Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLIV)

Amendoeira, 3 de agosto de 2042

Quando cheguei à outra margem do mar e à casa brasileira, esquadrinhei as gavetas do armário velho, à procura de reproduções de e-mails recebidos, ia para mais de vinte anos. Uma das cópias empalidecera, mas ainda era possível decifrar o que nele estava escrito:

“Bom dia, Zé! Escrevo para lhe contar que o nosso Beto está indo embora. Desde quinta-feira que quase não se mexe. Está comendo sopa na minha mão, ainda bebe água e faz xixi nele mesmo. Fizemos um raio X e o diagnóstico é metástase no pulmão. Queria lhe dar boas notícias, mas, infelizmente, não posso. E achei que você deveria ser avisado sobre o final do ciclo de nosso querido amigão”.

A mensagem acompanhava a foto que junto a esta cartinha, a do Beto, companheirão da Claudia, do Zeca e da Manu. 

Solitário acompanhado, que fui, sempre vivi na companhia de animais. E alguns até pareciam gente fiel. Durante muitos anos, tive a companhia da Manu e do Beto, dois seres ditos não racionais, que eram exemplos de amorosidade e, sobretudo, de fidelidade. Fiz amigos nas sete partes do mundo. Na condição de inveterado andarilho, carente de estabilidade, colecionava encontros e despedidas, pelo que só me restava manifestar afeto “à distância”. Fui deixando, aqui e ali, a minha ausência sentida por pessoas queridas e por animais de estimação. 

Naquela que talvez fosse a última das atlânticas travessias, dei por mim a recordar amigos dessa outra espécie, que não a humana. Desde que me conheço, reparti a existência com entes queridos (pessoas e animais) em múltiplos lugares, onde, por fidelidade a princípios, ajudei a concretizar sonhos.

Bem hajam os fazedores de sonhos! Gente fiel que, para além de serem amigos de animais, o eram muito mais da infância. 

As palavras e os atos do Daniel refletiam fidelidade:

“Tento ser professor, mudar a minha perspetiva, humanizar a tecnologia. Estou a caminhar para lá, mas sinto-me só. Os pares parecem conformados. Muitos sabem que estão errados, mas, ainda assim, fazem do mesmo jeito”.

Há milénios, Sócrates questionava a Escola que a Modernidade viria a engendrar. Lede aquilo que o Platão disse que o velho Sócrates dissera

“Ó Agathon, que bom seria se a sabedoria fosse alguma coisa que pudesse fluir daquele que está mais pleno dela para o que está mais desprovido, por mero contato de um com o outro, como a água, que passa do vaso mais cheio para o mais vazio por meio de um fio de lã”.

Esse filósofo era tão crítico e tão fiel a princípios, que acabou ingerindo cicuta…

Expostos a outros perigos, nos idos de vinte, havia gente que ia além da obediência a um princípio moral, a uma norma justa. Era gente ética, pois decidia cumprir o que era bom para uma comunidade, mas que não seria obrigatório cumprir. Dito por outras palavras, eram fieis a princípios. Não só procediam moralmente, como colocavam as necessidades do coletivo sobre interesses individuais. Eram educadores!

No agosto de 22, esses educadores constituíram núcleos de projeto, dispositivos centrais do processo de mudança das práticas. E, até meados de setembro, em equipes de projeto, elaboraram as matrizes axiológicas dos seus projetos. Valores que refletiam uma nova visão de mundo conduziram à elaboração de cartas de princípios, alicerces de novos modos de relação. 

Amados netos, tendes dito que o vosso avô tem usado e abusado de um certo tom “doutrinário” nas últimas cartinhas. Crede que apenas me limito a contar estórias tal qual elas ocorreram. E, hoje, decidi falar-vos de fidelidade, numa subtil criptografia acessível a quem partilha os mesmos valores e age fielmente.

 

Por: José Pacheco

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