Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (M)

Cabo Frio, 18 de setembro de 2042

No setembro de há vinte anos, a minha amiga Débora me brindou com uma oportuna reflexão sobre os “alunos de ninguém”:

“O aluno de ninguém está perdido no tempo e espaço, num lugar sem significado. Ele não pega direito no lápis, não desenha a letra direito, não decifra aquilo que lhe parece um hieróglifo. Mas ele está lá, com todo um potencial que é único, uma aprendizagem que é só dele, a ser dividida com o outro. 

Os alunos de ninguém parecem fantasmas sentados em carteiras enfileiradas, ou perambulando pelos corredores das escolas. Não compreende o que tem que fazer, quando se depara com um papel em branco e alguém, falando em uma linguagem anglo-saxônica o desespera. Sua, treme, tem dor de estomago, vomita, mas precisa preencher aquela folha em branco, para ninguém olhar, avaliar, reelaborar, apontar caminhos, mesmo que encruzilhadas, para que ele possa escolher qual a estradinha percorrer. E, se não chegar a lugar algum, saber de onde retomar.

Ele corre como se quisesse explodir sentimentos. Não tem nenhum lugar aonde chegar, não há lugar para ele. Grita, morde, se cala, olha para o nada. Acaba desistindo de ser de alguém, já que ninguém o escuta, ninguém o compreende. Ppode ele gritar, jogar cadeiras sa ee arranhar, que ninguém o perceberá como alguém. Até que pode chegar o momento em que o aluno de ninguém se cale, adoeça e se perca nos seus próprios sentimentos.

Cansei de falar que o professor tem que mudar, mas não perderei a esperança de dar voz ao aluno de ninguém.”

As palavras da Débora acordaram recordações. 

Quando regressou de férias, o João vinha mais atento a fronteiras e oportunidades. 

Mais ou menos por essa altura, Lucas já contava doze anos de idade. Foi transferido para a escola do professor João. Na escola de onde viera, tinha passado seis anos no fundo da sala, sem sair da primeira classe. Estava rotulado de autismo, imaturidades e atrasos vários, como escrevera a psicóloga no relatório. Também enfermava de epilepsia e incontinência urinária. 

Com persistência e trabalho de equipa, os professores da escola do João foram montando cerco a um Lucas relutante de contacto, ou sequer de ténues aproximações. 

Durante semanas, foi impossível passar a fronteira que bordejava o círculo vazio que o Lucas a todos impunha. Até que, certa manhã, o professor João se apercebeu do interesse do Lucas por uma revista que estava lendo, e deixou-a sobre a mesa. 

O Lucas logo a apanhou e foi sentar-se no canto da sala. Absorvido pelo conteúdo da revista, não deu pela aproximação do professor, que se sentou ao seu lado e o sossegou. Disse-lhe que poderia ficar com a revista, se a quisesse.

Aquietado, o Lucas pousou o dedo indicador sobre a legenda da fotografia de um carro. 

“Queres saber o que está aí escrito?”

O Lucas não respondeu. Mas o professor João leu a legenda: 

“Ford.”

O Lucas deslocou o dedo para a legenda da gravura ao lado. 

“Queres saber o que está aí escrito?”

O Lucas acenou com a cabeça. E o professor disse: 

“Peugeot.”

De gravura em gravura, o João foi ditando ao Lucas: 

“Nissan, Renault, Volvo, Toyota…”

O Lucas, que, ao cabo de seis anos, nem o seu nome escrito conseguia reconhecer, aprendeu a ler e a escrever… em três meses. Pelo método global de palavras, como é de ver. Aprendeu a ler e a escrever em português, mas também em inglês, em francês, em alemão, em sueco. e até em japonês!

Não se pense que eu defendia o espontâneo e o improviso na aprendizagem. Apenas apelava à atenção e à sensibilidade dos educadores. Pedia-lhes que soubessem identificar fronteiras, mas que também soubessem aproveitar oportunidades.

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