Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXXXII)

Machico, 20 de maio de 2041

Há trinta anos, fizeram um livrinho com vinte e cinco das minhas cartinhas. Se os vivos as não liam, enviei-as a mortos ilustres. 

Após a publicação do livrinho, a editora achou por bem fazer um “lançamento”. E esse evento coincidiu com o falecimento do meu amigo Rubem Alves. 

Sei que já vai longe o tempo da perda, mas me penitencio, publicando a vigésima sexta carta, a que faltava.

Querido amigo,

Falando de tempo – essa humana invenção de que te libertaste –, reparo que já decorreram quinze anos sobre um remoto dia de abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Escola da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu país. Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não cessa o meu aprender com professores, para os quais és inspiração e que conservam na memória e nas práticas as tuas sábias palavras: 

Educar não é ensinar matemática, química, português, que essas coisas podem ser aprendidas nos livros e nos computadores. A primeira tarefa da educação é ensinar a ver. A coisa mais deletéria na relação do professor com o aluno é dar a resposta”

Poéticas e cruéis sentenças escreveste, meu amigo, porque a tua vida foi coerente com aquilo que escreveste. A tua obra – extensa, diversificada, pautada numa complexa simplicidade – suscita múltiplas leituras. Instigou-me a penetrar mais fundo em contraditórias realidades, observadas por um desarmado olhar europeu, que se surpreendia perante o ostracismo a que alguns pedagogos brasileiros são remetidos. 

Deste-me a conhecer facetas inesperadas de um Freire, sobre cuja integração na universidade redigiste um “não-parecer”. Como ele, sofreste o exílio, no período sombrio dos governos militares, que marcou o desaparecimento das escolas vocacionais e de outros projetos, que poderiam ter alçado a educação brasileira ao nível da excelência. 

Sei que te fará feliz o saber que uma nova geração de educadores emerge, no Brasil e em Portugal, operando ruturas e não prescindindo do património que tu e outros pedagogos nos legaram. Valeu a pena teres vivido “na contramão da História”, aprendendo a surfar o dilúvio de lixo educacional em que a sociedade e a escola se afundaram. Valeu a pena viver a sina de “romântico-conspirador”, pois confirmaste a existência de seres (que o Brecht diria serem indispensáveis), numa carta, de que ouso transcrever um pequeno excerto: 

“O bom é sentir que a “pia conspiratio” é muito maior do que se imagina. Há milhares de irmãos e irmãs desconhecidos sonhando o mesmo sonho”. 

Na tua derradeira entrevista, reiteraste a afirmação de que a educação deveria passar por profundas mudanças. Pois fica sabendo, querido amigo, que talvez os governantes tenham, finalmente, reconhecido o dito de Mandela: 

A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. Resta saber qual a educação que os governantes têm em mente. Resta saber se essa proclamação é um grito do Ipiranga educacional, ou um prenúncio de morte, porque o sistema já não aguenta mais promessas e paliativos. 

Vou no rumo de projetos e de educadores, que esboçam novos e melhores modos de educar, com ou sem a colaboração ministerial. E, por vezes, até à revelia dos desígnios ministeriais. Tu, que dizias que os educadores deveriam ser esperançosos, saberás agora, que a esperança (de “esperançar”) não poderá ser adiada. 

Requiescat in pace, amigo Rubem. Se o teu estatuto de pastor te conferir crédito junto do Pai, pede-Lhe misericórdia para este teu amigo, que tanto erra. E o perdão daqueles educadores que recusaram escutar-te.

 

Por: José Pacheco

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