Patos, 29 de agosto de 2042
Por finais de agosto, fui até ao sertão da Paraíba, a convite do amigo Delzymar, muitas horas de voo e de estrada, que valeram a pena.
Abotoquei os olhos (o meu autocorretor sublinhou a verbo abotocar a vermelho porque é português e não fala nordestino) perante a beleza do sertão, a qualidade humana dos educadores. Gente de Patos, de Monte Horebe, de lugares de onde educadores partiram pelas três da manhã, percorrendo longas estradas, para participar no evento que o Delzymar promoveu. Cerca quinhentas pessoas se reuniram, provando a vitalidade da educação nordestina.
Conheci uma família admirável. O Senhor Francisco, jovem de mais de setenta, criado no mato. Homem de extrema bondade, cavalgara longas distâncias, para ensinar as letras a uma comunidade. Depois, serviu na polícia militar.
A sua esposa, os filhos e os netos eram de uma gentileza e de uma hospitalidade ímpar. Cada um deles mereceria uma referência particular aos seus talentos (o farei em futuras cartinhas). Talentos como o de um jovem, que escutei num programa de rádio.
Até ao fim dos estudos para entrar na faculdade, sempre tinha obtido boas notas. Iria, sem entusiasmo, mas resolutamente, ser arquiteto. Durante a sua juventude abominara tudo o que fosse música erudita. Odiava ópera. Até que, no dia do seu aniversário, alguém, à revelia de pais e avós cultores da tradição da música fácil, lhe ofereceu um CD com árias cantadas pela Maria Calas.
Confessava o jovem aos microfones da rádio que atirara o disco para um canto. Até que, um dia… O entrevistador concluiu a conversa, referindo que o jovem entrevistado havia ganho o concurso de canto Maria Tody, um dos mais prestigiados concursos do género no nosso país.
Quis saber o entrevistador o porquê da radical transformação. Respondeu o jovem:
“A sementinha estava aqui dentro. Só foi preciso deitar água e cuidar dela.”
Para não sufocar a sementinha numa torrente de pensamentos repensados, para não correr o risco de a fazer apodrecer precocemente, preservei-vos de presunçosas sapiências de avô. Não vos apontei caminhos, por saber que os encontraríeis. E vos achastes na Psicologia e no Design.
Termino esta cartinha satisfazendo um vosso pedido: contarei a última das estórias em que a Ana foi protagonista. Devereis estar lembrados de que os companheiros da Ana lhe pediam que continuasse a perguntar, a intervir. Até lhe disseram que poderia contar com eles, que a iriam apoiar, em qualquer situação de conflito. Foi então que a Ana decidiu ter uma conversa de mulher para mulher com a professora.
Estudou as palavras, a postura, para quando chegasse o momento. A professora veio, corredor abaixo, na sua direção. A cada passo seu, o coração da Ana acelerava mais e mais. Talvez não estivesse preparada. Talvez fosse melhor deixar para outra altura…
“Senhora Professora, eu queria…”
“O quê? Sai-me da frente e já!”
“Ó minha senhora, tem obrigação de me ouvir!”
“O quê?! Eu tenho a obrigação de quê?! Tu não passas de um fedelho insignificante. Quem é que tu achas que és? Hem? Fala! Vá, fala agora! Agora, sou eu que te mando! Vês? Não passas de um bebé! Um bebé, ouviste bem?”
A professora entrou na sala. A Ana ficou colada à parede do corredor. Mas, recordada da promessa de apoio dos colegas, entrou na sala como um furacão. Perdida por um, perdida por mil!
“Professora, eu e todos aqui presentes…”
A professora não a deixou completar a frase:
“Tu e quem mais? Não vejo mais ninguém a queixar-se. Vamos lá a ver… Alguém tem razões de queixa? Alguém tem?”
Ninguém se mexeu.
Nesse dia, algo se partiu, ou morreu, dentro da Ana.
Por: José Pacheco
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