Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXXIX)

Rio Maior, 17 de maio de 2042

“Quando sinto que já sei” era o título de um filme sobre práticas de relação solidária, de partilha de saberes, de cooperação. Durante as filmagens, assisti a um diálogo entre o realizador do filme e uma jovem aluna. 

O realizador perguntou:

“Então, não há avaliação nesta escola?”

A menina respondeu:

“Avaliação há! Só não fazemos prova, como eu fazia na outra escola, onde eu andei.

“Não entendo” – replicou o realizador.

“Eu explico” – E a criança “explicou”.

“Quando eu tenho cá dentro uma vontade de aprender alguma coisa, quando uma pessoa do meu bairro precisa que a ajude, ou quando estou preocupada com as guerras e com pessoas com fome, por exemplo, eu falo com a minha tutora e fazemos um projeto. Ela ajuda-me a fazer um roteiro de estudo. Depois, eu estudo nos livros, na Internet, pergunto a quem sabe. E, quando eu sinto que já sei, eu partilho com os meus colegas o que aprendi”.

O que teria ficado a pensar o realizador? Não sabemos. Sabemos que, ao editar o filme, o realizador retirou dele as imagens do seu diálogo com a menina, apesar de colocar a fala da menina como título do filme.

Há quase trinta anos, um episódio trágico deu que pensar aos professores. Um aluno cometeu suicídio. Eu sei que custa aceitar a ideia do suicídio na infância, mas a criança em causa, ao que pude apurar, há muito evidenciava comportamentos que poderiam ter sido sinais de alarme. 

Reflexão após reflexão, chegou-se à conclusão de que todas as escolas deveriam estar atentas a certos pormenores. Era a Inês, que ficava fixava os olhos num ponto qualquer e se ausentava. Era o Júlio, que infligia a si próprio sofrimento, com qualquer objeto cortante que estivesse à mão. Era aquele aluno que alternava súbitos gritos com longos períodos de prostração. 

Nos encontros de fim de tarde, falou-se de desencontros, de falta de comunicação, de sofrimento e infelicidade infantil. O que, até então, poderia ser considerado tabu, passou a ser encarado como déficit de atenção. Não que aqueles professores andassem distraídos, mas que não se perderia nada em atentar em insignificantes significâncias.

Não tardou que a redobrada atenção desse frutos. A caixinha dos segredos (assim foi batizada pelos alunos) passou a encher-se de mensagens de seres sedentos de diálogo. Havia os que colocavam na caixinha papéis dobrados e bem colados, e escreviam por fora: 

“É para a professora F…” 

A professora lia: 

“Professora, a minha irmã mais velha tem um curso, mas não arranja emprego. Ao jantar, há sempre discussão. O meu pai diz que ela é uma preguiçosa e que na idade dela ele já trabalhava. Ontem, à noite, o meu pai levantou-se da mesa e atirou com o telefone à cabeça da minha irmã. Eu fugi para o meu quarto. Nem jantei. Não sei o que fazer. A professora pode ajudar-me?”. 

Havia as cartas de amor decoradas com corações e setas, umas mais longas, outras telegráficas: 

“Se gostas de mim, põe uma cruzinha à frente do “eu gosto de ti”. Depois volta a pôr na caixinha dos segredos”. 

As professoras ajudavam, discretamente, sem saber que começavam a esboçar o perfil de um professor-tutor. Feita a entrega das primeiras aos respectivos destinatários, os professores percorriam as salas, fazendo a entrega do correio sentimental. 

Mas não se pense que a redobrada atenção se resumia à atividade epistolar e aos encontros que dela decorriam. Nem um professor-tutor tem por vocação ser mero confidente ou médico de almas. Os papéis de um professor-tutor iam mais além, ou nem sequer a sua missão passava por aí, porque, felizmente, a maioria das crianças eram filhos felizes de famílias felizes. 

 

Por: José Pacheco

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