Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXII)

Serra do Camburi, 12 de outubro de 2042

No Brasil dos idos de vinte, o “Dia da Criança” era comemorado no 12 de outubro. Essa era, também, o dia de aniversário de uma criança grande chamada Cléo.

Essa palhaça de coração grande inventou uma Terra do Brincar e se condoía da sorte das crianças de tenra idade a quem roubavam a infância.

“Por favor, meu senhor! Compre-me uma balinha. Compre. Por favor! Moço, eu tenho fome!”

Via a Cléo chorar, quando me contava ter encontrado crianças vendendo bala, no centro da cidade. Ela me fez recordar o dia em que a Assembleia das crianças da Ponte tomou algumas decisões definitivas.

A primeira, a de ajudar a matar a fome de crianças de uma família vizinha do Eduardo:

“Professor Zé, você tem de ir lá. Eles moram num barracão e os meninos vêm à nossa casa pedir esmola.”

A segunda decisão foi a de não mais celebrar o Dia da Criança no primeiro dia de junho (era esse o Dia da Criança em Portugal) pois, como disseram, fundamentando a decisão, “todos os dias deveriam ser “Dia da Criança”.

O “Dia da Criança” era uma mentira. A Democracia brasileira era uma mentira. E a Escola Pública era, também, uma grande mentira. Mas, havia quem remasse contra a maré e protegesse as crianças de uma Escola de mentirinha.

Vinte anos atrás, a Cléo celebrava o seu aniversário, dando início ao projeto da sua vida. Havia nele verdade, havia amor pela infância, sensibilidade, brincação.

A Cléo convidava a família, a sociedade e a escola, para re-ligare educação com saúde pública e cultura. A teoria produzida na universidade casava com a vontade de uma secretarias de educação e fazia sentido numa nova práxis de chão da escola.

Com os escassos recursos de que dispunha, a Cléo tinha adquirido um espaço à medida do seu sonho de comunidade. Nele investia tudo aquilo que tinha e até aquilo que não tinha, nesse projeto investia tudo o que era.

Na Terra do Brincar, o professor se libertava do gueto da sala de aula e do prédio-escola, no reconhecimento de que o ethos organizacional de uma escola dependia da sua inserção social, de relações de proximidade com outros atores sociais. A intuição pedagógica da Cléo permitia-lhe praticar Darcy, atualizando a admirável proposta desse Mestre, numa síntese perfeita com a recomendação de Lauro de que seria inútil continuar a construir “pedagogia predial”, se não se construísse comunidade.

Com uma Marcela e duas Brunas, a Cléo (ou Doutora Borboleta, como as crianças a chamavam) agia em espaços públicos, criando nodos de redes comunitárias, devolvendo a escola à comunidade, na partilha da responsabilidade de educar, contribuindo para a coesão social e erradicando a separação entre educação familiar, escolar e social.

Uma nova educação acontecia em espaços de cultura, saúde pública, ciência e arte, na consideração de que todo o conhecimento (erudito, ou popular) era válido e de que os saberes não eram propriedade ou de exclusiva produção numa escola-edifício.

A essas educadoras se juntariam excelentes educadores de Maricá, no desenvolvimento de estratégias que estimulavam o diálogo entre segmentos da comunidade, visando o bem-estar de todos, a valorização da diversidade e das diferenças, visando a promoção de equidade.

O exemplo da Cléo frutificou. Nos anos que se seguiram ao do seu quinquagésimo segundo aniversário, milhares de projetos de comunidade de aprendizagem surgiram e se consolidaram. Uma nova construção social emergia de tempos sombrios. Ficava provada a possibilidade de uma Escola Pública efetivamente pública, depurada de mentiras, uma escola de todas e para todas as crianças.

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