Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXX)

Praia da Bordeira, 29 de junho de 2042

Hoje, acordei com saudades de Cabo Verde. Por lá andei, no início dos anos setenta. A recordação do embalo das “mornas”, o gosto da cachupa, as casas de rés-do-chão sem reboco e a pobreza digna de um povo sempre à espera da chuva me fizeram voltar a escutar a Cesária e o Ildo Lobo. 

Em 1971, na “hora di bai”, as saudades do que era uma “província ultramarina” gravaram marcas indeléveis e apelativas de um regresso às ilhas. Lá voltei, num regresso amargo a lugares que guardava na memória. Eram memórias desfeitas num regresso desencantado. De passagem pelo Tchão Bom, visitei o Campo do Tarrafal. Lá estava o mesmo banco de pedra da fotografia tirada há décadas, o mesmo fosso, o mesmo portão de ferro, as mesmas barracas. 

Uma mistura de curiosidade, alguma audácia e inconsciência dos riscos que corria, abriu-me o acesso ao conhecimento direto (ainda que limitado) de tenebrosos segredos de uma ditadura mascarada de “evolução na continuidade, de uma curta primavera marcelista”. Nos anos noventa, foi diferente, porque o acesso ao campo dos degredados estava isento de perigos.

Na presença de lugares, há muito percorridos, penetrei espaços na primeira visita interditos, perdi-me em deambulações de passos e reflexões. Tudo me parecia tão distante, tão absurdo. Não restavam vestígios do sofrimento. Onde se teria escondido a morte, companheira de exílio, destino do preso atirado para a caldeira húmida de uma cela de isolamento?

“Mi dá caneta, sior?!”

As vozes das crianças mendicantes arrancaram-me daquele torpor. A emoção do reencontro cedeu lugar a uma estranha tristeza. A indiferença do grupo de turistas que me acompanhava era igual à indiferença dos meus companheiros de viagem de há trinta anos. 

Enquanto uns teciam comentários boçais acerca do lugar, outros confessavam “nunca terem ouvido falar da prisão do Tarrafal”. Para que um sentimento de intensa revolta não me levasse a cometer algum desmando, remeti-me ao silêncio e afastei-me do grupo, até à conclusão da visita.

Se não houvesse uma placa afixada à entrada do “campo da morte” a evocar tempos sombrios, seria como se nunca tivesse existido um lugar onde os melhores educadores foram sacrificados por terem alimentado ideais de liberdade e democracia. Se, como Cícero dizia, “tivessem triunfado em vida os que triunfaram na morte” ou se os vivos fizessem justiça à memória dos que condenavam à indiferença, talvez vivêssemos tempos menos sombrios. Ilustrarei com um exemplo (entre muitos exemplos possíveis) o paradoxo onde radicava esta afirmação.

Na sede do concelho em que vivi, Carneiro Pacheco (para quem, eventualmente, não saiba quem foi a criatura, acrescento ter sido Ministro da Instrução, entre 1936 e 1940) era nome de uma rua e de um centro comercial. 

Esse Pacheco fora personagem central da fase mais tipicamente fascista da ditadura e um dos maiores responsáveis pela consolidação de mecanismos de repressão – citava o ditado que dizia que “o medo é que guarda a vinha”

Era celebrado na toponímia local e na cultura feita de ignorância e indiferença que lhe sobreviveu e se reproduzia, apesar e contra vivermos tempos ditos de democracia. 

Carneiro Pacheco (triste sina a de ter o mesmo apelido) encarnava na perfeição o “espírito do Tarrafal”, nome do lugar para onde o professor Adolfo Lima foi degredado juntamente com outros educadores, que apenas tinham cometido um “crime”: o de querer educar pela e para a liberdade. 

Não sei se existe alguma rua Adolfo Lima, em Portugal. Que eu saiba, não existe escola portuguesa que o tenha como patrono.

 

Por: José Pacheco

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