Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCVII)

Aldeia do Meio, 3 de março de 2042

Escassos dias após a Alice nascer, “pássaros metálicos derrubaram torres altaneiras e semearam a morte nas terras do norte, na mesma terra de onde partiram mensageiros da morte semeando sofrimento no sopé dos Andes das terras do sul”. 

Nos dias que sucederam ao seu nascimento, “o reino dos pássaros vivia ensombrado por uma evidência: as sociedades que dispunham das melhores escolas eram as mesmas sociedades que produziam exércitos ocupantes e seres egoístas que, em nome do seu conforto, envenenavam os céus de todos os pássaros com gases letais”. Também através da escola se perpetuavam insanos ciclos de violência e morte. 

“Muito antes, no primeiro ano do vigésimo século da era dos homens (no tempo de um discreto anunciar de uma nova era), uma andorinha enunciou uma premonição jamais consumada. Essa andorinha acreditava que o vigésimo século do tempo dos homens seria chamado “o século da criança”. Acreditava que a escola faria dos pássaros e dos homens seres mais sábios e mais felizes.

Porém, durante todo esse século, a Escola apenas reproduziria velhos rituais sem sentido. A escola dos homens não produzia Humanidade”. E, em tempos sombrios, quando o desânimo ameaçava possuir-me, as metáforas me ajudavam a sair da difícil situação. Enviava-vos cartinhas, netos queridos, para aliviar mágoas e recuperar a fé:

No princípio do século em que nascestes, a escola já nem sequer ensinava. Foi por essa altura que uma gaivota de nome Jean explicou o que a ciência dos homens havia aprendido nas terras do sul. Sendo as gaivotas da estória pássaros “aprendizes até ao último bater do coração” ficaram presas à descrição da maravilhosa criatura. E a andorinha contou às gaivotas alguns segredos.

Quando a proximidade do Verão impelia as andorinhas a partir, elas voavam sempre em bando, desenhando no céu a forma de um vê. Quando uma andorinha batia asas, produzia uma corrente de ar ascendente que ajudava a progressão das companheiras que voavam atrás de si. Se, por efeito de um golpe de vento ou tentação de lonjura, alguma andorinha se afastava do bando, logo regressava ao seu amplexo protetor. 

Se a fadiga assaltava a andorinha que ocupava o vértice da cunha voadora, logo outra andorinha corria a ocupar o seu lugar. Poder-se-ia pensar que a andorinha que voava à frente de todas as outras cortava o vento sem ajuda de ninguém. Puro engano: se perante os seus olhos se estendia o sem-fim do espaço, atrás de si, todo um bando a impelia para a frente e lhe conferia a escolha do rumo. A ciência dos homens apurou que as andorinhas que voavam no aconchego do bando emitiam sons que animavam as que ocupassem os lugares da frente.  

Sempre que uma andorinha adoecia ou ficava ferida, logo duas mais próximas abandonavam o bando, para a acompanhar e proteger, somente regressando ao aconchego de outro bando em migração, quando a andorinha doente recuperasse a capacidade de voar, ou morresse

Estas e muitas mais lições aprenderam as gaivotas, mas a maior das lições foi dada por uma andorinha que, apercebendo-se do drama vivido pela escola das aves, por ali se deixou ficar, enquanto durou o cerco imposto pelos abutres e pelas negrelas. 

É certo e sabido que nenhuma andorinha, em seu perfeito juízo, se deixaria ficar trocando o certo pelo incerto, arriscando a vida. Mas, esta aceitara plantar ninhos em outros beirais. 

Como sempre acontecia perante a simplicidade e a beleza de gestos que traziam à memória a simplicidade e a beleza esquecidas por muitos homens, quedei-me num silêncio comovido perante os gestos das andorinhas resilientes.

 

Por: José Pacheco

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