Rio Maior, 17 de maio de 2042
“Quando sinto que já sei” era o título de um filme sobre práticas de relação solidária, de partilha de saberes, de cooperação. Durante as filmagens, assisti a um diálogo entre o realizador do filme e uma jovem aluna.
O realizador perguntou:
“Então, não há avaliação nesta escola?”
A menina respondeu:
“Avaliação há! Só não fazemos prova, como eu fazia na outra escola, onde eu andei.
“Não entendo” – replicou o realizador.
“Eu explico” – E a criança “explicou”.
“Quando eu tenho cá dentro uma vontade de aprender alguma coisa, quando uma pessoa do meu bairro precisa que a ajude, ou quando estou preocupada com as guerras e com pessoas com fome, por exemplo, eu falo com a minha tutora e fazemos um projeto. Ela ajuda-me a fazer um roteiro de estudo. Depois, eu estudo nos livros, na Internet, pergunto a quem sabe. E, quando eu sinto que já sei, eu partilho com os meus colegas o que aprendi”.
O que teria ficado a pensar o realizador? Não sabemos. Sabemos que, ao editar o filme, o realizador retirou dele as imagens do seu diálogo com a menina, apesar de colocar a fala da menina como título do filme.
Há quase trinta anos, um episódio trágico deu que pensar aos professores. Um aluno cometeu suicídio. Eu sei que custa aceitar a ideia do suicídio na infância, mas a criança em causa, ao que pude apurar, há muito evidenciava comportamentos que poderiam ter sido sinais de alarme.
Reflexão após reflexão, chegou-se à conclusão de que todas as escolas deveriam estar atentas a certos pormenores. Era a Inês, que ficava fixava os olhos num ponto qualquer e se ausentava. Era o Júlio, que infligia a si próprio sofrimento, com qualquer objeto cortante que estivesse à mão. Era aquele aluno que alternava súbitos gritos com longos períodos de prostração.
Nos encontros de fim de tarde, falou-se de desencontros, de falta de comunicação, de sofrimento e infelicidade infantil. O que, até então, poderia ser considerado tabu, passou a ser encarado como déficit de atenção. Não que aqueles professores andassem distraídos, mas que não se perderia nada em atentar em insignificantes significâncias.
Não tardou que a redobrada atenção desse frutos. A caixinha dos segredos (assim foi batizada pelos alunos) passou a encher-se de mensagens de seres sedentos de diálogo. Havia os que colocavam na caixinha papéis dobrados e bem colados, e escreviam por fora:
“É para a professora F…”
A professora lia:
“Professora, a minha irmã mais velha tem um curso, mas não arranja emprego. Ao jantar, há sempre discussão. O meu pai diz que ela é uma preguiçosa e que na idade dela ele já trabalhava. Ontem, à noite, o meu pai levantou-se da mesa e atirou com o telefone à cabeça da minha irmã. Eu fugi para o meu quarto. Nem jantei. Não sei o que fazer. A professora pode ajudar-me?”.
Havia as cartas de amor decoradas com corações e setas, umas mais longas, outras telegráficas:
“Se gostas de mim, põe uma cruzinha à frente do “eu gosto de ti”. Depois volta a pôr na caixinha dos segredos”.
As professoras ajudavam, discretamente, sem saber que começavam a esboçar o perfil de um professor-tutor. Feita a entrega das primeiras aos respectivos destinatários, os professores percorriam as salas, fazendo a entrega do correio sentimental.
Mas não se pense que a redobrada atenção se resumia à atividade epistolar e aos encontros que dela decorriam. Nem um professor-tutor tem por vocação ser mero confidente ou médico de almas. Os papéis de um professor-tutor iam mais além, ou nem sequer a sua missão passava por aí, porque, felizmente, a maioria das crianças eram filhos felizes de famílias felizes.
Por: José Pacheco
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