Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXX)

Póvoa de Varzim, 22 de janeiro de 2042

O amigo Nóvoa havia dito que, pela via de reformas reformadas, tudo continuaria igual. Mas, os porque nãos, que agiam nos bastidores de instituições tão caducas como intelectual e moralmente corruptas, alegavam que as mudanças propostas “não eram oportunas”, que “não era o momento adequado”, que os projetos inovadores “eram mero romantismo”. 

Essas cínicas criaturas foram objeto de uma canção dos “Deolinda”, um grupo musical dos idos de vinte. Numa das suas canções, assim parodiavam as atitudes dos porquenãos do livro da Alice:

“Agora não, que é hora do almoço / Agora não, que é hora do jantar / Agora não, que eu acho que não posso / Agora não, dizem que vai chover / Agora não, que falta um impresso Agora não, que o meu pai não quer”.

Mas essa canção terminava no modo afirmativo:

“Agora sim, há fé neste querer / Agora sim, só vejo gente boa / Agora sim, damos a volta a isto / Agora sim, eu sinto a união / Vamos em frente, e é esta a direção”.

Muitos anos antes, contei aos meus netos estórias, que muitos olhos recusaram ler. Olhos viciados perderam dons, mas os olhos de criança ficavam suspensos das reticências que eu semeava para que aprendesse a lidar com a perfídia dos porquenãos. 

Um artigo de jornal despertou um recanto da memória e me alertou para mais uma perversidade, que os porquenãos engendravam. Eram tantos, que, por norma, resistia à tentação de comentar. Mas, dessa vez, não resisti a partilhar com o meu neto uma reflexão. Logo deparei com uma dificuldade: os seres humanos de tenra idade não possuíam a capacidade de digerir absurdos. Outra solução não me restou, se não a de transformar a reflexão em estória. Contei ao Marcos que, in illo tempore…

… “Era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. Tive de explicar ao meu neto o que era uma “turma”. A cada olhar de estupefacção do Marcos, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de o Marcos perder o fio à meada. Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o semblante incrédulo do meu neto derrotava a minha argumentação, pelo que me socorria da expressão in illo tempore, para o tranquilizar, dando a entender que os factos narrados já não sucederiam nos dias de hoje. 

Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como é possível explicar-lhe que professores dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam?”

Fiz uma pausa na minha narrativa, para dar tempo ao meu neto de respirar fundo e recuperar da perplexidade. Li-lhe uma frase extraída do “Emílio” (de Rosseau): “Tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”. Depois, para o sossegar, disse-lhe que o Rosseau não tinha toda a razão. Que seria possível reinventar a Escola, porque nem era obra de Deus, mas do Diabo, como defendia um senhor chamado Ferrière. 

In illo tempore, para sublimar a impaciência que conduz ao desespero, um avô brincava com os absurdos. E sublinhava insistente a ancestralidade dos factos que ia narrando ao seu neto, sempre que pressentia a sua virginal perturbação. 

 

Por: José Pacheco

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