Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXCIX)

Malhada do Rei, 4 de novembro de 2041

Nos idos de vinte, diziam os estudos que, à entrada para a escola, muitas crianças já não faziam perguntas. No final da educação básica, a cifra caía para menos de dez por cento. E, nas universidades, quantos alunos faziam perguntas? Eram raros os jovens que interrogavam, ou se interrogavam.

Fui professor primário. Quando entrava na sala de aula, dizia:

Bom dia, meus amigos!”

Respondiam:

Bom dia, professor!”

Quando trabalhei na Universidade, entrava na sala, fazendo idêntica saudação: “Bom dia, meus amigos!”

Em silêncio, os jovens universitários escreviam nos seus cadernos: “Bom dia, meus amigos”.

Quem os havia feito assim? Quantos professores se interrogavam sobre as origens desse drama?

Dizia João Guimarães Rosa que “vivendo, se aprende; mas o que se aprende mais, é só a fazer outras maiores perguntas”. E um texto do Rubem falava de perguntas das crianças da Ponte. A lista era longa, de mais de trinta anos: “Professor, como posso tirar carrapatos do meu cachorro, sem o ferir?

Por que é que o meu vizinho está velhinho e passa fome?

Por que é que nós existimos?

Um sem-fim de interrogações. Porque as crianças da Ponte podiam interrogar:

“Professor, porque foi que os americanos invadiram o Iraque?”

“Por que me perguntas isso? – respondia e lá íamos à descoberta do berço das civilizações, dos povos que habitaram entre o Tigre e o Eufrates, da cultura de sumérios e babilónicos, reconhecendo a nossa cultura no estudo de outras culturas.

“Professor, é verdade que as árvores respiram pelas folhas?”

“Por que me perguntas isso?

O Miguel acrescentou:

“Estive a estudar a árvore que dá folhas para o bicho-da-seda. E a observar a caixinha dos bichinhos. Quando eles saíram dos ovinhos, a amoreira deitou as primeiras folhas. Quando os bichinhos morreram, a árvore deixou cair as folhas, ficou despidinha. Então, se é verdade que as árvores respiram pelas folhas, diz-me, professor, por onde respira a amoreira no tempo em que não tem folhas.

A interrogação do Miguel foi pretexto para uma atitude de mediação. Conduzi-o à descoberta da rota da seda, ao estudo da China, dos tipos de folha, até à descoberta (partilhada por ambos) do modo como as árvores respiravam, quando não tinham folhas.

“Professor, o cristal de quartzo, que está na bateria do meu relógio, é um ser vivo, ou é um ser não-vivo?”

Quando respondi à pergunta com outra pergunta (Por que me perguntas isso?), a criança disse-me que tinha lido numa cartilha: “ser vivo é aquele que nasce, cresce, se reproduz e morre”. Argumentou:

“Pensa um pouco, professor! Se um ser vivo é isso, eu não sou um ser vivo, porque ainda não me reproduzi, nem morri. E uma pedra é um ser não-vivo? O quartzo nasceu quando a Terra nasceu. Não é? Quando visitei o museu, eu vi cristais pequeninos a nascer de um cristal mais crescido. E, quando a pilha do meu relógio acabar, é porque o cristal morreu. Então, professor, o quartzo é um ser vivo, ou não-vivo?

E eu, que nunca tinha pensado nisso, por ter andado em escolas onde não era permitido perguntar, aprendi que o conceito de ser vivo, aquele que me tinham “ensinado”, estava errado. Aliás, aprendi mais com as perguntas dos meus alunos do que em muitos anos de aluno.

Quase tudo que fui forçado a acumular cognitivamente, carecia de significado e foi esquecido. Os hectómetros quadrados e os dígrafos não me fizeram mais sábio nem mais feliz. E, se é comum dizer-se que só se escolhe ser professor por amor ou por vingança, eu quase reconheço ter sido professor por vingança – não quis que as crianças futuras fossem privadas do direito de questionar.

Por: José Pacheco

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