Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLX)

Montemor-o-Novo, 9 de agosto de 2042

Por meados de agosto de vinte e dois, o Alfredo, a Cristina, a Caetana, a Raquel, o Bernardo, a Sofia, a Angelina, a Cléo, outros pais e professores se reuniram para fundar uma comunidade. Os mais diretamente interessados andavam por ali. O Benjamim, com dois anos de idade, brincando e catando a atenção dos adultos. A Maia, de dez anos, sentada no círculo humano, muito atenta à conversa. 

Antes do encontro, conversei com o João. Tinha sido meu aluno, nos idos de noventa. Trinta anos depois, era o diretor do agrupamento de escolas. A sua postura na reunião foi fiel aos princípios que com ele adotara. E foi possível esboçar o que viriam a ser círculos de aprendizagem de vizinhança e núcleos de transformação vivencial. Em outra cartinha, disso vos falarei. Por agora… memórias. 

Na escola onde decorreu a reunião, à vista de duas velhas carteiras com buraco para o tinteiro, a memória me transportou para os anos cinquenta. Recordei o cheiro da tinta e a suavidade do “mata-borrão”. Me lembrei de quando carregava demasiado na caneta e borratava o caderno de duas linhas. Senti a dor do impacto da palmatória.

Enquanto aplicava o castigo, o professor Vasconcelos gritava: 

“Não chora! Não pode chorar!  

Com a mão aquecida pelo impacto das reguadas e com lágrimas prestes a derramar-se sobre o caderno de duas linhas, o nervoso miudinho e a pressão da não trémula sobre a caneta aumentavam e… eu voltava a partir o aparo. 

Marcos querido, o primeiro ano da tua vida coincidiu com o último dos anos em que o teu avô seria professor de crianças. Tinhas uma memória prodigiosa, uma memória de tempos umbilicais e outras, que guardavas só para ti. Quando acedeste à fala e soubeste comunicar na linguagem dos homens, seria demasiado tarde para reaveres uterinas memórias e muito cedo para outras verbalizar. 

A Maia, o Benjamim, os filhos do Bernardo e da Raquel, os meninos da Marcela e os de outras amorosas mães não viveriam situações da escola de antigamente. Anos antes, os abraçara e trouxera ao colo. E os reencontrava já “em idade de ir à escola”. Não seria por acaso que haveria acasos. Talvez se tratasse de sincronicidades.

Elas seriam guardadas no mais secreto recanto da memória de longo prazo, aquele que me fez recordar canetas de aparo. Passada a idade de ser velho, regressarás ao lugar da memória de todos os homens. 

Memória era coisa que não faltava aos professores. Os professores só pecavam por dois defeitos: o de nada escrever do muito que sabiam, de não divulgar as maravilhas que operavam, e o de não denunciar situações que desejavam acreditar não teriam acontecido.

Quando os meus netos me perguntavam por que a Escola era como era, não sei sabia que resposta lhes dar. Ninguém encontrava uma razão plausível para que ela fosse como era. O que pensaríeis, netos queridos, de pessoas que não sabiam explicar por que fazem aquilo que faziam? E, quando essas pessoas eram professores, o que delas pensaríeis?

A geração do designer Marcos e da psicóloga Alice iria romper com o fatalismo que sacrificara Giordano nas fogueiras da Inquisição. Essa maravilhosa geração soube contornar o fado funesto que imolou Ghandi num punhal traiçoeiro e Luther King numa bala assassina. Um século após a execução de Ferrer, setenta anos decorridos sobre o assassínio de Korczak nas câmaras de gás nazis, era tempo de contrariar o fatalismo que confirmava as tentativas de mudança da Escola como sublimes imolações. E, naquilo que ficou conhecido como nova construção social, românticos resilientes e conspiradores ousaram reinventar a aprendizagem e a educação. 

 

Por: José Pacheco

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