Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXVII)

Flamengo, 29 de janeiro de 2042

Isto de ser velho não é tarefa fácil. Não há livro de instruções de aprender a envelhecer. E, num tempo em que não se pode perder tempo, gasta-se tempo a procurar o que se esquece. Hoje, esqueci o lugar onde guardei o remédio da ciática (espero que não seja Alzheimer…). Enquanto o procurava, achei um livrinho com o título “Quando for grande, quero ir à Primavera”. Escrevi-o em finais do século passado. Como o tempo passa!

Deitei os olhos ao prefácio escrito pelo Ademar. Ele encontrou no “naufrágio” a metáfora perfeita para descrever a crítica situação do sistema educacional desse tempo. Creio ser útil recuperar memórias:

“Na madrugada do naufrágio do Titanic, o quinteto liderado por Wallace Hartley só parou de tocar trinta minutos antes de o luxuoso navio se afundar. Os músicos sabiam que da sua actuação dependia, em larga medida, o controlo do pânico dos passageiros. 

Um dos sobreviventes do naufrágio contou mais tarde aos jornais que, ao mesmo tempo que as águas tumultuosas do oceano se insinuavam discretamente sobre os mais recônditos escaninhos do Titanic, preparando o golpe fatal, a orquestra ia tocando “músicas muito agradáveis” para distrair os condenados à morte, as cerca de mil e quinhentas pessoas (incluindo os tripulantes), que não teriam lugar nos botes salva-vidas e pereceriam daí a pouco afogadas. 

A última peça tocada pela banda (contou outro sobrevivente) foi o hino “Nearer My God to Thee”. Meia hora depois, os cinco músicos estavam mortos no fundo do oceano, talvez abraçados (uma pitada de lirismo fica sempre bem nestas evocações) aos seus maravilhosos instrumentos. Não era suposto que, na apertada agenda de salvação do Titanic, houvesse lugar para os artistas (que, de resto, viajavam em segunda classe)…

Como não vi o filme de James Cameron, não posso imaginar como a mais recente narrativa do naufrágio do Titanic tem vindo a passar, através do cinema, ao imaginário popular, quase noventa anos passados sobre a tragédia. Presumo que com doses elevadas de excitação romanesca (ia a escrever hollywoodesca). Mas os factos principais são conhecidos. A iminência da tragédia não desviou os músicos do cumprimento das suas obrigações profissionais. Eles tinham de tocar até à morte como sempre tinham tocado, desejavelmente, até que o navio – o mais seguro, inexpugnável e luxuoso dos transatlânticos jamais construídos – batesse no fundo do oceano. A música deveria anestesiar o pânico e o sofrimento dos que iam morrer… 

O naufrágio do Titanic, sabe-se hoje, estava desde o berço inscrito no seu patético destino de magnificência.  A sua tão apregoada insubmersibilidade não passava de um estúpido e perigoso slogan propagandístico. O aço com que foi construído, apurou-se muito mais tarde, era de baixíssima qualidade e vários erros grosseiros de concepção, que prenunciavam a catástrofe, tinham sido cometidos pelos projectistas. 

A estória do Titanic é uma das mais poderosas metáforas sobre o sem sentido da escola contemporânea. Também ela se acredita invulnerável e insubmersível; também ela, pressentindo o perigo, acelera o passo em direcção ao abismo; também ela navega com passageiros a mais e salva-vidas a menos; também ela parece ter sacrificado a segurança da viagem à ilusão efémera do espectáculo; também ela exige as maiores provas de abnegação e subserviência aos seus profissionais; também ela, em situação de catástrofe, só está preparada para deixar salvar os passageiros que viajam em primeira classe; também ela segue, confiante e autista, a mais suicida das rotas”.

 

Por: José Pacheco

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