Cabanas de Tavira, 15 de dezembro de 2041
Neste mesmo dia, mas no distante 2021, acontecia o último dos encontros das “turmas-piloto”. Dali em diante e até meados de 2023, o vosso avô iria acompanhar projetos saídos de uma longa conversa virtual dos idos de vinte. Prestes a entrar no último dos quatro anos de um tempo-pesadelo, nada poderia continuar como antes.
De tempos pandêmicos, três subsistemas sociais deveriam sair alterados: o subsistema político, que demonstrara total inépcia na gestão de crises humanitárias; o econômico, que não mais poderia manter-se predatório; e o educacional, que estava na base de ambos – durante a pandemia, muita gente morrera, porque as escolas da ensinagem nem sequer tinham ensinado a lavar as mãos.
No início do distante 2022, as sequelas das crises política, econômica, educacional e, sobretudo, sanitária estavam à vista. Conscientes da gravidade da situação social e escolar, centenas de educadores delineavam novos rumos para a educação, adotando a proposta de Darcy de integrar três dimensões de projeto: a educação, a saúde e a cultura.
No distante 2021, a saúde pública passara de precária para trágica. A fome assolava milhares de famílias brasileiras abaixo do limiar da miséria. As mais vulneráveis sobreviviam garimpando restos em caminhões de lixo, procurando ossos descartados.
Uma pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional concluía que 19 milhões de brasileiros passavam fome e mais de metade da população apresentava algum nível de insegurança alimentar. O custo da “cesta básica” era o dobro, ou o triplo da parcela média do Auxílio Brasil, que fora anunciada pelo governo. Era deplorável a situação vivida num Brasil, que aprendi a amar e que me atraía para memórias, que eu recusava. Explico.
Nos idos de oitenta, um sociólogo amigo facultava-me o acesso às teses de doutoramento, que ele havia orientado. Passei longas horas no seu gabinete da faculdade, lendo e relendo, tirando notas, aprendendo. Até que, certo dia, deparei com uma tese sobre a fome, que assolara a minha cidade, durante a ditadura de Salazar.
Enquanto lia a tese, não conseguia conter a indignação e o riso, ao ponto de o Steve me interpelar:
“Por que ris?”
“Porque o que aqui está escrito não corresponde à realidade. E as conclusões estão erradas.”
Desagradado, o meu amigo reagiu, afirmando a boa qualidade da tese. E eu acrescentei:
“Este doutor nunca entrou na comunidade que estudou.”
“Como sabes?” – replicou.
“Porque eu nasci e morei na “Ilha dos Tigres”. Lá, não entrava polícia, nem ambulância, quanto mais alguém que não sabe o que é ter fome!”
Foi grande a surpresa do meu amigo. E perguntou:
“Zé, para saber o que é fome, é preciso passar fome?”
“Não é preciso. Mas… ajuda.”
Nos difíceis idos de vinte, eu sabia o que sentia quem passava um dia sem comida e sem saber se, no dia seguinte, alcançaria alimento.
Recordemos palavras de Saramago:
“Ninguém assume suas responsabilidades, muito menos os governos, porque não sabem, porque não podem, porque não querem, ou porque isso não lhes é permitido por aqueles que realmente governam o mundo: as grandes empresas multinacionais, que detêm todo o poder. Não podemos esperar que os governos façam o que não fizeram. Que nós mesmos façamos com que nossa voz seja ouvida, com a mesma ênfase com que, até o momento, temos exigido: o respeito aos direitos humanos.
Tornemo-nos responsáveis por nossas obrigações como cidadãos, sejamos cidadãos, e o mundo talvez possa ficar um pouquinho melhor. Assumamos as responsabilidades que nos cabem.”
Por: José Pacheco
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