em Mogi. Entre elas avulta a passagem por caminhos dos limites de Mogi e Bertioga. Lembro-me de ter visitado um santuário, que dava pelo nome de “ecofuturo”. Lembro-me de ter compreendido a metáfora da samambaia e de o amigo Wander responder a perguntas com a sugestão de fazermos silêncio. Momento único, sublime, de plena comunhão.

Dali, fomos para uma escola ambiental, meter conversa com professoras de escolas rurais. Por muito me terem ensinado, elas serão merecedoras de uma cartinha inteira. Por agora, apenas reflexões avulsas sobre o tempo em que Mogi decidiu mudar.

Nesse tempo, calhou de eu coordenar uma pesquisa sobre indicadores de boa qualidade da educação. Partilho convosco algumas das conclusões, pois me pedistes que o fizesse, apesar de não entender por que vos interessa tal assunto. Cá vai…

Nessa pesquisa, ficou evidenciada a impossibilidade de se promover educação integral, sendo referida a dificuldade do professor na relação interpessoal e a falta de uma formação adequada para lidar com conflitos. E, sem surpresa, constatei que a maioria dos professores nunca lera o seu projeto político-pedagógico.

Me disseram desconhecer o teor de tal documento. E aqueles que disseram tê-lo lido “já não se lembravam do que nele dizia”. Mais de oitenta por cento dos professores não souberam dizer qual era a matriz axiológica do projeto, ou o que ele propunha como critérios de avaliação. E não eram claros os processos utilizados e os resultados obtidos, que subsidiassem a melhoria da qualidade das práticas.

Ficou evidente que a falta de autonomia financeira e administrativa, bem como a prevalência de procedimentos burocráticos, consumiam tempo em demasia, sendo limitadora do bom desenvolvimento dos projetos. Questionados sobre a possibilidade de se assumirem em autonomia, todos os professores inquiridos manifestaram desconhecimento da lei e dos procedimentos que possibilitariam a celebração de um “termo”.

Havia escolas em processo de reformulação dos seus projetos, mas os encarregados da revisão não souberam dizer quais eram as suas finalidades e objetivos. Os PP-P faziam referência a valores como: autonomia, responsabilidade, solidariedade, respeito. Mas não foram identificadas quaisquer atividades, metodologias, ou dispositivos de prática de tais valores. Aliás, foram observadas práticas contraditórias com a matriz axiológica dos projetos.

A precária situação que vos descrevo modificou-se, substancialmente, na década de vinte, em Mogi e em outros lugares, quando uma educação de novos tempos emergiu de tempos sombrios.

 

Por: José Pacheco

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