Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2042
No Portugal do agosto de há vinte anos, foi-me dado presenciar uma cena comum nas grandes superfícies comerciais, em plena febre consumista de início de ano letivo. (nesse tempo, ainda havia ano letivo).
As borrachas e canetas de cheiro, arrancadas dos estojos, jaziam nas estantes, ou espalhadas pelo chão, algumas esmagadas por sucessivas cargas de pequenos bárbaros, de quem escutava veementes exigências:
“Não quero essa porcaria! Quero uma mochila “Dream”! Ou, então, uma “Adidas!”
A mamã devolveu à estante o pacote rejeitado e danificado pela fúria do pimpolho.
“Ó Vitinho, olha esta, aqui! É mais bonita, não achas? E é mais barata. Olha que a mamã não é rica! “
“Só quero aquela lancheira, a do Mickey! Já disse!” – ripostou o mocinho, enquanto arremessava uma Troley, que, certeira, embateu no lote e projetou as restantes lancheiras pelo espaço em redor. E já o pimpolho se atirava, a pés juntos, para cima de uma cadeira em exposição, rasgando o pano de alto a baixo.
“Deixa lá!” – diz a progenitora para um preocupado pai – “Se rasgou, rasgou! Que é que se pode fazer? Não é?”
Penduradas nas prateleiras, criancinhas remexiam os artigos, sob o olhar embevecido dos seus progenitores. Derrubavam caixas, pisavam cadernos, rasgavam embalagens…
Tive dose dupla de Vitinho, pois reencontrei-o no restaurante do centro comercial. Pelos olhares de incómodo dos clientes, presumo que a cena já ia a meio, mas ainda fui a tempo de presenciar o final. Com os pés em cima de uma cadeira, o Vitinho ensaiou um salto acrobático. Falhou a tentativa, agarrou-se à toalha e foi um mar de vidros pelo chão.
“Vitinho, vem já aqui! Vês o que fizeste?”
O Vitinho respondeu à querida mamã com um tiro de pistola de plástico. Mas errou a pontaria e o projétil aterrou na sopa do cliente da mesa ao lado.
“Ó Vitinho, não vês que estás a incomodar estes senhores?”
“Cala-te! Não sejas parva! – retorquiu a criancinha.
E entrou em cena um pai assanhado:
“Vitinho, vem já para a mesa! Ouviste, Vitinho? Estás a ouvir? Tu queres que eu me levante? Queres? Queres? Olha que eu me levanto mesmo, ouviste? Já estou a perder a paciência! Já para a mesa! Estás a ouvir? Estou quase a levantar-me. Olha que, se eu me levanto, tu… Eu vou-te bater! Olha que vou mesmo! Tu não ouves? Vem sentar-te!”
Depois, com mais jeitinho, e culminando num apelo:
“Vá, não sejas feio. Vem sentar-te, que eu mando vir um gelado daqueles que tu gostas. Olha o senhor! Cuidado! Desvia-te!”
O empregado de mesa ainda rodopiou, furtou-se à carga do Vitinho, mas a bandeja voou, e a travessa das carnes acabou em cacos espalhados no chão do restaurante.
“Estás a ver? Não te disse? Vem sentar-te agora. Vá! Pede desculpa ao senhor. E já!”
“Cala-te! – foi a resposta que o extremoso pai recebeu. E se calou. Reagiu com um sorriso que mais pareceu um esgar de dor. Em redor, os clientes abanavam as cabeças, ciciavam repúdio.
Sinto um travo amargo ao redigir este tipo de descrições. Faço-o por partilhar o princípio da Clarice:
“Escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa, mas há gente que está querendo desabrochar de um modo ou de outro”.
Na Petrópolis do agosto de há vinte anos, conversei com o seu prefeito, um ser humano admirável. Com a secretária e amiga Adriana retomei projetos interrompidos por uma gestão desastrosa. Com o amigo Conrado, com a amiga Cecília e a sua equipe, e com outros educadores decididos a mudar o rumo da educação, recuperei a esperança de que, após os desastres sofridos, os educadores petropolitanos pusessem em prática o princípio enunciado pela Clarice.
Por: José Pacheco
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