Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXCI)

Cabril, 26 de outubro de 2041

Como vos disse, era significativo o contraste existente entre o teor da regulamentação e a Lei de Bases. Eram visíveis as contradições. Embora o terceiro parágrafo do seu 48º artigo consagrasse o primado dos “critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”, a realidade contradizia o disposto na lei. 

Mercê do indigno dever de obediência hierárquica, o que prevalecia era a arbitrariedade administrativa. Um diretor de agrupamento recebia ordens de um superior hierárquico e, ainda que delas discordasse, as cumpria e fazia cumprir. A ordem seguia desse diretor para o diretor da escola. Ordens impostas verticalmente, sem qualquer fundamento em “critérios de natureza pedagógica e científica” eram, servilmente, aplicadas pelos professores em sala de aula. 

A administração e a gestão deveriam orientar-se “por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo”. Mas, durante muitos anos, a norma não foi acatada. Regulamentos manifestamente autoritários (e ilegais!) comprometeram a mudança e a inovação. Hoje, poderei mesmo afirmar ter sido criminosa tal prática, pois, ainda que indiretamente, contribuiu para condenar à ignorância milhares de seres humanos. A anacrónica situação se prolongou pelos idos de vinte, até que o lado saudável do sistema reagiu. 

Um “precedente jurídico” foi fonte de inspiração. Em 2004, um contrato de autonomia fora celebrado entre o estado e uma escola pública portuguesa. A Lei de Bases estabelecia que o funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino se orientasse “por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes. A Direção da Escola da Ponte foi entregue à comunidade, sem a figura tutelar de um diretor, favorecendo a “integração comunitária”.

As avaliações externas tinham comprovado a excelente qualidade do projeto. E a Ponte ganhara o direito de selecionar os seus professores, através de concurso universal, com parâmetros e critérios bem definidos. Os seus professores eram trabalhadores da educação ao serviço de um projeto, que uma comunidade adotara – a “fixação local” dos professores” era assegurada. 

Estes se assumiam integrados e autônomos. E, dado que a aprendizagem é antropofágica – não se aprendia aquilo que o outro dizia, mas o que o outro era – os professores eram exemplos para os alunos. Foi instalada uma assembleia. Quem visitava a Ponte e assistia a uma reunião dessa assembleia emocionava-se com a maturidade cívica das crianças. 

As leis não eram objetos perfeitos e a Lei de Bases não era exceção. Limitava a participação dos jovens nos órgãos de Direção: “A participação dos alunos (…) circunscreve-se ao ensino secundário”. Eu assistira a reuniões nesse nível de ensino e chegara à conclusão de que os jovens do “secundário” (e muitos deputados da Nação) beneficiariam de assistir às reuniões de jovens do “primário”.

Na linha de presunção de que as escolas deveriam fazer a “preparação para a cidadania” e não educar os jovens no exercício da cidadania, a lei considerava que apenas o “ensino superior” seria digno de beneficiar de autonomia científica e administrativa, acumulando a financeira. Não outorgando idêntico direito ao ensino considerado “inferior”, a lei o condenava a um estatuto de menoridade.

Como vedes, queridos netos, as normas estavam longe da perfeição. E, na racionalidade hierárquica, os professores do ensino “inferior” eram filhos de um Deus menor. 

 

Por: José Pacheco

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