Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXV)

Niterói, 4 de dezembro de 2041

Estávamos no início do século, eu e a Susana, conversando sobre a “escola de uma nota só”, que só recebia alunos que tocassem a escala de dó, porque os seus professores só entendiam quem cantasse em coro e no mesmo tom. 

Essa escola do início do nosso século não conseguia entender quem aprendera música na rua, ou não aprendesse música alguma. Felizmente, alguns professores já aprendiam a ouvir diferentes melodias e, sensatamente, elaboravam outros sons. 

O vosso avô isso escrevia, enquanto passeava com o Rubem por escolas do Nordeste, em terras onde a minha amiga Susana cuidava daqueles que, sendo considerados “especiais”, eram submetidos a uma educação excludente. Dizia a Susana que a escola não estava preparada para atender as crianças consideradas “normais” e muito menos estava para cuidar de “pessoas com sinais de diferença”:

“Queremos uma escola onde afinados e desafinados façam parte da mesma orquestra. Acreditamos que todas as crianças têm o direito de crescer em ambientes livres, juntas, independentemente de raça, credo ou capacidade intelectual. Queremos uma escola preparada para ouvir todas as músicas de variados tons. É nela que realizamos nosso exercício de cidadania, onde vivenciamos e incorporamos os valores sociais e morais, através da cooperação entre os indivíduos. Onde, de facto, a afinação da orquestra acontece. E, como já dizia o poeta, “no peito dos desafinados também bate um coração”.   

Essa sensível mensagem foi escrita por mãos trémulas de uma mulher às vésperas da morte e terminava assim: 

“Um grande beijo e toda a paz para você. Nos veremos, em janeiro”. 

“Nos veremos”, disse a Susana. Mas não mais nos voltaríamos a ver. Decorridos dois meses, esse frágil beija-flor iria deixar o nosso mundo mais pobre pela sua ausência. A Susana soube ocultar a doença que a condenava a partir demasiado cedo. Até ao fim, pôs entusiasmo em tudo o que fazia. Até ao fim, buscou a “escola policromática” a que se referiu na interpelação que me fez no decurso de uma conferência.  

No final dessa “fala” (como chamam às conferências no Brasil) que o teu avô fez sobre a escola das aves, disse-me que havia reparado no modo peculiar com que eu me despedia das pessoas: “Até logo”! 

Sublinhou que um “até logo” tanto poderia significar que nos voltaríamos a encontrar mais logo, nesse mesmo dia, ou que nos encontraríamos mais tarde… ou na eternidade.  Sentindo aproximar-se o tempo de partir, a Susana vivia intensamente aquela despedida, como se fosse a derradeira. Após um longo silêncio, de um olhar de dizer e não dizer, fitou-me longamente e repetiu a saudação: 

“Até logo!” 

Que distraído eu estava! Absorto nas coisas que consideramos importantes, ignorante do drama, respondi, natural e laconicamente: 

“Até logo!” 

Numa das cartas, que te enviei – lembras-te, Alice? – te descrevia humanos seres, que viviam como os pássaros:

“De tão belos, espalhavam em seu redor um doce perfume que os resgatava da lei da morte, uma fragrância, que ficava a pairar sobre a terra dos pássaros, muito para além do tempo de viver”.

E te falava da Susana, que partira discretamente, numa migração sem regresso. Por ter vivido em harmonia com a respiração dos pássaros, habitava a grande catedral do espírito. As notas da sua escala em arco-íris, harmoniosamente se subdividiram em meios e quartos de tom. Multiplicaram-se. Da claridade da sua alma transmigrada partiram raios de luz em todas as direções, num S.O.S. captado por corações puros de pássaros disponíveis para entoar novas melodias e interrogar as “escolas de uma nota só”.   

 

Por: José Pacheco

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