Lagos, 26 de junho de 2042
Certamente, reparastes que, ontem, o vosso avô estava acrimonioso, narrador de memórias-desgostos dos idos de vinte. Junto aos papeis de fundo de baú, encontrei um antídoto para o azedume, uns apontamentos tomados no decorrer de um simpósio sobre terapias holísticas integradas organizado pelos meus amigos Natália e Norberto. O texto-recordação desse dia estava acompanhado de outro, que convosco partilho. Um texto penitencial, quase um manifesto e, mais uma vez… a Escola da Ponte. Aqui vai.
“Em 1976, na Ponte, a transição de práticas instrucionistas para práticas fundadas no paradigma da aprendizagem permitiu:
A todos garantir o direito a uma educação integral, contemplando a multidimensionalidade do ser humano – cognitiva, afetiva, emocional, estética, ética;
Desenvolver uma efetiva avaliação, operada em portfólios compostos de evidências de aprendizagem, o que passou pelo recurso a uma diversidade de dispositivos, que reduziu quase por completo a utilização de testes;
Praticar uma efetiva inclusão, através, por exemplo, da aplicação de princípios da Declaração de Salamanca;
Formar especialistas em alfabetização linguística, lógico-matemática e socioemocional, o que permitiu a todos alfabetizar;
Substituir a monodocência pelo trabalho de uma equipe de projeto envolvida em práticas interdisciplinares, multidisciplinares e transdisciplinares, introduzindo a prática de um desenvolvimento tridimensional do currículo – subjetiva, comunitária e universal – assegurando o cumprimento integral do currículo do primeiro ciclo do ensino básico;
Extinguir as salas de aula e desenvolver de modo exponencial efetivas aprendizagens em espaços com potencial educativo;
Celebrar um contrato de autonomia com referência a um regulamento interno que substitui órgãos de direção e gestão unipessoais por órgãos colegiais, dignificando a profissão de professor e fomentando a participação comunitária;
Tomar decisões fundadas em critérios de natureza científica, questionar e rejeitar medidas de política educacional contrárias ao cumprimento do projeto educativo e lesivas dos interesses doas alunos e da comunidade, criando condições de sustentabilidade socioambiental e de gestão democrática;
Contrariar os efeitos de perniciosas atitudes perpetradas por pseudo-especialistas em ciências da educação e por áulicos;
Colocar a escola ao serviço da humanização dos processos de aprendizagem.”
Esse libelo foi enviado a milhares de educadores e marcou o fim de um tempo. Na base do articulado, invocava-se o terceiro parágrafo do artigo 48º da Lei de Bases do Sistema Educativo português:
“Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”.
Reafirmando o primado das ciências da educação, que os projetos educativos assumiam, guiados por valores, princípios e práticas semelhantes às da Ponte, educadores éticos inauguraram um novo tempo, um tempo de mudança educacional.
Mas, o vosso avô sabia que a situação criada era precária. Ao longo de meio século, tinham sido muitos os ciclos de euforia a que se sucederam ciclos de frustração. Por isso, nos encontros realizados no périplo de vinte e dois, recomendava a pais conscientes dos seus direitos que fossem à escola mais próxima e procurassem professores que ainda não tivessem morrido (ainda deveria haver alguns por lá). Que lhes estendessem uma mão amiga, o convite para serem professores.
Por: José Pacheco
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