Seladinha, 5 de novembro de 2041
No novembro de há vinte anos, quando estava de passagem por Portugal, me convidaram para um evento, em Faro. Aproveitei para mitigar saudades dos netos. Embora por breves momento, convivi com a Alice e o Marcos. Pusemos as novidades em dia. Com todo o cuidado que a pandemia ainda inspirava, conversamos sobre as suas aventuras universitárias. Contaram-me alguns despropósitos em que a universidade era fértil, e que foram o mote da intervenção que faria no auditório de uma biblioteca pública.
Escutei, atenta e respeitosamente, as intervenções dos meus companheiros de mesa. Eram funcionários do ministério da educação. Os seus discursos, ornamentados de belas palavras, eram de uma vacuidade impressionante. Senti-me regressado aos anos setenta. Nada havia mudado.
Pensava na Ponte e me perguntava:
Por onde começar? Por que, ao cabo de cinquenta anos, não conseguimos que inovadoras iniciativas tivessem concretude? Com a autonomia conquistada, como seria vista a Escola da Ponte pelo sistema educacional português? As demais escolas reconheciam a Ponte como um projeto de sucesso, que atravessara continentes?
A Ponte fora a primeira escola pública a assinar um contrato de autonomia com o Ministério da Educação, quando ainda não havia experiências nem modelos. O modelo foi sendo construído ao longo de trinta anos. Um período de tempo em que a Ponte concretizara mudanças e inovações. As mesmas que os funcionários do ministério diziam querer que acontecessem nas escolas dos idos de vinte.
Em Portugal, a nossa escola permanecia quase invisível. Ainda bem, porque a visibilidade social que ela ganhara a fez perder tranquilidade. Eram muitos os visitantes, que, diariamente, chamavam a atenção e, ao mesmo tempo, atraiam inveja. A fama da Ponte se espalhara, mas a maioria dos portugueses não sabia da existência dessa escola, escondida num cantinho de Entre-Douro-e-Minho. Uma cortina de silêncio a rodeava, enquanto ela buscava encontrar uma gramática da sobrevivência.
Havia provérbio que dizia que “santos da porta não faziam milagres”. Restava conformáramo-nos, embora soubéssemos que as escolas poderiam ser espaços de exercício de uma fraternidade redentora. Nas escolas que ainda havia, o leão ainda não aprendera a pastar com o cordeiro. E, quando professores ousavam agir, era frequente ver que o homem ainda era o lobo do homem.
A Ponte ia criando raízes em lugares onde eu nem sonhava haver terra fértil. De um desses lugares, a Aurora enviou-me um e-mail:
“Escutei a sua palestra. Não entendo como pode ir para o estrangeiro, sabendo que precisamos desesperadamente de ajuda. Em Portugal, a Ponte também é respeitada pelas pessoas que estão verdadeiramente empenhadas na educação dos seus filhos. O que eu mais gostaria de ensinar aos meus filhos é que o infinito está onde nós quisermos.”
O Wilson e a Aurora não eram professores. O Wilson morava em Natal, no Brasil. Era pai da Stella, que foi aluna da Escola da Ponte. A Aurora morava na cidade do Porto, em Portugal. Era mãe de duas crianças e tentava ajudar os professores da escola dos seus filhos, na busca de caminhos novos.
Havia pais e pais. Havia os que reforçam a mesmice e se aliavam a indivíduos sem escrúpulos, para destruírem projetos. E havia aqueles que apoiavam educadores, que arriscavam rupturas e interpelavam inércias.
Saí daquele encontro acometido de um estranho sentimento. Não sei bem como o definir. Talvez de frustração. O ministério insistia em reformas reformadas. Os professores eram coniventes com esse faz-de-conta.
Por: José Pacheco
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