Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXV)

Vila Franca das Naves, 4 de julho de 2042

Vai para vinte anos, andei por terras do demo e outras do interior beirão, visitando velhos amigos, coabitando com famílias de professores. E passei pelo Tortozendo, para agradecer desvelos da Dona Conceição. Quando a visitei no lar de idosos, esse derradeiro encontro foi feito de lágrimas de dor pela perda recente do marido e do filho Alexandre. Tinha contraído Covid, e a vidraça protetora que nos separava impediu que a abraçasse e beijasse as mãos que milhares de mantas conseguiu remendar. 

Do Tortozendo abalei dali para Trancoso, não o da Bahia, mas o da Beira Alta. Numa das freguesias desse concelho, a simplicidade e a hospitalidade da família da Anabela e do José Augusto me cativou. A gentileza e a inteligência prática dessa família me fez recordar outra família de operários têxteis, que me deu guarida numa humilde casa dos Pinhos Mansos. Na década de sessenta, a nonagenária Conceição e o Leovegildo, operário têxtil e seu companheiro de uma vida, me acolheram, me protegeram de esbirros da ditadura e me propiciaram oportunidades de formação política. Às gentes desse lugar sou devedor do primeiro despertar da consciência de que o Portugal de Salazar era um “Reino da Estupidez”. 

Numa tarde de domingo, fui conversar com professores e tentar conversar com um fugidio diretor de agrupamento. O homem sentou-se na última fila do auditório e, antes que terminasse o encontro, se escapuliu. Conversa vai, conversa vem, me lembrei de que nascera nas naves daquela vila franca um dos maiores cantautores do meu país. E de que, à semelhança de outros genais compositores de música popular (muitos deles exilados e perseguidos pela polícia política da Ditadura), Fausto fora maltratado, no Reino da Estupidez.

Filho de professora primária, licenciou-se em Ciências Políticas e Sociais e, ainda estudante, passou a acompanhar José Afonso e outros “Cantores de Abril”. Foi compositor e intérprete de um dos discos mais representativos desse movimento cultural e político: “Por Este Rio Acima”. Se dispuserdes de um tempinho, escutai-o. Vale a pena! 

Talvez acheis estranho que eu tivesse escrito a expressão “No Reino da Estupidez”. Ela foi usada por um dos poetas de voluntário exílio e tem origem remota num acontecimento datado do século XVIII. Por agora, vos falarei de Jorge de Sena. Amanhã, de Francisco Franco.

Como Agostinho, Saramago e outros denunciantes da mediocridade, foi sina de Jorge de Sena percorrer caminhos de um voluntário exílio. Na América, com elegância, humor e acutilância, compôs o poema “A Portugal”. Aqui vos deixo alguns dos seus versos:

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.

Nem é ditosa, porque o não merece.

Nem minha amada, porque é só madrasta.

Nem pátria minha, porque eu não mereço

A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta.

Amigos meus mais caros tenho nela,

saudosamente nela, mas amigos são

por serem meus amigos, e mais nada.

irrisória face de lama, de cobiça, e de vileza,

de mesquinhez, de fátua ignorância;

terra de heróis a peso de ouro e sangue.

Ó, terra de ninguém,

Eu te pertenço, mas seres minha, não.

Era esse o retrato cáustico do país onde nasci, esboçado pelo Jorge poeta, nos anos cinquenta, no tempo em que nasci. Nos idos de vinte, já liberta e democratizada, a minha pátria ainda conservava o ranço de quarenta e oito anos de estúpida governação. O “Reino da Estupidez” se revelava vivo e presente no discurso e nos atos de lideranças tóxicas.  

Peço que perdoeis o tom amargo desta cartinha. Amanhã, vos compensarei com algo menos sombrio, mais divertido.

 

Por: José Pacheco

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