Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXIV)

Marvila, 26 de janeiro de 2042

Lá pelo início da década de vinte, se estou bem recordado, em Lisboa, nascia uma universidade popular e comunitária. A “Pluriversidade Comunitária” era uma “utopia coletiva” tornada realidade por iniciativa de moradores de bairros de vida difícil – “desfavorecidos”, como se dizia – e por académicos. Partilhavam saberes, partindo do princípio de que, embora mantivesse o monopólio de creditação, a academia deixara de deter o monopólio do saber.

Na comunidade, não havia alunos, havia aprendentes. Nem aulas, mas sessões de conhecimento partilhado. Não havia salas ou lugar fixo para aprender. 

“Pode acontecer em qualquer lado, até na rua. E os professores serão membros da comunidade, vizinhos”. 

Não era apenas uma nova escola, mas um novo tipo de escola, oposta à ideia da “(uni)formização” do saber. Nascia do e para o conhecimento cívico e voluntário, descentralizando o saber que, normalmente, ficava cativo da academia. Pretendia-se fazer da educação mais um meio de resolução de problemas, provando que a experiência de vida poderia valer tanto ou mais do que um diploma.

A ideia já levava anos na cabeça do professor Rogério: 

“Sempre me senti insatisfeito por ser um mero académico. Via os meus colegas presos aos computadores, sem sair do gabinete. Eu nunca fui assim. Temos que estar ao serviço da comunidade. É só assim que sei trabalhar.”

O Joaquim cigano desafogava a sua voz:

“Chegamos a um ponto em que deixámos de nos importar em reivindicar qualquer coisa, porque a nossa voz nunca é ouvida”. 

Apontou uma lista de mudanças necessárias no seio das comunidades, para mudar a sua sina, mas havia uma mudança prioritária: 

“Deve começar nas escolas, nas crianças, na educação. Antigamente, ouvia-se dizer em escolas de algumas aldeias, quando a criança não queria comer a sopa: ‘Olha que vem aí o cigano e leva-te’. Fico triste. Não somos como nos pintam, eu não sou. Gostava que se começasse pela educação”.

Pelo menos uma vez por mês, abria-se espaço à discussão de um tema escolhido pela comunidade como importante para ela própria: saúde mental, arte, impacto das alterações climáticas nos bairros… e o saber saltava para um podcast, em parceria com uma rádio local.

Havia uma Assembleia Comunitária e um “conselho científico” constituído por onze mulheres e onze homens. Metade deles eram mestres e doutores. 

“Nomeadamente, académicos, para não cortar esta ligação à academia, mas não de gabinete” – dizia o Rogério. 

A outra metade era feita de pessoas de grupos comunitários, algumas só com a “quarta classe”, mas reconhecidas pelos seus pares pela sua formação experiencial e imenso saber.

Reparo que o recorte de jornal de onde retirei estes extratos tem a data de 24 de janeiro de 2022. Portugal e a Europa iniciavam um caminho aberto, muitos anos antes, no Peru, na Argentina e no Chile, países-berços das universidades populares. Na Argentina de 1918, o movimento dos estudantes da Universidade Nacional de Córdova reivindicava, por exemplo, o direito universal ao ensino superior, sem concurso, sem vestibular ou enem. 

A criação do que foi a Pluriversidade fora uma ideia peregrina alimentada pelo professor Rogério. Até já tinha proposto que nela houvesse “professores sem formação “superior”, ou nenhuma”. 

A resposta da universidade fora sempre negativa:

“Não ia ao encontro dos cânones da universidade”.

O Rogério temia que a academia viesse, gradualmente, a perder o valor que poderia oferecer às pessoas, que dela necessitavam:

“A universidade arrisca-se, neste momento, a tornar-se uma coisa inútil”.

 

Por: José Pacheco

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