Couvela de São Mateus, 30 de julho de 2042
Reparei, netos queridos, nas palavras de um pai e avô:
“Há menos de uma semana, sofri a morte da minha amada esposa. Ainda me sinto abalado pela perda que mudou o rumo e o sentido da vida para mim. No final da tarde fria, recebo a visita inesperada dos meus dois filhos.
Sentados na mesa da sala de uma casa onde moro sozinho, conversamos. O tema é o meu futuro. Logo eles tentando me convencer de que o melhor para mim é viver em um lar de idosos.
Eu reajo. Argumento que a sombra da solidão não me assusta e a velhice, muito menos. Meus filhos insistem, “preocupados”. Lamentam que as dependências dos seus amplos apartamentos à beira-mar estejam ocupadas e, portanto, eu não possa estar nem com um, nem com outro… assim dizem eles.
Além disso, meus filhos e noras vivem ocupados. Eles não teriam como me ver. Isso sem contar com meus netos, eles estudam quase o dia todo.
Em meu favor, argumento já sem muita convicção que, nesse caso, eles bem poderiam me ajudar a pagar uma cuidadora. Dizem que seria necessário, na verdade, “três cuidadoras em três turnos e todas com carteira assinada”. O que seria, em tempos de crise, uma pequena fortuna no final de cada mês.
E vem outra sugestão: que eu devo vender a casa. O dinheiro servirá para pagar as despesas da casa para onde eu vou, por um bom tempo, para que ninguém se preocupe.
Eu me rendo aos argumentos por não ter mais forças para enfrentar tanta ingratidão e frieza. Resolvo juntar meus pertences. Em pouco tempo, vejo uma vida inteira resumida em duas malas. Com elas, embarco para um lar de idosos, longe de filhos e netos.
Hoje nos braços da solidão reconheço que pude ensinar valores morais aos meus filhos. Mas não consegui transmitir a nenhum dos dois uma virtude chamada GRATIDÃO”.
O Mestre Agostinho dizia que o homem não nasceu para trabalhar, mas para criar. Porém, entrámos no século XXI, vendendo o nosso tempo, para sobreviver. O “tripalium” se sobrepunha à realização pessoal. O modo de produção capitalista se consolidara na Inglaterra do século XIX e na sua matriz axiológica não cabiam a gratidão e a solidariedade.
Quando morava na periferia de uma cidade, recolhia animais abandonados pelos donos. Estes iam para férias, os animais eram um estorvo e ainda não havia “pet shop”. E a família era grande, os velhos não tinham lugar no carros, que levaria a esposa e as crianças para um merecido período de descanso. A pretexto de uma qualquer maleita, o velho era internado num hospital, até ao regresso de férias.
O progresso técnico e científico possibilitou a flexibilização dos tempos de trabalho e lazer, mas a dicotomia trabalho-lazer manteve-se e se consumou a “fabricação” de guetos de infância, de adultez e de velhice
Nem a terceira, ou a quarta revolução industrial, a da microeletrônica e da automatização, nem a robotização dos processos produtivos logrou alterar a triste situação.
Considerados inúteis, os avós eram acumulados em eufemísticos “lares de idosos”. Consideradas incómodas, porque os seus pais apenas dispunham de duas ou três horas de lazer, as crianças eram armazenadas em “centros escolares” e em “centros de explicações”. Se restavam aos progenitores apenas uma ou duas horas para preparar o jantar, ajudar os filhos nos “trabalhos de casa” e mergulhar nas redes sociais, a prole era mantida ocupada em “atividades de enriquecimento curricular” e no “apoio às famílias”. Como se não houvesse outro modo de gerir o tempo, de viver a vida.
Havia! E, no setembro de vinte e dois, o esboço de uma nova escola para uma nova humanidade começou a tomar forma concreta.
Por: José Pacheco
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